A festa de Pessach relembra a libertação dos hebreus da escravidão no Egito. Na noite do primeiro dia da comemoração, em 15 de Nissan, realizamos o Seder e rememoramos nossa independência, pois a data marca o aniversário do Êxodo. Em Israel, 94% dos judeus participam desse jantar cerimonial, o ritual religioso mais observado no país.
O Seder éum símbolo de nossa emancipação, portanto, não é surpreendente que, ao longo dos milênios, geração após geração, os judeus o tenham realizado com grande alegria, assim como qualquer nação comemora seu dia da independência. A liberdade, tema central da refeição solene, reflete-se nas normas e costumes seguidos na ocasião: vestimos nossas melhores roupas, fartamo-nos com um lauto jantar e, durante grande parte da cerimônia, inclinamo-nos para a esquerda ao comer e beber, como fazia a nobreza na Antiguidade. Além disso, há muitos cânticos e celebrações, como em qualquer verdadeiro Dia da Independência.
No entanto, apesar de tudo o que relembra e comemora, o Seder de Pessach inicia-se de maneira solene, com a recitação da Hagadá,a narrativa de nossa libertação, que começa com as palavras em aramaico Ha Lachma Anya: “Este é o pão da aflição”, que nossos antepassados comeram no Egito. Com isso, em primeiro lugar, somos lembrados de que os Filhos de Israel foram escravos do Faraó.
Além disso, nosso primeiro alimento é o Carpás, um pedaço de aipo mergulhado em água salgada, que simbolizam, respectivamente, os chicotes usados para açoitar os escravos judeus e as lágrimas desses oprimidos. Dessa forma, tanto o Seder quanto a Hagadá começam com um tom de lamento, com a recordação do sofrimento de nossos antepassados no Egito e seu clamor desesperado a D’us por salvação e libertação.
Um dos elementos centrais do jantar cerimonial é o Maror, a alface amarga, que representa o sofrimento de nossos ancestrais no Egito. Embora seja um ritual religioso marcado pela alegria, o Seder de Pessach tem, entre seus temas, os padecimentos do nosso povo.
Um dos trechos mais conhecidos da Hagadá declara que, em todas as gerações, inimigos se levantam para destruir os Filhos de Israel, mas sobrevivemos porque D’us nos salva. Assim, ano após ano, a cerimônia solene destaca que, embora o Altíssimo tenha realizado milagres para nos libertar da escravidão no Egito e nos escolhido como Seu povo, enfrentamos ameaças, entre as quais o genocídio, ao longo da história.
Realizado pela primeira vez na véspera do Êxodo e celebrado há mais de 3.300 anos, o ritual milenar do Seder não ignora, nem dissimula o sofrimento judaico.
Pessach e a teodiceia
Dos muitos temas sobre os quais a festa da liberdadenos convida a refletir, um dos mais profundos, como se vê no texto da Hagadá e em certos ritos do Seder, é a teodiceia, a questão teológica mais complexa de todas: por que um D’us absolutamente bom, onisciente, onipresente e onipotente permite o mal e o sofrimento?
Nenhum problema desperta mais o interesse não só dos filósofos, mas também, de uma forma ou de outra, de qualquer pessoa interessada em religião. O Livro de Jó, um dos 24 do Tanach, trata desse assunto sem, no entanto, oferecer uma explicação definitiva para o sofrimento dos justos. Em vez disso, coloca a ideia de que um ser humano finito jamais poderá compreender plenamente os desígnios de um D’us infinito.
A história de Pessach toca em temas atemporais e universais que, ao longo dos milênios, inspiraram incontáveis pessoas, judeus ou não. Entretanto, também nos conduz a uma reflexão sobre a teodiceia, pois a narrativa não trata apenas de milagres e libertação, mas também de sofrimento e adversidade.
De acordo com o Livro do Êxodo, o segundo da Torá, os egípcios não só escravizaram e oprimiram os Filhos de Israel, mas também cometeram um genocídio contra eles. Em atendimento às ordens do Faraó, lançaram os judeus recém-nascidos ao Nilo.
É verdade que, no Antigo Egito, o soberano não era um Hitler e, mesmo nos períodos mais cruéis, a escravidão nunca se comparou ao Holocausto em termos de escala e diabolismo, porém a opressão de nossos antepassados naquele contexto tornou-se um paradigma do antissemitismo. É inegável que, ao contrário do líder nazista, o Faraó não buscava aniquilar totalmente os hebreus, mas sim impedir o nascimento daquele que os libertaria. Para isso, contudo, ordenou um assassinato em massa que, como ensina o Midrash, foi um banho de sangue de crianças judias.
Há mais um motivo pelo qual a história de Pessach inevitavelmente nos conduz à reflexão sobre a teodiceia: ninguém menos que seu herói e protagonista, Moshe Rabenu, se deparou com essa questão. No início do Livro do Êxodo, D’us aparece para o grande profeta e o designa como Seu emissário para libertar nossos ancestrais da escravidão.
Em atendimento ao chamado divino, Moshe retorna ao Egito quarenta anos após fugir desse país e, junto com Aharon, seu irmão mais velho, dirige-se ao Faraó para exigir, em Nome de D’us, a libertação dos Filhos de Israel. No entanto, em vez de acatar a Ordem Divina, o soberano intensifica ainda mais a opressão contra os judeus. O maior dos profetas percebe, então, que seus esforços tiveram o efeito oposto ao esperado: em vez da liberdade, trouxeram apenas novos padecimentos para nossos antepassados. Angustiado e incapaz de suportar o sofrimento de seus irmãos, agravado por consequência direta de sua obediência ao Mandado Divino, Moshe volta-se para o Eterno e diz: “Meu Senhor, por que afligiste este povo? Por que me enviaste? Desde que fui ao Faraó para falar em Teu Nome, ele tem maltratado ainda mais este povo, e Tu não o libertaste” (Êxodo 5:22-23).
Essas perguntas, que ressoam ao longo da história como um protesto, traduzem o sentimento de incontáveis pessoas diante de um sofrimento injusto e da opressão. São tão memoráveis porque, com elas, Moshe, em vez de atribuir a resposta cruel do Faraó ao livre-arbítrio do soberano, responsabiliza o próprio D’us pelo agravamento da aflição de nossos ancestrais.
O motivo dessa reação é a impossibilidade de crer que o Onisciente estivesse alheio aos acontecimentos, pois Ele mesmo, além de atribuir a missão libertadora ao grande profeta, revelou estar ciente do sofrimento e do clamor dos Filhos de Israel. Assim, não se aplica a essa situação o argumento teológico de que o mal só existe devido ao livre-arbítrio concedido ao homem.
O que faz das palavras de Moshe tão espantosas é que, em todo o Tanach, ninguém jamais se dirigiu a D’us dessa maneira. Ao interceder pela população de Sodoma, Avraham perguntou ao Altíssimo: “Acaso o Juiz de toda a terra não fará justiça?” (Gênesis 18:25). No entanto, tratava-se de uma súplica retórica, um apelo à misericórdia Divina. Moshe, por sua vez, vai além do nosso primeiro patriarca ou de qualquer outra figura da Torá: não só questiona D’us, mas também O responsabiliza pelos padecimentos do Povo de Israel.
Seja como for, essa não foi nem a primeira, nem a última contestação à Justiça Divina. Ao longo dos milênios, nossos Sábios debruçaram-se sobre a teodiceia para compreenderem por que D’us permite a existência do mal e do sofrimento no mundo. Na verdade, esse problema não deveria sequer existir no Judaísmo, muito menos ainda para Moshe, o maior dos profetas. No entanto, a questão persiste, tanto que é abordada em todas as nossas grandes obras sagradas.
Em teoria, a teodiceia não se coaduna bem com nossas indagações teológicas porque nós, judeus, que revelamos ao mundo o conceito da Unicidade Divina, sabemos que o Eterno é a própria essência da bondade, da justiça e da verdade absoluta, além de ser, por definição, perfeito. Conforme ensina o Talmud, “o selo de D’us é a verdade”. De fato, Emet (verdade, em hebraico) é um dos nomes do Altíssimo.
De fato, como declaramos três vezes ao dia em nossas orações: “D’us é bom para todos; Sua misericórdia se estende a todas as Suas criaturas” (Salmos 145:9). Atribuir-Lhe erros, equívocos, injustiças ou falta de bondade equivale a negá-Lo tanto quanto o faz um ateu. Na verdade, rejeitar qualquer um de Seus atributos pode ser ainda mais problemático do que não crer em Sua existência.
O Judaísmo não se furta a abordar a teodiceia, tema central do Livro de Jó. Contudo, a conclusão desse texto sagrado é que o homem não está em posição de questionar os Desígnios Divinos. Em outras palavras, por definição, D’us está sempre certo, tenhamos ou não capacidade de compreender ou aceitar isso. Podemos angustiar-nos diante do que nos pareça infundado, mas, no fim, não há como escapar da verdade: D’us é sempre justo e reto.
Segundo o Talmud, a contestação da Justiça Divina exige extrema cautela. É um ato de suprema arrogância, como se o homem pudesse saber mais ou melhor que o Infinito, que é Atemporal e Onisciente. Como tal, tem enorme gravidade, e os Céus não o deixam passar despercebido.
De fato, aquelas duras palavras de Moshe ao Criador tiveram consequências amargas. De acordo com o Talmud (Sanhedrin 111a), foi por causa delas que o libertador dos hebreus foi impedido de entrar na Terra Prometida. O episódio em que o profeta bateu na rocha em vez de falar com ela, relatado no Livro de Números, foi apenas um pretexto, pois D’us decretara a proibição punitiva já no momento do protesto de Moshe contra o agravamento da situação do Povo Judeu.
Diante de todos esses acontecimentos, surge uma questão complicada: como pôde aquele que foi (e sempre será) o maior profeta da História dirigir-se ao Onipotente de maneira tão inadequada? Se há alguém de quem menos se esperaria tal atitude, esse é justamente Moshe, dotado de um nível de profecia que não será atingido nem mesmo pelo Mashiach e escolhido para receber a Torá de D’us. Além disso, nenhum outro ser humano mereceu tanta proximidade e confiança do Altíssimo, nem demonstrou tanta devoção quanto ele.
Na Amidá da oração matinal de Shabat, Moshe é chamado de servo fiel (Eved Ne’eman). De fato, D’us afirma: “Ora, Moisés era extremamente humilde, mais do que qualquer pessoa sobre a face da terra” (Números 12:3). Além disso, expressa Sua total confiança nele: “Ouvi, agora, Minhas palavras: Se houver um profeta entre vós, a ele Me revelarei em uma visão; em sonhos falarei com ele. Mas com Meu servo Moshe não é assim; em toda a Minha casa, ele é o mais fiel. Falo com ele face a face, de maneira clara e não por enigmas... Por que, então, não temestes falar contra Meu servo Moshe?” (Números 12:6-8).
Como pôde o maior profeta de todos os tempos, que tinha uma compreensão de D’us mais profunda que a de qualquer outro e em quem Ele confiava acima de todos, dirigir aquelas palavras ao Altíssimo? Como pôde alguém tão próximo ao Eterno acusá-Lo de agir com injustiça e causar sofrimento aos Filhos de Israel? Mais que ninguém, Moshe deveria conhecer Seus atributos. Como, então, pôde dar voz a tais acusações?
Segundo o Rebe de Lubavitch, aquela fala reflete a fé inigualável do profeta e não uma suposta falta de fé.
Providência, Justiça e Bondade Divina
Moshe Rabenu, o maior profeta de todos os tempos, foi quem melhor compreendeu que a Divina Providência determina tudo no mundo. Como ensinam o Talmud e o Midrash, ninguém nem sequer fere um dedo sem que isso tenha sido decretado pelos Céus.
Segundo o Rabi Israel Baal Shem Tov, grande mestre da Cabalá e fundador do Movimento Chassídico, até mesmo a queda de uma folha de uma árvore ocorre sob a supervisão Divina. Se o Onisciente preside os mínimos detalhes da existência, certamente também governa o destino do Povo Judeu.
Já ao firmar o pacto com Avraham, D’us revelou a nosso primeiro patriarca: “Saiba com certeza que seus descendentes serão estrangeiros em uma terra que não lhes pertence, onde serão escravizados e oprimidos por quatrocentos anos. Mas também julgarei a nação que os subjugará, e depois sairão com grande riqueza” (Gênesis 15:13-14).
Vemos, pois, que o Altíssimo já havia decretado esse período de exílio e opressão. Portanto, do ponto de vista teológico, é incorreto ver a escravidão dos Filhos de Israel apenas como resultado do mau uso do livre-arbítrio humano, sem a participação da Divina Providência.
Ainda assim, como ensinam nossos Sábios, o Faraó, bem como o Egito, foi punido por sua crueldade e maldade. Sem consciência de que a aflição dos judeus fazia parte de um plano dos Céus, o soberano agiu em função de interesses egoístas e perversos, não como um instrumento da Vontade Divina.
Como o homem que mais se aproximou de D’us na História, Moshe sabia que o Onipotente, além de determinar tudo o que acontece no mundo, é perfeito, verdadeiro, justo e íntegro. Como se lê no fim da Torá: “Quando eu proclamar o Nome do Eterno, atribuam grandeza ao nosso D’us. A Rocha – perfeita é Sua obra, pois todos os Seus caminhos são justiça; um D’us de fidelidade, sem iniquidade, justo e reto é Ele” (Deuteronômio 32:3-4).
Além disso, o grande profeta, o maior mestre da Torá de todos os tempos, com certeza sabia que o Eterno não só é a própria essência da bondade, mas também, conforme ensina a Cabalá, criou o mundo movido pelo desejo de distribuir Sua benignidade.
Moshe também estava ciente, mais que nenhum outro, de algo que o Altíssimo expressou claramente quando lhe ordenou que retornasse ao Egito para libertar nossos antepassados: Seu amor pelo Povo Judeu: “Você dirá ao Faraó: ‘Assim disse o Eterno: Meu filho primogênito é Israel. Eu te ordeno: deixa Meu filho partir para que Me sirva, mas, já que te recusas a deixá-lo ir, eis que matarei teu filho primogênito’ ” (Êxodo 4:22-23). D’us não poderia ter demonstrado melhor Seu sentimento por uma nação do que chamá-la de Seus filhos, afinal o amor paterno é o mais profundo e inabalável que existe. Além disso, como é justamente o primogênito que transforma um casal em pais, esse título carrega um significado ainda mais poderoso.
O que torna tão profunda a maneira pela qual D’us se refere ao Povo de Israel é a indissolubilidade da ligação entre pai e filho, uma realidade que nada pode alterar. Por mais falho que seja um ou outro, nada muda o laço entre eles. Por mais que se afaste ou se rebele, o homem será sempre filho de seu pai e vice-versa. Trata-se de um vínculo inquebrantável.
Ao referir-se ao Povo Judeu como Seu primogênito, D’us afirma a eternidade e indestrutibilidade de Sua ligação com esse povo. De fato, um tema recorrente na Torá, no Tanach, no Talmud e no Midrash é o amor do Eterno pela nação de Israel mesmo quando nos desviamos e agimos de maneira reprovável.
Por ter alcançado a compreensão mais profunda possível de D’us, Moshe não só entendia a Divina Providência em um nível sem precedentes, mas também sabia que o Onipotente é perfeito e justo. Também conhecia, sem a menor dúvida, Seu amor incondicional pelos Filhos de Israel.
Por isso, ao retornar ao Egito após quarenta anos, o grande profeta ficou perplexo diante da intensificação do sofrimento dos judeus, resultante, ao que parecia, de sua chegada. Seu protesto não foi uma acusação, mas um questionamento genuíno. Em essência, Moshe perguntava: “Se tudo o que ocorre é determinado por Ti e Tu és absolutamente bom, como pode acontecer algo ruim?”.
Com isso, o profeta tornou-se a voz de todo ser humano verdadeiramente religioso e consciente. A teodiceia, a tentativa de conciliar a existência do mal e do sofrimento com a Justiça e a Bondade Divina, só é uma questão relevante para aqueles que acreditam em D’us, creem em Sua Bondade Absoluta e partem do princípio de que os seres humanos, por natureza, são dignos do bem.
Para os ateus, agnósticos ou mesmo deístas (que acreditam em um Criador, mas não em Sua intervenção nos assuntos humanos), quase não se coloca o problema teológico do mal e da injustiça, ocorrências que, para elas, se devem simplesmente à própria natureza humana ou às leis que regem o mundo. Segundo essa visão, tudo o que afronta o bem aconteceria porque há pessoas iníquas ou até mesmo perversas cujos atos a sociedade não consegue impedir. Outros tipos de sofrimento resultariam da biologia humana, da estrutura do universo ou das limitações inerentes à própria existência.
A teodiceia também é irrelevante para aqueles que, embora acreditem em um D’us justo e perfeito que governa o mundo com Providência, veem a humanidade como pecadora por natureza e, portanto, merecedora de sofrimento. Assim, a solução dos dilemas teológicos resume-se à expiação dos pecados de si mesmo ou dos outros, remontando até mesmo a Adão e Eva.
Moshe Rabenu amava D’us e Israel como nenhum outro jamais poderia. Seu protesto ao Eterno reflete não falta de fé, mas uma crença inabalável e amor intenso, um desejo de conciliar sua compreensão da Bondade Divina com o sofrimento do Povo Judeu. Embora tenha questionado D’us e arcado com as consequências disso, suas intenções não poderiam ter sido mais nobres. O que, à primeira vista, pode parecer incredulidade era, na verdade, a mais poderosa demonstração de confiança absoluta no Onipotente e amor incondicional pelos Filhos de Israel.
A resposta ao clamor de Moshe
Como D’us respondeu ao questionamento do profeta: “Meu Senhor, por que afligiste este povo?” (Êxodo 5:22). O Eterno não ofereceu uma explicação direta nem sobre o sofrimento dos judeus, nem sobre a intensificação dele após a primeira ida de Moshe ao soberano do Egito. No entanto, a resposta que a Torá registra contém, em si, um ensinamento profundo: “Agora verás o que farei ao Faraó, pois com mão poderosa ele os deixará partir, e com mão poderosa os expulsará de sua terra” (Êxodo 6:1). Trata-se, em outras palavras, de um convite à paciência e à observação do desenrolar dos acontecimentos: o sofrimento logo daria lugar a milagres e maravilhas.
Pouco depois, D’us iniciou, por meio de Moshe, as pragas contra o Egito e, com elas, um processo de libertação tão extraordinário que, mais de três milênios depois, o Êxodo ainda representa uma fonte inesgotável de inspiração. Assim, séculos de escravidão e opressão deram lugar a milagres que culminaram com a saída do Egito em 15 de Nissan. Cinquenta dias depois, no Monte Sinai, D’us revelou-Se, proclamou os Dez Mandamentos e selou a missão eterna de Israel como Seu povo escolhido.
Assim, os acontecimentos relembrados na festa de Pessach começam com sofrimento e tragédia, mas terminam com júbilo e triunfo. Fiel à narrativa do Livro do Êxodo, a Hagadá inicia-se de maneira solene, com menção ao pão da aflição, símbolo da escravidão, mas, em um crescendo, passa a descrever os milagres no Egito, as Dez Pragas e a abertura do mar. Pouco depois, chegamos ao canto Dayenu, que expressa nossa gratidão a D’us por todas as bênçãos concedidas a nossos antepassados.
Durante o Seder, bebemos quatro taças de vinho e desfrutamos de uma refeição farta, digna da realeza, que comemora a liberdade conquistada. No encerramento da cerimônia, antes de tomarmos a bebida pela quarta vez, elevamos louvores a D’us e, em sinal de exaltação e gratidão, recitamos o Salmo 136, conhecido como Hallel HaGadol (O Grande Hallel ) e marcado por seu refrão: “Pois Sua bondade é eterna” (ki l’olam chasdo, em hebraico). O Salmo celebra a criação do mundo, os milagres da redenção do Povo Judeu e o cuidado incessante do Altíssimo por todas as criaturas.
De fato, um dos temas centrais do Seder, a mais clássica narrativa de ascensão da escravidão à redenção, está resumido no seguinte trecho da Hagadá: “Por isso, devemos agradecer, louvar, elogiar, glorificar, honrar, enaltecer e exaltar Aquele que realizou todos estes milagres para nossos antepassados e para nós: Tirou-nos da escravidão para a liberdade, da servidão para a redenção, da aflição para a alegria, do luto para a festa, das trevas para a luz”.
O Seder de Pessach é tão jubiloso porque, apesar de começar com tragédia, termina em triunfo. Como ensinam nossos sábios: Sof Tov, HaKol Tov (Se o fim é bom, tudo foi bom). Em outras palavras, o desfecho de uma história define sua essência: uma conclusão feliz tem o poder de redimir até os momentos mais sombrios.
Assim, como a narrativa de Pessach culmina com a libertação dos Filhos de Israel e a escolha deles como povo eleito de D’us, esse fim se sobrepõe ao sofrimento que precedeu a redenção, ainda que não o apague por completo.
Seja como for, comemos o Maror durante o Seder, pois nenhuma alegria consegue anular completamente as dores do passado. O Êxodo do Egito (juntamente com os milagres que o antecederam e se seguiram a ele) e a Revelação Divina no Sinai foram os acontecimentos mais extraordinários de toda a história. No entanto, antes disso, milhões de judeus escravizados foram torturados e inúmeras crianças, assassinadas.
Portanto, para honrar aqueles que sofreram e garantir que nunca nos esqueçamos deles, o Seder de Pessach preserva elementos que, mesmo após mais de três mil anos, ainda relembram as provações e tribulações enfrentadas por nossos ancestrais.
De fato, nem a vitória ou conquista mais grandiosa apaga todos os sofrimentos do passado, sobretudo aqueles de proporções inimagináveis como o Holocausto, uma tragédia incomparavelmente mais devastadora que a escravidão dos nossos ancestrais no Egito.
Os grandes milagres que se seguiram a esse monstruoso genocídio – o retorno do nosso povo à Terra de Israel, seguido da reconstrução de um Estado judeu em nossa pátria ancestral e com capital em Jerusalém – representaram um triunfo nacional extraordinário. No entanto, nem mesmo a realização desse sonho de dois mil anos compensa o assassinato de seis milhões de irmãos nossos, entre os quais um milhão e meio de crianças.
Em vista disso, para a questão da teodiceia, talvez não haja outra resposta, ainda que imperfeita e insatisfatória, além da festa de Pessach, sobretudo o Seder. A única forma de lidar com as contradições teológicas é o reconhecimento de nossa incapacidade de compreender ou explicar certos aspectos da realidade. Se assim foi até para Moshe, o maior profeta de todos os tempos, quanto mais o será para nós.Sem dúvida, o Judaísmo ensina que a Divina Providência rege o mundo, bem como que D’us, por definição perfeito e essencialmente bom, ama a humanidade e escolheu o Povo de Israel para cumprir uma missão única na Terra. É justamente por aceitarmos todos esses princípios fundamentais como verdadeiros que, da mesma forma que Moshe, ficamos tão perplexos diante do mal e do sofrimento.
Talvez a única resposta para esse dilema teológico, o mais complexo de todos, esteja nas palavras de D’us ao maior dos profetas: “Agora verás o que farei” (Êxodo 6:1). Ou seja: “Hoje, você pode não compreender o que se passa, mas, no futuro, entenderá. Um dia, ao olhar para trás, poderá até comemorar o desfecho dos acontecimentos”.
Ter fé significa acreditar que nós, como indivíduos, Povo Judeu e seres humanos, acabaremos por compreender aquilo que hoje está completamente além de nosso entendimento.
De fato, todos passamos por momentos que, à primeira vista, parecem terríveis, mas, com o tempo, tornam-se bênçãos. No entanto, certos acontecimentos pessoais ou coletivos são tão dolorosos que não conseguimos sequer conceber uma explicação para eles.
Na verdade, ainda não temos respostas para inúmeras perguntas que fazemos a D’us. Segundo nossos Profetas e Sábios, a redenção total, com o fim de todo sofrimento passado ou presente, só ocorrerá na Era Messiânica. Somente então, quando o mundo alcançar a plenitude, todas as nossas perguntas a D’us serão respondidas.
Por enquanto, é possível que encontremos algum consolo no ensinamento do Talmud de que a recompensa é proporcional ao sofrimento. Se as aflições enfrentadas pelos Filhos de Israel no Egito deram lugar a tantos milagres Divinos, muito maior será a recompensa por dois mil anos de exílio e perseguições que culminaram com o extermínio bárbaro de seis milhões de judeus.
De fato, segundo a mesma obra, todos os milagres de Pessach serão insignificantes em comparação com os que ocorrerão na Era Messiânica. Talvez, então, o mundo seja tão transformado e a alegria tão imensa que nós, judeus, finalmente consigamos superar até mesmo os momentos mais dolorosos de nossa história, em particular, o Holocausto.
O início do Seder de Pessach, como tudo na refeição cerimonial, é profundamente significativo: quatro filhos, que representam todos nós, fazem ao pai, que simboliza D’us, as famosas Quatro Perguntas: Ma Nishtaná Haláila Hazé Mikôl Halelôt? (Por que esta noite é diferente de todas as outras?). Por trás delas, encontra-se a mais difícil e misteriosa de todas: a mesma que Moshe Rabenu dirigiu a D’us sobre o sofrimento humano, uma indagação que ressoa ao longo da história há mais de três milênios.
Sim, fazemos muitas perguntas a D’us e não pararemos até que tenhamos as respostas ou, melhor ainda, até que não haja mais necessidade de fazê-las porque todo sofrimento, passado ou presente, terá sido completamente dissolvido na paz e no júbilo que envolverão o mundo.
Que esse dia chegue em breve, muito em breve, antes mesmo do que possamos imaginar.