Certamente, os membros de uma família podem ter sérios atritos, indivíduos e grupos podem apartar-se, mas não têm como deixar a família. Pode-se mesmo odiá-la, mas é impossível dela se afastar.
A maioria dos judeus estão tão espalhados e distantes uns dos outros que, dificilmente, encontram uma língua em comum ou uma linguagem qualquer que tenha significado para eles, enquanto judeus. Isto é o que se chama de assimilação que é basicamente a perda da herança comum. Por isso, devemos tentar penetrar em níveis mais profundos da alma, muitos dos quais beiram o inconsciente, e que podem nos ajudar a retomar a comunicação entre nós, e a ter, novamente, algum tipo de linguagem comum.
Os judeus dificilmente podem ser definidos como uma nação, apesar da existência do Estado de Israel. Sequer podemos ser considerados uma religião no sentido mais convencional da palavra, com uma mensagem que julgássemos devesse tornar-se universal e ser "vendida " para outros. Em suma, somos uma entidade bastante diferente.
Para melhor explicar o que somos, podemos começar dizendo que somos uma família. Apenas uma família – uma grande família, não inteiramente biológica, mas, basicamente, uma família. Vínculos familiares, do ponto de vista sociológico, são mais fundamentais do que os nacionais ou religiosos. Com certeza, são uma das formas mais primitivas de unir as pessoas, e, provavelmente, os mais estáveis e resistentes às influências e mudanças externas.
O conceito dos judeus como família nos define tanto do ponto de vista sociológico quanto, de certa forma, teológico. De fato nos comportamos como uma família com sentimentos e emoções similares aos presentes na estrutura familiar, às vezes brigando e nos odiando. É até perigoso para um estranho intervir no relacionamento familiar, pois as pressões externas só tendem a reforçar a unidade e os sentimentos da família.
Podemos até facilmente afastar-nos, alienar-nos uns dos outros, mas de repente voltamos a nos unir novamente como uma família. Sentimos esta união na maneira como nos comportamos. Mesmo quando tentamos enganar-nos sobre os motivos que nos levam a agir de uma determinada maneira, continuamos a nos comportar da mesma maneira.
Embora, às vezes, possamos até pensar que não temos nada em comum, mantemos laços e vínculos que dificilmente conseguimos explicar. Sentimo-nos à vontade uns com os outros, mesmo estando em conflito. Juntos nos sentimos seguros.
Irmãos e irmãs tendem a se afastar. Mudam-se para outros países, adotam sotaques, estilos de vida e comportamento diferentes. Apesar disso, existe entre eles um inegável elemento de união muito básico e difícil de ser definido.
Podemos até dizer que o judaísmo, enquanto religião, é a maneira pela qual fazemos certas coisas, como membros de uma mesma família. Convivemos e conversamos com D‘us e com o homem, assim como o resto da humanidade, mas temos uma maneira própria de fazê-lo. E assim como em qualquer outra família, quando somos jovens, tentamos, às vezes, fugir e brigar com nossos pais. Com o passar dos anos, no entanto, nós nos descobrimos cada vez mais parecidos com eles.
Esta maneira singular - chamada de judaísmo - é, em muitos aspectos, a maneira pela qual nós, como família, convivemos, nos vestimos, oramos, comemos e fazemos uma infinidade de outras coisas. Temos a nossa própria visão para todo tipo de assuntos. Por exemplo, em nossa família, não comemos certos alimentos.
Isto não significa que reivindicamos qualquer direito especial ou dizemos que "somos a melhor família que existe". Mas, como em qualquer grupo, podemos até ter este sentimento e ninguém nos pode condenar. Dizer a si próprio "meu pai é diferente, meu irmão é diferente" é, ainda, uma das preferências dos seres humanos.
Em um nível muito profundo, a noção de que nosso povo é realmente a nossa família, de que somos irmãos ligados tanto por parentesco quanto por estilo de vida, é o que a Bíblia denomina como "A Casa de Jacob" ou "A Casa de Israel". Tem o sabor de uma família ou tribo. Algo bem maior, mas ainda assim uma tribo, com objetivos comuns e de alguma forma unida, apesar desta unidade ser permeada por uma grande variedade de expressões individuais. As conexões são tão profundas que, geralmente, sequer temos consciência das mesmas. Despertam dentro de nós e, às vezes, é como se sentíssemos o apelo do clã. Então, para nossa própria surpresa, atendemos ao chamado.
Este sentimento de família é, provavelmente, a principal razão pela qual o judaísmo, enquanto religião, nunca se dedicou muito ao proselitismo – da mesma forma como família alguma jamais sairia às ruas para arrebanhar mais elementos para integrar seu núcleo familiar.
Isto não significa que os judeus se sintam superiores ou inferiores; apenas que, desde tempos imemoriais, possuem padrões e estilo de vida próprios. Mesmo quando os membros da família estão afastados do lar, quando estão vagando pelo mundo, mantêm seu estilo de vida próprio, seja nos aspectos teológicos, sociológicos e comportamentais.
Certamente, os membros de uma família podem ter sérios atritos, indivíduos e grupos podem apartar-se, mas não têm como deixar a família. Pode-se mesmo odiá-la, mas é impossível dela se afastar. Finalmente, chega-se à conclusão de que não há como escapar. Sendo assim, é muito melhor descobrir os tipos de vinculação existentes, já que a conexão não é opcional. Nasce-se com a mesma, e já que não há saída, é bem melhor saber de onde viemos e quem somos.
Para alguns membros do nosso povo, sua história lembra um pouco a fábula do pato que foi chocado por uma galinha. Às vezes, nossos patinhos se desenvolvem em um ambiente diferente. São ensinados a pensar e agir de formas completamente diferentes. Os judeus adotaram várias outras culturas, identidades nacionais e até religiões. Algumas vezes, há um reconhecimento e um retorno maravilhosos.
Freqüentemente, porém, a descoberta de que somos um pouco diferentes, que nosso meio é outro, acontece de uma forma nada agradável. Porém, quando vir-me diante da água, nadarei, muito embora aqueles que me criaram e educaram não possam fazê-lo.
O tema pertencer ou não a um grupo e sua descoberta estão presentes na literatura universal. Na vida real, consciente ou inconscientemente, cada pessoa tem seu próprio momento de descoberta. Se o indivíduo fizer esta descoberta prematuramente, não apenas terá a possibilidade de assimilar o fato de pertencer a algum lugar (ao menos para que possa ser enterrado no local correto), mas também de fazer com que sua vida tenha, de certa forma, mais sentido. Paradoxalmente, a liberdade surge da aceitação de uma estrutura definida da qual não nos podemos afastar..
Considera-se geralmente a família como uma unidade biológica. A família judaica, porém, é e não o é. Falamos de nós mesmos como sendo os filhos de Abraão e de Jacob. Mas, na realidade, nosso legado não é biológico. Nossa tribo é uma espécie muito diferente de tribo. Citando uma fonte antiga, quando falamos do pai ou da mãe de nossa família, dizemos que o pai é D’us e que a mãe é o espírito comunitário de Israel. Esta não é apenas uma afirmação teológica mística. É a maneira pela qual nossa família foi construída e o fator determinante de nossa forma de agir e sentir.
Quando falamos de D’us como nosso pai, não se trata apenas de uma imagem figurada, sentimos pertencer integralmente à fonte original da família. Sem sombra de dúvida, isto nos fortalece. No entanto, apesar de tudo, continuamos a agir como as demais famílias. A exemplo de todas as crianças, passamos por períodos de admiração por nosso pai, e também por momentos de conflito, podendo mesmo chegar a odiá-lo. Porém, jamais chegamos ao extremo de negar a existência de um pai, do nosso próprio pai.
Algumas crianças podem manifestar esta negação como um gesto de revolta, provocando reações diversas no seio da família. Alguns podem até ficar furiosos com isto, outros, esperam a criança se acalmar. Mas sempre, independentemente do alguém amar ou odiar, ser um crente fervoroso ou um herege convicto, jamais deixará de ser filho de seu pai.
Este vínculo básico é o que se chama religião judaica: ser membro daquela família. Temos a nossa própria história, mas esta não é a parte mais importante. Acima de tudo está a nossa relação com o pai e a mãe da entidade tribal à qual, de uma maneira ou de outra, todos pertencemos. E é isto o que faz sentido para aqueles que permaneceram.
Há inúmeras partes bem desiguais em nossa grande, sofrida e nem sempre gloriosa família. Quão cientes estamos dos vínculos que nos unem? Quão cientes estamos da existência uns dos outros? Muitas vezes tentamos ignorar, negar e até mesmo repudiar qualquer sensação de pertencer a essa família. Por outro lado, muitos estão retornando, conscientemente, ao aconchego familiar. E não é necessariamente uma busca por "D’us". Geralmente, este retorno é resultado de uma longa busca e de um sentimento, que nem sempre pode ser descrito, de volta ao lar.
Pode-se admirar mansões mais belas, locais mais atraentes, mas nada há que se compare ao lar. Pois como ocorre com indivíduos separados de sua família, a vagar pelo mundo, a desesperada tentativa de sermos independentes apenas nos leva à descoberta de que temos que voltar e descobrir o verdadeiro sentido de estar em nosso lar.
A essência verdadeira de um judeu se traduz pela capacidade de reconhecer e afirmar: "Eu pertenço, quer queira ou não. Esta é a parte mais profunda e mais importante de meu ser, mesmo que não concorde com todas as opiniões e conceitos sobre língua, cultura, nação ou religião. Definitivamente, eu pertenço à família. Quanto mais mergulho dentro de mim mesmo, mais importante o passado se torna. Posso rejeitar este passado, posso até eliminá-lo de dentro de mim e representar papéis na tentativa de imitar os outros, mas decididamente não posso mudar o que sou". E, então, se o indivíduo quiser descobrir mais sobre este legado, seguirá o caminho para casa. Não é um caminho fácil, mas tem suas compensações e sua própria verdade.
Quando animais criados dentro de um zoológico são libertados, muitas vezes sequer sabem se são lobos ou cordeiros. Precisam descobrir quem são. É um processo longo até que possam definir ser isto ou aquilo e, então, explorar e aprender os modos e o comportamento adequado a cada espécie. É um destino semelhante ao de um judeu que viveu afastado de seu meio. Poderá, talvez, encontrar quem o ajude. Poderá, também, instintivamente, mudar-se para o seu habitat natural. Quem sabe encontrará dificuldades que irão interferir em seu comportamento natural e, como conseqüência, só poderá ser corrigido em uma próxima geração. Não importa o que aconteça, ele estará enfrentando o problema e aprendendo a lidar com o mesmo.
Geralmente, este processo é acompanhado de trágicos infortúnios, encontros, desencontros, perdas e reencontros. Mas é, em sua essência, a situação de alguém que desperta e descobre que, mesmo tendo crescido em algum lugar da nova América, pertence a uma família muito antiga, com uns parentes estranhos, irmãos e irmãs que nem sempre são bonitos, a quem algumas vezes ama, outras não. Este alguém terá que se acostumar com essa idéia e decidir o que fazer acerca da mesma.
O Rabino Adin Even Israel, nascido Adin Steinsaltz, dirige o Instituto Israelense de Publicações Talmúdicas e uma ieshivá em Moscou.
Publicado na Revista Nefesh, 1992.