Pertinaz e destemido, o Münchener Post entrou para a história como o primeiro jornal a fazer campanha e oposição sistemáticas ao nazismo, com reportagens corajosas e um acompanhamento milimétrico dos passos de Adolf Hitler rumo ao poder. Revelou, em dezembro de 1931, a idéia da chamada “Solução Final” para a questão judaica.
Os alertas daqueles jornalistas foram ignorados e seu arrojo editorial significou ataques de gangues hitleristas à redação, queima de jornais e de arquivos, destruição de móveis e janelas e agressões físicas. A cortina da barbárie lacrou a publicação em 1933 e vários de seus intrépidos profissionais enfrentaram cárcere e morte em campos de concentração.
“A verdadeira personalidade de Hitler foi colocada de forma dolorosamente clara em notícias impressas periodicamente, por pelo menos 12 anos, antes de ele dirigir o país”, escreveu a pesquisadora Sara Twogood em trabalho sobre o Münchener Post para um projeto de estudos sobre o Holocausto, da Universidade da Califórnia-Santa Barbara. Prosseguiu o seu texto: “Militantes contra Hitler lutaram com seus corações e colocaram em risco sua liberdade e vida, esperando que o mundo os ouvisse. Entre esses homens, Martin Gruber, Erhard Auer, Edmund Goldschagg, Julius Zerfass e outros, repórteres e editores do Münchener Post. Eles enfrentaram o aprisionamento e a morte, tentando sem sucesso alertar o mundo sobre o homem que personificava o mal, Adolf Hitler”.
O líder nazista não escondia seu profundo incômodo e irritação com as estocadas do jornal. Chamava-o de “a cozinha do veneno”. Num trocadilho, também o descrevia como “Münchener Pest”, ou a peste de Munique, segundo Paul Hoser, autor de um livro sobre a imprensa na capital da Bavária, entre 1914 e 1934.
A impressionante história de militância e de coragem da redação bávara foi definida pelo escritor norte-americano Ron Rosenbaum como “um dos maiores dramas não relatados na história do jornalismo”. Também jornalista, ele se responsabilizou por jogar um pouco de luz sobre a trajetória do corajoso jornal de Munique, ao descrevê-la em um dos capítulos de sua obra “Para entender Hitler – a busca das origens do mal”, lançado nos Estados Unidos em 1998 e posteriormente publicado no Brasil pela Editora Record.
Enquanto não existe um livro dedicado exclusivamente à história do principal personagem do jornalismo antinazista na Munique dos anos 1920 e 1930, a navegação insistente pela internet propicia a captura de alguns dados sobre o Münchener Post. Fundado em 1888, tornou-se porta-voz da social-democracia alemã e, em 1890, contabilizava a tiragem de 8 mil exemplares, ampliada para 30 mil em 1914 e atingindo um pico de 60 mil no início dos anos 1920. Ao ser fechado, em 1933, e já enfrentando os efeitos do nazismo na ofensiva, a circulação havia emagrecido para 15 mil cópias diárias.
Foram, portanto, 12 anos de intensa batalha contra Hitler. Os articulistas se especializaram em reportar os meandros do partido nazista, suas intrigas, escândalos, lutas faccionais e estratégias. Embalados pela ligação com o SPD, o partido social-democrata alemão, travavam uma luta ideológica num terreno em que do outro lado do espectro político despontava o Volkischer Beobachter, jornal oficial do NSDAP, sigla do partido nazista. Havia também publicações conservadoras contrárias ao nazismo, como o Der Gerade Weg, dirigida pelo jornalista Fritz Gerlich em meados da década de 1920.
Aquela década correspondia a um período de intenso tiroteio político. Já em 16 de outubro de 1919, num prenúncio das nuvens escuras que se avizinhavam, Adolf Hitler realizou o que é considerado seu primeiro pronunciamento num evento público. Poucas pessoas compareceram a esse encontro do NSDAP, divulgado por meio de um anúncio no Münchener Beobachter. Segundo a pesquisadora Sara Twogood, a idéia da mobilização via jornal, até então inédita no partido, é creditada a Hitler.
Em 24 de fevereiro de 1920, o partido nazista mostrou suas garras em Munique ao realizar o que recebeu o rótulo de “seu primeiro ato para as multidões”. Os hitleristas ainda davam os primeiros passos para se tornar uma “organização de massa” e a prioridade de seu líder, naquele momento, visava consolidar uma posição na capital da Bavária, mergulhada em crises e instabilidade política, econômica e social.
O faro político e jornalístico da equipe do Münchener Post permitiu-lhe destacar Hitler, já em agosto de 1920, como o principal agitador da cidade. Nas reportagens, o NSDAP aparecia inúmeras vezes descrito como o “partido de Hitler”, num diagnóstico para destacar o culto à personalidade inspirador das primeiras hordas nazistas. Os repórteres também se referiam a Hitler como o “líder dos fascistas alemães”.
Os primórdios da era que mergulhou a Alemanha no nazismo deixaram claros os contornos da batalha entre Adolf Hitler e o vigoroso diário de Munique. Em novembro de 1921, nazistas e social-democratas se enfrentaram, aos socos e golpes de canecas de cerveja, após um discurso de Hitler numa cervejaria em Munique e depois de uma tentativa de assassinato de Erhard Auer, articulista do Post e porta-voz do SPD. Anos depois, ao escrever o “Mein Kampf”, livro que sintetizou sua ideologia, Hitler referiu-se àquela batalha campal como “batismo de fogo” dos homens da SA, sua tropa de choque, explicitando a importância que atribuía ao antagonismo abissal com o Münchener Post. O jornal lançava inspiradas charges contra seu inimigo ideológico. Enfileirava reportagens sobre as divisões internas do nazismo, chegando a publicar, em agosto de 1921, um panfleto intitulado “Adolf Hitler, traidor”, produzido dentro do NSDAP e que trazia questionamentos sobre as finanças do líder fascista. A partir desse gancho jornalístico, o Münchener Post também indagava de onde vinham os recursos que permitiam ao recém-chegado à cena política sustentar hábitos como consumir cigarros sofisticados ou circular em carros de luxo.
Hitler processou o jornal e, contando com simpatia no ambiente conservador do poder judiciário na Bavária de então, arrancou uma multa para o Münchener Post. A partir de então, as tentativas de intimidação não cessaram. Variavam entre insistentes recursos ao tribunal, com freqüentes vitórias, a telefonemas com ameaças de morte a jornalistas. Tais ligações costumavam vir na calada da noite. Uma rápida pesquisa nos arquivos do The New York Times demonstra que em 6 de outubro de 1932 o diário noticiou que os nazistas processavam o Post de Munique por conta de uma reportagem sobre pedido de proteção policial a autoridades socialistas de Ernst Roehm, chefe da SA, que temia ser assassinado por rivais no universo hitlerista. Dois anos depois, por ordem de Hitler, Roehm foi executado.
Se a pressão judicial e a intimidação com ameaças não continham a obstinação do Münchener Post, Hitler resolveu recorrer à destruição da redação de seu inimigo. No dia 8 de novembro de 1923, um grupo especial da SA atacou o prédio do jornal, destruindo os vidros com coronhadas de rifles, invadindo e vandalizando os escritórios e agredindo quem estivesse à frente da sanha nazista. Na rua, foram amontoados exemplares de jornais, arquivos e material de propaganda social-democrata. Uma fogueira ardeu, seguindo o roteiro da queima de livros e de publicações condenadas pelo nazismo.
O ataque compunha a fracassada tentativa de golpe protagonizada por Hitler, conhecida como o “putsch de Munique”. Inspirado na Marcha sobre Roma, capitaneada por Benito Mussolini, o líder nazista tentou capturar o poder para enterrar a república de Weimar e assumir as vestes de ditador. Em sua mobilização pelas ruas da capital da Bavária, tropas da SA já saíram com uma lista de judeus proeminentes para serem presos e tiveram um sucesso parcial nessa ofensiva.
O golpe, no entanto, ruiu no dia seguinte. Hitler e alguns conspiradores foram encarcerados. Outros, como Hermann Goering e Rudolf Hess, se refugiaram na vizinha Áustria. Mas em dezembro do ano seguinte, o líder do “putsch” fracassado já estava em liberdade e com o caminho reaberto para chegar ao poder. O Münchener Post voltou então a se mobilizar.
A década de 1930 começou com maus presságios. Hitler aumentava o volume de suas ameaças de “aniquilar os opositores”, entre eles o SPD, que, em sua convenção anual realizada em 1931, apontou o fantasma do nazi-fascismo como a principal inimigo a ser enfrentado. As páginas do Münchener Post se encheram de reportagens cada vez mais ousadas, a fim de alertar o país sobre a catástrofe que o rondava.
Em 9 de dezembro de 1931, o jornal obteve um documento que explicitava planos secretos dos nazistas para a chamada “Questão judaica” e publicou uma série de medidas anti-semitas que viriam a ser contempladas mais tarde com as Leis de Nüremberg, implantadas em 1935. A reportagem do Münchener Post antecipou ainda o conceito de “Solução Final”, então apoiada na idéia de “usar os judeus na Alemanha para trabalho escravo”. Mais tarde, esse conceito seria transformado na máquina da morte responsável pelo massacre de seis milhões de judeus.
A formidável pertinácia dos jornalistas do Münchener Post prosseguiu impondo recuos, ainda que de curta duração, ao ímpeto hitlerista. Em 1932, estampou a manchete “Pronto para Guerra Civil – o Plano da Marcha dos Nazistas”, sob a qual relatava uma ordem de Roehm, o chefe da SA, para a preparação de manifestações por ruas de Munique. A reportagem resultou numa proibição temporária de ações da SA e da SS na Bavária.
Novo duelo em 1932, quando das reportagens sobre a morte misteriosa de Angelika “Geli” Raubal, meia-sobrinha de Hitler. Os dois moravam em um apartamento em Munique, e corriam rumores sobre um relacionamento amoroso. Em 19 de setembro de 1931, ela foi encontrada morta, no apartamento, com um tiro. A versão oficial falou em suicídio.
O Münchener Post trouxe uma série de reportagens sobre o caso, com questionamentos que enfureceram Hitler. Em janeiro de 1933, quando crescia exponencialmente o nazismo, embebido em sua tenacidade, o jornal publicou uma reportagem sobre o assassinato de Herbert Hentsch, um adolescente hitlerista assassinado por comparsas de partido. A morte teria sido uma punição “por desvios na disciplina”. Manchete do Münchener Post: “O que você fez, Hitler?”. Os assassinatos políticos se transformaram em um dos focos da cobertura, que trouxe títulos como “Mãos do Partido Nazista gotejam com sangue” e “Alemanha hoje: nenhum dia sem morte”, conforme descreveu a pesquisadora Sara Twogood.
Uma série de três reportagens especiais tentou colocar holofotes sobre iniciativas hitleristas de falsificação da história. O Münchener Post combatia, há tempos, as investidas do nazismo em tentar responsabilizar os socialistas alemães pelo mergulho do país na 1ª Guerra Mundial. Em seus últimos dias, apesar da torrente nazista, o jornal não movia um milímetro de suas posições e mantinha a combatividade.
No dia 9 de março de 1933, em plena marcha do nazismo para o fortalecimento do poder, foram banidos os últimos remanescentes da mídia oposicionista. Entre eles, o Münchener Post. Sua sede foi novamente invadida pelas gangues da SA. Móveis foram lançados pela janela. Uma fogueira foi acesa na rua e alimentada por exemplares do jornal. Sua luta admirável, infelizmente, havia sido em vão.
O Jornalista Jaime Spitzcovsky, foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.