Alguns dias após sua deportação para Treblinka junto com todos os residentes do orfanato que dirigia, Korczak conseguiu fazer chegar às mãos de um amigo polonês as páginas de seu diário e este as escondeu até o fim da 2ª Guerra Mundial.
Korczak escreveu seu diário no Gueto de Varsóvia, no período de maio a agosto de 1942. Embora desde 1939 sentisse necessidade de deixar um legado espiritual, tendo mesmo iniciado os primeiros registros já em janeiro de 1940, foi só dois anos mais tarde, quando a morte se aproximava, que o médico-educador retomou o trabalho, e o levou a termo.
Para entender e poder avaliar seu relato, temos que levar em conta o local, o momento e as circunstâncias em que foi escrito. O gueto era, então, uma área na capital, relativamente restrita e cercada por muros, onde se comprimia uma população de mais de meio milhão de judeus oriundos de Varsóvia e localidades próximas. Korczak o chamava de "o distrito dos condenados", assim o descrevendo: "A aparência do lugar muda de um dia para o outro: uma prisão, uma área acometida por uma epidemia, um asilo de lunáticos".
A fome e o tifo dizimavam a população. As pessoas morriam nas ruas e os encarregados não davam conta da remoção dos cadáveres. Removidos pela manhã, novas pilhas se formavam à tarde. Crianças brincavam nas calçadas, em meio a corpos apenas cobertos por jornais. O tempo, como o conhecemos, dos dias e dos meses, não existia. A existência era conduzida de um instante a outro.
Na época em que escreveu seu diário, Korczak estava com 64 anos e com a saúde muito debilitada. Sofria do coração, além de estar, aos poucos, sucumbindo sob o peso da responsabilidade pelo destino de mais de 200 crianças e adolescentes, na faixa dos sete aos dezessete anos. Durante a ocupação alemã, seu orfanato situava-se em um prédio na esquina das ruas Sienna e Sliska, desde que fora transferido da sede da rua Krochmalna 92, porque esta se encontrava fora dos muros do gueto.
No orfanato, as atividades se concentravam no salão do segundo andar, que, à noite, servia de dormitório, mas de dia se transformava em refeitório e sala de aula. Os eventos e reuniões eram no salão do terceiro andar, onde foi encenada a última peça teatral, "O Correio", do indiano Rabindranath Tagore.
O ambiente era calmo e bem organizado, em virtude de praticarem os princípios pedagógicos de Korczak. A pequena comunidade infantil tinha seu autogoverno, seu tribunal, seu pequeno jornal; havia turnos para a rotina diária: atividades de aula e lições de casa. As crianças estudavam, limpavam e arrumavam a casa, trabalhavam na lavanderia e na cozinha. Uma vez por semana, regularmente, eram todos pesados e medidos, para acompanhar seu crescimento. A alimentação, no orfanato, era muito simples e restrita, mas, para os padrões do gueto, era até luxuosa.
Desde 1911, a rotina diária da instituição ficava a cargo da assistente do professor, Stefania Wilczynska. Korczak saía de manhã e só retornava mais tarde. Era responsável por 200 crianças e precisava providenciar seu sustento. Visitava escritórios de instituições da comunidade judaica, pessoas com recursos, até mesmo colaboradores. Dessas verdadeiras peregrinações, ele voltava esgotado. À noite ficava na enfermaria, ao lado das crianças mais debilitadas, entregue a seus pensamentos e escritos.
No diário, Korczak fala consigo mesmo, registra pensamentos, memórias e impressões. Nas primeiras páginas, revela a intenção de transmitir para o futuro o legado de suas experiências, teorias e opiniões. Mas com o progredir das linhas, seu desenho inicial se torna cada vez mais distante, porque desligar-se da agonia do gueto era praticamente impossível. Sempre franco, manteve-se fiel às verdades professadas ao longo de sua vida, defendendo-as até o fim.
Em julho de 1942, quando já era evidente que o gueto estava para ser liquidado, uma antiga assistente dos tempos anteriores à guerra, Maryna Falska, fez uma última tentativa de salvar Korczak. Antes disso, inúmeras vezes seus amigos de fora dos muros tentaram convencê-lo a deixar o espaço murado, oferecendo-lhe ajuda. A assistente havia preparado tudo, escrupulosamente: uma carteira de identidade alemã, com nome falso, e um quarto seguro na periferia de Varsóvia, nas proximidades do orfanato polonês que ele dirigira, antes da ocupação alemã. Mas ele nem em sonhos abandonaria suas crianças, para que, sozinhas, sufocassem nas câmaras de gás. Não teria forças de sobreviver depois disso...
No dia 5 de agosto de 1942, teve início a marcha das crianças e dos professores do orfanato, liderados por Janusz Korczak e sua assistente, Stefania Wilczinska. Arrumados, vestindo suas melhores roupas, as crianças marchavam em fileiras de quatro, carregando sua bandeira pelas ruas desertas de Varsóvia, em direção à Umschlagplatz, o ponto de reunião perto da estação de trens, Gdansk. De lá foram transportados em vagões de gado, para o campo de extermínio de Treblinka, onde, à chegada, foram todos asfixiados.
O Karl Marx das crianças
Seu verdadeiro nome era Hersh Goldszmit. Mas como considerava o polonês sua língua materna, e não o iídiche, fazia-se chamar de Henryk. No entanto, ficou conhecido na Polônia e em outros países pelo nome Janusz Korczak, pseudônimo com o qual assinava seus ensaios e livros, tomado emprestado de um romance polonês do século 19.
Durante os anos de estudante, em uma viagem à Suíça, conheceu uma jovem judia de Varsóvia, Stefania Wilczynska, que se tornaria sua assistente durante 30 anos, e com quem compartilhou sonhos, utopias e seu destino final. Impressionava-o a crueldade e a falta de sensibilidade com que os adultos tratavam as crianças e os jovens. Isto o levou a querer dedicar-se apenas a eles. Em sua opinião, eram os proletários mais antigos e mais miseráveis. Depois de se especializar em Pediatria e trabalhar em hospitais infantis, foi-se cristalizando seu sonho de construir uma instituição modelo, em que o interesse das crianças viesse em primeiro lugar. Queria fundar uma sociedade de crianças para órfãos, da qual surgiria uma República das Crianças, com seu autogoverno, seu parlamento e seu tribunal de justiça. Seria o fim dos maus-tratos contra a infância. Queria ser o Karl Marx das crianças.
Finalmente, foi construída a sede da instituição Casa dos Órfãos, ou Dom Sierot, em polonês. Era uma grande construção de três andares, na Rua Krochmalna. No ático, havia um pequeno quarto entre o dormitório dos meninos e o das meninas, onde o educador se refugiava quando o cansaço ou a perturbação o venciam. Nesse local, brotavam-lhe as idéias, que registrava rapidamente no papel. Passava as noites a escrever ensaios e livros. Sua ambição era ser reconhecido como um proletário idealista que concebera uma utopia redentora: a união das crianças do mundo inteiro. Dom Sierot seria o núcleo de um futuro estado baseado no senso de justiça dos menores.
Meninos e meninas elegeram 22 representantes para o seu parlamento. Korczak abriu solenemente a primeira sessão. Era dever dos adultos orientar as crianças, mostrando-lhes como devia funcionar a justiça e a democracia em sociedade. Usava o termo "pedocracia", a transferência do poder dos adultos para as crianças. Em sua opinião, estas tinham um senso de justiça inato, tendo muito a ensinar aos adultos. Sonhava com o surgimento de um novo tipo de ser humano. Em Pruszkov, cidade próxima, havia também um orfanato polonês inspirado em sua teoria. Foi mentor e pai espiritual dessa instituição enquanto o fato de ser judeu não representava um problema.
Cresce o anti-semitismo
Com o passar dos anos e o recrudescimento do anti-semitismo, sua condição de judeu fez com que seu sonho acabasse confinado unicamente às crianças de seu povo, três vezes órfãs: por não terem uma casa, por sua condição de crianças que as tornava reféns dos adultos, e por pertencerem a um povo atormentado entre as nações. Ainda acreditava que melhores tempos viriam e a luz acabaria irradiada da rua Krochmalna, pobre e judaica, onde o mais importante era que reinasse o governo das crianças, com seu parlamento e seu jornalzinho.
Com a ocupação alemã, o orfanato teve que ser transferido da sede de rua Krochmalna para dentro do gueto. Com freqüência, Korczak era chamado ao quartel-general da Gestapo. O oficial nazista responsável pelo orfanato era pediatra, na vida civil, e conhecia bem as teorias de Korczak. Acreditava que aquele judeu polonês, que, com um nome eslavo, soube infiltrar-se no mundo ariano como "renomado pensador e reformador", poderia ser útil à propaganda nazista, e não hesitaria em trair seu povo e suas idéias para salvar a pele. Como estava enganado...
Às vésperas do extermínio
Nas ruas do gueto, os judeus observavam perplexos os cartazes anunciando as deportações. Varsóvia, afinal das contas, era o coração da Polônia judaica e, portanto, certamente só os que eram considerados "inúteis" pelos alemães seriam enviados para trabalho em "algum lugar ao Leste". Parecia inconcebível que o Gueto de Varsóvia estivesse destinado a ser liquidado, tanto que, ao lado dos cartazes que anunciavam as deportações, havia outros anunciando atividades culturais e peças teatrais em iídiche. No entanto, Korczak foi informado pelo oficial alemão que vigiava o orfanato que dentro em breve suas 200 crianças seriam aniquiladas.
Após a incredulidade inicial, a população teve a consciência de que as deportações eram sinônimo de Treblinka, que, por sua vez, era sinônimo de morte. Os alemães planejavam liquidar não somente o Gueto de Varsóvia, mas a população judaica em sua totalidade, de uma vez por todas.
Certo dia, o jovem Abrasha, um dos órfãos, talvez o preferido e mais querido, veio reclamar com Korczak por que não lhe haviam ensinado a usar uma arma para se defender, no lugar de o enganar com brincadeiras de tribunal de justiça e parlamento infantil e com o discurso da República das Crianças. Havia um jornal e peças teatrais, fazendo com que as crianças acreditassem ser os pioneiros de um mundo novo. Em seu pleito, admitia que o "Doutor", como era chamado, respeitosamente, e seus assistentes cuidavam para que as crianças estivessem saudáveis e limpas, que fizessem exercício, que estudassem. Antes dos tempos do gueto, até faziam passeios e freqüentavam acampamentos nas férias de verão. Antes tivessem aprendido a ser fortes e manusear armas, porque logo todos seriam mortos. Não sobraria ninguém a quem pedir batatas ou um pouco de açúcar.
Até mesmo Stefania, a leal assistente que ficou ao lado de Korczak durante mais de 30 anos, acreditava que havia chegado a hora de fechar o orfanato, pois, quem sabe, alguma criança poderia, assim, sobreviver.
Preparação das crianças: a última peça
Korczak queria manter a responsabilidade por todos os seus órfãos, até o fim. Estava velho e doente, um homem alquebrado a quem sobrara, como única alternativa, continuar fiel a seus princípios. Assim, decidiu preparar as crianças para morrer com dignidade e coragem, de forma a representar um ato de protesto.
Afirmava que morrer não era estar morto, que meninos e meninas mortos voltariam a viver na eternidade, que o castigo de seus assassinos se prolongaria para sempre. "Se é necessário morrer sem ter armas para se defender, então o único outro jeito de enfrentar esse destino é morrer cantando. Se a vítima canta, face a face com o assassino, mostra com isso acreditar que seu algoz será destruído para sempre. Teremos de marchar até a Umschlagplatz. Nós, do Orfanato Dom Sierot, marcharemos em fila, cantando e empunhando nossa bandeira, com a mesma dignidade de quando, no passado, saíamos para nossas excursões. Todos nós marcharemos cantando".
Antes do fim, Korczak decidiu encenar com as crianças uma última peça teatral, que escolheu com cuidado especial: O Correio, do indiano Rabindranath Tagore, onde o autor ensina as crianças a não temerem a morte. O tema versa sobre um menino doente que é proibido de deixar seu quarto, e a quem a morte liberta da doença e da agonia. Desta forma, um dia, quando chegasse a hora, poderia acordar para um mundo melhor.
A Marcha a Umschlagplatz - e depois, Treblinka
A deportação dos judeus do Gueto de Varsóvia foi realizada entre julho e outubro de 1942. A liquidação dos lares de crianças e orfanatos se iniciou no mês de agosto.
Numa manhã quente, ouviram-se os gritos de "Raus, Raus!". Korczak havia explicado às crianças as idéias contidas na peça de Tagore, ensinando-lhes a não ter medo de nada e lhes assegurando que nunca se separaria delas. Alertara-as para que quando ouvissem aquele grito, descessem rápida e ordenadamente, e se mantivessem unidos porque iriam todos marchar juntos, cantando.
E assim foi. Na chegada à Umschlagplatz, o trem que os levaria a Treblinka já os aguardava. Uma centena de crianças subiu em um vagão; os outros cem, em um segundo vagão. Com eles, Janusz Korczak, sua assistente Stefania Wilczynska e os outros membros da equipe do orfanato. Todos morreram nas câmaras de gás de Treblinka.
Em suas últimas anotações, antes da marcha derradeira, Janusz Korczak escreveu: "Não desejo a ninguém nada de mal. Não consigo fazê-lo. Não sei como se faz isso... Mas o que eu agora suporto, aconteceu, mesmo. Simplesmente aconteceu".