Há 80 anos, em 27 de janeiro de 1945, as forças soviéticas libertaram o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau. Aqueles que lá entraram, bem como em outros campos de concentração nazistas, depararam-se com o até então inimaginável. A magnitude e a monstruosidade dos crimes perpetrados pela Alemanha nazista redefiniram o conceito do mal.
Com o fim da 2a Guerra Mundial e a libertação daquelas verdadeiras “fábricas de morte”, as provas eram incontestáveis: o regime nazista havia idealizado e implantado um meticuloso plano de extermínio de todos os judeus sob seu domínio ou influência. Todo judeu, de qualquer idade ou sexo, onde quer que se encontrasse, devia ser morto.
Holocausto é o termo mais utilizado para descrever esse extermínio sistemático, mas durante a Era Nazista, os alemães usavam outro codinome: a “Solução Final da Questão Judaica” (Endlösung der Judenfrage). No entanto, a “Solução Final” não começou com massacres em massa e câmaras de gás, mas com a disseminação do ódio contra os judeus por meio de palavras, de propaganda política. Infelizmente, ninguém, judeu ou não, levou a sério as ameaças proferidas desde o início dos anos 1920 por Hitler, bem como pelos ideólogos nazistas.
Ao se tornar chanceler da Alemanha, em janeiro de 1933, Hitler deflagrou, como afirma a renomada historiadora Lucy Dawidowicz, uma guerra contra os judeus. Em toda a Europa, já havia um enraizado antissemitismo que os nazistas atiçaram, criando um terreno mais do que fértil para o Holocausto.
Ao tomar o poder, o primeiro passo de Hitler foi promulgar leis destinadas a promover a exclusão econômica e social dos judeus, dando luz verde para as forças policiais usarem de violência contra a população judaica, deixando milhares de mortos em atos aleatórios de terror.
Após a invasão da Polônia, em setembro de 1939, e, com ela, o início da 2ª Guerra Mundial, a Alemanha nazista adotou medidas para concentrar e isolar a população judaica em guetos criados na Europa Oriental. Os alemães estabeleceram pelo menos mil guetos, onde reinavam a fome e as doenças – milhares morreram por “causas naturais”. Os nazistas consideravam o estabelecimento dos guetos como uma medida provisória, enquanto sua liderança decidia como concretizar a “remoção” final daquela população.
O extermínio em massa teve início em 1941, com a invasão da União Soviética. Os judeus eram assassinados inicialmente a tiros, em execuções em massa, e, em seguida, foi adotado um método mais “eficiente” de extermínio – por asfixia a gás. A matança só terminaria com a derrota e rendição alemã, em 1945.
A Alemanha nazista não poupou recursos – nem homens, nem armamentos, nem transportes – para caçar e eliminar todo e qualquer judeu, onde quer que vivesse. Para executar a “Solução Final” os nazistas contaram com a colaboração de governos e cidadãos das nações ocupadas pela Alemanha. Essa colaboração foi um elemento crítico no acelerado processo de aniquilação dos judeus europeus.
A guerra que Hitler empreendeu contra os judeus foi uma catástrofe sem precedentes na história do nosso povo. Em 1933, cerca de 9,5 milhões de judeus viviam na Europa. No fim da 2a Guerra, aproximadamente 6 milhões, entre os quais 1,5 milhão de crianças, haviam sido assassinados. Isso equivalia a 36% da população judaica mundial.
Um terço dos judeus europeus sobreviveram, mas essa estatística é muito enganosa, pois a maioria dos que escaparam vivia ou em localidades não ocupadas pela Alemanha, como o leste da União Soviética, Reino Unido e Bulgária, ou em estados neutros, como Espanha, Portugal, Suíça e Suécia. O Judaísmo sobreviveu ao Terceiro Reich, mas este, no entanto, conseguiu aniquilar as comunidades judaicas da Europa Oriental.
Em 1946, os principais líderes nazistas foram julgados e condenados pelo Tribunal Militar Internacional. Apesar de a “Solução Final” não ter sido o foco central do processo judicial, a extensa documentação sobre a perseguição e o massacre da população judaica durante a guerra foi exposta ao mundo. Ainda assim, o Holocausto era um tema tabu: nem sobreviventes, nem alemães, nem cidadãos de outros países queriam, por motivos distintos, falar sobre o assunto.
Em abril de 1961, Adolf Eichmann, um dos principais arquitetos da “Solução Final” , foi levado a julgamento em Israel. O objetivo era tornar públicas informações, provas físicas e testemunhos tanto da perseguição quanto do assassinato dos judeus europeus.
Nessas oito décadas desde a libertação de Auschwitz, buscamos manter viva a memória dos seis milhões de mortos e do sofrimento do nosso povo sob o jugo nazista. Procuramos educar as novas gerações sobre os perigos do antissemitismo e de qualquer tipo de preconceito, sem distinção.
No entanto, desde o atentado do Hamas contra Israel, em 7 de outubro de 2023, observou-se um recrudescimento do antissemitismo. Judeus foram alvo de discriminação, de ataques físicos e verbais, bem como de acusações, entre as mais absurdas, de serem “nazistas” e de perpetrarem “genocídio”. Isso demonstra, de maneira inequívoca, que há uma falta de conhecimento sobre o Holocausto.
De fato, são alarmantes os resultados das últimas pesquisas sobre o assunto: são os jovens que apresentam os níveis mais altos de preconceito contra os judeus. Dos jovens americanos entrevistados, 20% consideraram o Holocausto um mito, enquanto 33% expressaram ceticismo quanto à precisão dos relatos, e desconheciam o fato de que seis milhões de judeus haviam sido assassinados pelos nazistas. Na França, o quadro é ainda mais preocupante: 46% dos entrevistados, entre 18 e 29 anos afirmou nunca ter ouvido falar do Holocausto antes da pesquisa – o maior índice dos oito países inclusos no estudo.
Diante desse alarmante quadro, foram implantados diversos novos projetos para promover a educação sobre o Holocausto. É necessário combater tanto a negação como a desinformação sobre o extermínio da população judaica. Inverdades se espalham pelas redes sociais, principal meio pelo qual a maioria dos jovens obtém as informações a partir das quais moldam seu conhecimento e atitudes em relação ao mundo.
Nesta e nas próximas edições da Morashá, procuraremos responder às perguntas sobre o Holocausto e o período entre 1933 e 1945. Começaremos pela ascensão do nazismo; as primeiras perseguições aos judeus alemães; o papel do antissemitismo, das bases “ideológicas” do Partido Nazista e, sobretudo, das “crenças” de seu líder supremo, Adolf Hitler.
Por que usamos o termo Shoá no lugar de Holocausto?
O Holocausto ocorreu em grande parte da Europa e em algumas localidades do norte da África. Afetou praticamente todos os judeus daquele continente (9,5 milhões, em 1933), mas não os que viviam nos países árabes, porque as tropas alemãs, derrotadas pelo Exército Britânico em novembro de 1942, foram expulsas do Oriente Médio e do continente africano.
Para uma corrente de historiadores, entre os quais o Yad Vashem, o Holocausto ocorreu no período entre os anos da 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Já para outros, entre os quais o Museu Memorial do Holocausto dos Estados Unidos (USHMM), foi um processo contínuo que se estendeu de 1933, com a nomeação de Hitler como chanceler da Alemanha, a 1945, com a rendição incondicional desse país e o fim do conflito.
Muito utilizado, o vocábulo “Holocausto” deriva do grego holokauston, palavra usada na Septuaginta, a mais antiga tradução da Torá para o grego (século 3 a.E.C.), para o termo hebraico olah que significa “o que é levado para cima” ou “oferta totalmente queimada”.
Esse termo refere-se a um sacrifício completamente consumido pelo fogo, como oferenda a D’us. O problema de seu uso para descrever o extermínio nazista é que, ao empregá-lo, estamos implicitamente associando os judeus assassinados pelos nazistas a “vítimas de sacrifício”, e, os nazistas, “aos oficiantes sacerdotais”. É grotesca e inaceitável a imagem de milhões de judeus queimados pelos nazistas como parte de uma oferenda a D’us.
É por isso que muitos preferem utilizar a palavra Shoá, que, de origem bíblica, está relacionada à expressão Shoah u-meShoah (devastação e desolação), que aparece no Tanach, nos Livros de Sofonias (1:15) e de Jó (30:3). Por descrever uma catástrofe ou destruição em larga escala, este último termo destaca melhor a magnitude e o horror da calamidade que se abateu sobre nosso povo durante a era nazista. Porém, como o termo Holocausto é o mais utilizado, com exceção da França e Israel, nós o usaremos nesta matéria.
Uma catástrofe única e sem precedentes?
O que faz do Holocausto um crime sem igual na História Moderna, não é apenas o número de suas vítimas, nem só o envolvimento de uma nação inteira no planejamento e execução do extermínio. Nunca antes na História Moderna, um povo fez do assassinato de outro o cumprimento de sua ideologia.
A História registrou massacres terríveis, nos quais um povo aniquilou outro. Todos foram cruéis e injustificáveis, mas quem os cometeu tinha algum objetivo instrumental: a conquista de territórios, a obtenção de recursos ou uma estratégia militar. Os massacres eram um meio para alcançar um fim – e não um fim em si mesmos, como ocorreu no Holocausto.
De acordo com o historiador Yehuda Bauer, os nazistas colocaram “motivos ideológicos abstratos” (o antissemitismo racial) acima até de considerações pragmáticas. Isso explica, por exemplo, a mobilização de recursos militares contra o nosso povo até mesmo nos momentos mais críticos da guerra, quando o exército nazista precisava desesperadamente de armamentos, soldados e transportes.
Como viviam os judeus na Alemanha na década de 1920 a 1930?
Derrotada ao fim da 1a Guerra Mundial, a Alemanha viu-se forçada a assinar, em junho de 1919, o humilhante Tratado de Versalhes. Para preservar as forças armadas, as elites militares pressionaram a recém-instituída República de Weimar a aceitar os termos impostos. No entanto, os generais não foram obrigados a assumir a responsabilidade pelo acordo, o que teve consequências desastrosas para a comunidade judaica, a quem a propaganda antissemita passou a culpar tanto pela derrota alemã quanto pelas humilhantes condições de paz.
Nos anos 1920, com o estabelecimento da República de Weimar, os judeus finalmente conquistaram a igualdade de direitos com os demais cidadãos: puderam frequentar universidades, ocupar cargos públicos e concorrer para o Reichstag (Parlamento Alemão). Seis judeus fizeram parte do gabinete do governo central. Walther Rathenau tornou-se ministro da Reconstrução e, posteriormente, das Relações Exteriores. Outros foram eleitos primeiros-ministros da Prússia, Saxônia e Baviera.
Em 1925, os 564 mil judeus que viviam na Alemanha, um terço dos quais em Berlim, eram os mais cultos, ricos e influentes da Europa. A maioria, pertencente à classe média, trabalhava no comércio e em profissões liberais, tanto que, nas cidades, mais de um terço dos advogados e médicos pertencia à comunidade judaica. Também desempenhavam um papel de destaque nas ciências, na literatura, na música e nas artes plásticas, inclusive como patronos e colecionadores. Por exemplo, Albert Einstein revolucionou nossa compreensão do universo, e Paul Ehrlich criou a quimioterapia.
A humilhação pela derrota na 1ª Guerra Mundial e as sucessivas crises político-econômicas contribuíram para o crescimento do antissemitismo no país. Nunca superados, os antigos preconceitos foram intensificados por novas acusações, como a de que “os judeus esfaquearam a Alemanha pelas costas” no conflito ou a de que a “República de Weimar era parte de uma conspiração bolchevique judaica para dominar o mundo”.
Além disso, com a grave crise econômica que assolou o país, reflexo de uma hiperinflação que assolou o país entre o início de 1922 e fim de 1923, os antissemitas não tiveram dificuldade para convencer grande parte da população de que os judeus eram “responsáveis” por todos os males, quaisquer fossem eles: derrota militar, inflação, crise, capitalismo, comunismo, sífilis e assim por diante.
A Grande Depressão de 1929, que causou um novo abalo socioeconômico, agravou ainda mais a situação do país. O desemprego atingiu níveis sem precedentes, o que fortaleceu os comunistas e, por sua vez, propiciou o crescimento da extrema-direita.
Entre os muitos grupos de extrema-direita criados na década de 1920 estava o então insignificante Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP), o Partido Nazista, que a instabilidade político-econômica, somada à insatisfação popular, tirou da obscuridade e levou à proeminência política. De fato, em 1932, o NSDAP já tinha a maior representação no Reichstag, ainda que sem maioria absoluta.
Qual era a ideologia nazista?
O Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei – NSDAP) começou como uma minúscula agremiação de extrema-direita, sem relevância. Ao ser fundado, em 1920, contava com apenas 60 membros. De 1921 a 1945, seu líder absoluto foi Adolf Hitler, o Führer, e, a suástica (Hakenkreuz), seu símbolo.
O NSDAP ficou conhecido como Partido Nazista devido às duas primeiras sílabas da palavra “National ” (Nazional em alemão arcaico). Sua plataforma político-ideológica defendia um nacionalismo radical, com o objetivo de criar uma Grande Alemanha, além de rejeitar a democracia, o marxismo e o socialismo. Também propunha a erradicação dos judeus do país, fosse por meios legais, se possível, fosse por qualquer outro, até mesmo violência, deportação ou morte.
É importante ressaltar que o Partido Nazista NÃO era “socialista”. O termo foi incluído no nome apenas como uma estratégia para atrair trabalhadores insatisfeitos.
Para Hitler e os ideólogos do nazismo, dois “perigos” ameaçavam destruir a Alemanha: os judeus e os bolcheviques. Na mente distorcida do Führer, os primeiros seriam os grandes “inimigos” dos povos germânicos, e sua simples existência representava uma ameaça à sobrevivência do país e do mundo. Hitler clamava pela união dos alemães, como povo, contra o Povo Judeu e, como ideologia, contra o comunismo (ou marxismo), supostamente criado pelos judeus visando uma suposta dominação mundial.
Em novembro de 1923, em Munique, Hitler tentou derrubar a República de Weimar por meio de um golpe de Estado fracassado, o famoso Putsch da Cervejaria. Julgado por alta traição, foi condenado a cinco anos de prisão, porém foi libertado após apenas oito meses.
No cárcere, escreveu o livro Mein Kampf (Minha Luta), parte autobiografia, parte manifesto político. A “obra” expõe os principais elementos do nazismo: um antissemitismo fanático (o ódio aos judeus “escorre” das páginas), uma visão de mundo racista e uma política externa agressiva voltada à conquista de Lebensraum (espaço vital) na Europa Oriental.
Após o golpe fracassado, Hitler passou a buscar o poder político por meios legais. Em comícios responsabilizava os judeus por todos os problemas da Alemanha. Em um discurso, em 1920, declarou: “Nosso partido irá libertá-los do poder dos judeus!”. Defendia, com veemência, a adoção de um novo lema para todo o continente: “Antissemitas do mundo, uni-vos! Povos da Europa, libertem-se!”. Exigia, assim, o que chamava de “Solução Radical”, ou seja, “a remoção dos judeus do meio do nosso povo”.
Apesar da falta de originalidade de suas ideias e discursos (muitos outros políticos usavam o antissemitismo para ganhar apoio popular), Hitler destacava-se por ser um orador excepcional, capaz de eletrizar as plateias e despertar emoções intensas. Nos comícios, o Partido Nazista, pioneiro no emprego de técnicas avançadas de propaganda para manipular a opinião pública, utilizava mensagens curtas e diretas, além de símbolos poderosos. O aparato visual era realmente impressionante, com dezenas, e, até mesmo, centenas de tochas acesas e bandeiras com suásticas.
Nas ruas da Alemanha, o ódio antissemita de Hitler era posto em prática por tropas paramilitares, como as SA (Sturmabteilung), conhecida como Tropas de Assalto. Os judeus eram molestados, agredidos, espancados e tinham suas lojas destruídas. Em janeiro de 1930, oito foram assassinados pelas SA em Berlim – eram as primeiras vítimas do regime nazista. Nos nove meses seguintes, os judeus alemães eram atacados nas ruas e em cafés e teatros. Os cultos religiosos nas sinagogas eram com frequência interrompidos por nazistas.
Como surgiu o antissemitismo racial?
Alicerce da ideologia e da política do NSDAP, o antissemitismo racial foi a base sobre a qual germinou o Holocausto. No entanto, os nazistas não foram os criadores do ódio contra o nosso povo, e seu partido também não tinha o monopólio dele. Enraizado em preconceitos antigos e muito difundidos, o antissemitismo existe desde a Antiguidade. Como um vírus maligno, assumiu diferentes formas ao longo da história para adaptar-se a épocas e lugares distintos. O de base religiosa surgiu na Europa, com o início do Cristianismo. Disseminado, em grande medida, pela Igreja, fez parte da cultura e do pensamento desse continente durante a Idade Média e o início da Era Moderna. Nos séculos 18 e 19, passou por uma transmutação ao incorporar elementos econômicos e nacionalistas.
O termo “antissemitismo” é relativamente recente. Foi cunhado no fim do século 19, como um eufemismo para a palavra alemã Judenhass (ódio aos judeus), pelo jornalista Wilhelm Marr, um antissemita convicto.
A partir de meados da década de 1860, surgiram partidos políticos antissemitas principalmente na França, Áustria e Alemanha. Também apareceram publicações apócrifas, como Os Protocolos dos Sábios de Sião, um documento falso segundo o qual havia uma suposta conspiração judaica para dominar o mundo. Essa obra foi amplamente usada para propagar mentiras e alimentar teorias conspiratórias antissemitas.
Por volta da mesma época, começou a consolidar-se o antissemitismo racial, impulsionado por teorias pseudocientíficas como o Darwinismo social e a Eugenia (tentativa de controlar geneticamente a sociedade). Essas ideias ganharam popularidade tanto na Europa quanto nos Estados Unidos.
Para dar um verniz de credibilidade científica ao seu ódio contra os judeus, os antissemitas usaram a Eugenia, que serviu como um elemento fundamental da ideologia nacional-socialista da “pureza racial”. Pregavam a existência de uma hierarquia na qual a “raça ariana” (os povos germânicos) era superior a todas as outras e, a judaica, inferior a todas as demais.
Esse antissemitismo pseudocientífico era um conceito central do nacional-socialismo. Para Hitler, os judeus não eram um grupo religioso, mas uma raça biologicamente inferior. Consequentemente, sua “natureza inata”, não podia ser alterada pelo batismo. Até então, a conversão ao Cristianismo permitia, em tese, escapar da perseguição e da discriminação. No entanto, como para os nazistas ser judeu não era uma questão de fé, mas sim de “sangue” e de “herança genética”, nem mesmo a conversão ao Cristianismo poderia livrá-los da perseguição.
O que eram os conceitos de “ariano” e da “pureza de sangue”?
O termo “ariano” foi frequentemente usado de forma incorreta para descrever um grupo racial de pessoas. Não existe uma “raça ariana” – o conceito é uma fabricação com fins ideológicos.
No início do século 19, “ariano” era apenas uma classificação linguística, uma designação da família das línguas indo-europeias (também chamadas de indo-germânicas). No entanto, no fim desse século, o termo passou a ser usado por vários “intelectuais”, todos racistas e antissemitas, como denominação de uma categoria biológica humana.
Por exemplo, em seu livro Essai sur l’Inégalité des Races Humaines (Ensaio sobre a desigualdade das raças humanas), o francês Arthur de Gobineau (1816-1882) classificava os “arianos” como seres humanos superiores.
Desde a fundação do NSDAP, Hitler e os ideólogos do nacional-socialismo adotaram a crença de que o povo germânico pertencia a esse grupo e estava, portanto, predestinado a governar o mundo. Para os nazistas, os “não arianos”, referência aplicada sobretudo aos judeus, representavam uma ameaça racial à sociedade alemã.
O programa do NSDAP, publicado em 1920, declarava explicitamente a intenção de segregar todos os judeus, bem como de revogar seus direitos civis, políticos e legais.
Em 1935, com a adoção das Leis de Nuremberg, o Terceiro Reich estabeleceu uma definição legal de Nichtarier (“não ariano”): qualquer pessoa que tivesse ascendência judaica, sobretudo entre pais ou avós. No deturpado pensamento nacional-socialista, a força da nação germânica advinha da “pureza do sangue”, e os Nichtarier eram “inferiores”. Com base nessa distinção, determinava-se quem tinha ou não cidadania alemã e, a partir de 1939, direito de viver.
O que diz a Teoria Eugenista e como foi aplicada pelos nazistas?
Também chamada de “Higiene Racial”, a Teoria Eugenista foi uma pseudociência surgida entre o fim do século 19 e o início do 20. Na época, era considerada uma disciplina científica avançada. Para seus adeptos, todos os males da sociedade, como criminalidade, doenças mentais, alcoolismo e até pobreza, advinham de fatores hereditários.
Na Alemanha nazista, essa teoria serviu como base “científica” para muitas das políticas do regime. Propagava-se a ideia de que “a manutenção da pureza do sangue assegura a sobrevivência do povo germânico”.
Em 1933, o governo nacional-socialista promulgou a Lei de Prevenção de Descendentes com Doenças Hereditárias, que estipulava a esterilização forçada de pessoas, inclusive “arianas”, consideradas portadoras de “deficiências genéticas”. O procedimento abusivo tornou-se obrigatório para aqueles diagnosticados com nove tipos de enfermidades ou distúrbios, entre os quais esquizofrenia, epilepsia, cegueira hereditária, surdez e alcoolismo grave. Dois anos depois, em 1935, proibiu-se o casamento entre pessoas com “material genético doente, inferior ou perigoso” e alemães “arianos saudáveis”.
O programa mais sinistro foi o da “eutanásia” (também conhecido como T4), que, de forma semiclandestina, eliminava portadores de deficiências que viviam em instituições de todo o Reich. Estima-se em cerca de 250 mil as vítimas “arianas” desse horror.
A Alemanha nazista usou a Teoria Eugenista para conferir “validade científica” ao antissemitismo racial. Assim, serviu como justificativa para a adoção de medidas radicais que levaram à segregação, perseguição e ao extermínio de judeus e de outros grupos considerados “indesejáveis”. Proporcionou ainda respaldo para uma política populacional agressiva, que encorajava mulheres “racialmente puras” a terem o maior número possível de filhos.
“Sem Hitler, sem Holocausto”
Embora os historiadores raramente lidem com perguntas especulativas, muitos estudiosos do Holocausto já refletiram sobre o que teria ocorrido sem a ascensão de Hitler ao poder.
A maioria concorda que, para a concretização do Holocausto, o antissemitismo foi uma condição necessária, mas não, por si só, suficiente.
Reconhecido por seu trabalho sobre o genocídio judaico, o historiador canadense Michael Marrus (1941- 2022), responsável por cunhar a frase “No Hitler, No Holocaust” (“Sem Hitler, sem Holocausto”), afirma que, com outro líder fascista na Alemanha, poderia ter havido opressão, expulsão, perseguição e até mesmo assassinatos, mas não o extermínio em massa de judeus, como ocorreu.
Para embasar sua tese, o autor aponta que, embora outros regimes de extrema-direita como o de Mussolini, na Itália, e o de Franco, na Espanha, tenham promovido a
a discriminação e algum tipo de violência contra o nosso povo, nenhum deles implantou um massacre sistemático. Marrus destaca ainda um aspecto fundamental do regime nazista: o exército alemão, as SA e as SS juravam fidelidade não à doutrina nacional-socialista ou ao Estado, mas diretamente a Hitler. Exigia-se lealdade incondicional ao Führer não só de todas as forças militares e paramilitares, mas também de todos os membros do NSDAP e, de forma mais ampla, de toda a sociedade alemã.
O historiador David Cesarani, especialista no estudo do Holocausto, reforça essa visão ao afirmar: “Nunca, na História, um líder decidiu que um grupo étnico ou religioso deveria ser totalmente eliminado e criou todos os recursos necessários para realizar esse propósito. Isso não teve precedentes na História”.
Em Mein Kampf, o Führer defende a remoção de todos os judeus do Reich e a eliminação da influência deles no país. Um antissemita fanático e psicopata socialmente inadequado, Hitler culpava os judeus por tudo o que considerava maligno e ameaçador. Via-se como “o salvador” da Alemanha e estava convencido de ter sido “escolhido” para impedir que os judeus destruíssem a vida na Alemanha e no mundo.
Qual foi o papel das SA, das SS e da Gestapo?
As SA (Sturmabteilung),Tropas de Assalto, conhecidas como “Camisas Pardas”, foi a força paramilitar do Partido Nazista nos anos de 1920 e início da década de 1930. As SA intimidavam opositores políticos, atacavam judeus, agrediam comunistas e garantiam a ordem nos comícios nazistas. Essas forças foram fundamentais para a ascensão de Hitler, assim como as SS. Seu líder, Ernst Röhm, defendia a incorporação do grupo às forças armadas, o que gerou conflitos dentro do regime. As SA perderam sua influência após a chegada de Hitler à chefia de Estado, em 1933. Em junho do ano seguinte, o Führer ordenou a eliminação da liderança das SA na Noite das Facas Longas, o que consolidou o poder das SS e do exército regular, a Wehrmacht.
As temidas SS (Schutzstaffel, em português, “Tropas de proteção”) foram criadas em 1925 como guarda pessoal de Hitler. A partir de 1929, com a ascensão de Heinrich Himmler ao cargo de Reichsführer-SS, passou por uma grande expansão e, até o colapso do regime, em 1945, foi a principal agência de segurança e vigilância na Alemanha e nos territórios por ela ocupados na Europa e no Norte da África. Após a Noite das Facas Longas
as SS passaram a ser o exército particular do regime, superando em importância as SA. As SS desempenhavam um papel central no terror nazista. Eram responsáveis pela aplicação das políticas raciais, bem como pela identificação e perseguição de opositores políticos, além de administrar os campos de concentração e extermínio.
Criada em 1933, a Gestapo (Geheime Staatspolizei ou Polícia Secreta do Estado) foi a polícia política do Terceiro Reich, responsável por identificar, prender e eliminar opositores. A Gestapo era uma ferramenta brutal e confiável do Estado alemão, para o qual servia como instrumento direto de repressão. Mantinha seu poder através de um vasto sistema de informantes e denunciantes, o que criou um clima de medo e intimidação em toda a sociedade.
Além de perseguir opositores e minorias raciais, como os judeus e os romanis e os sintis, a Gestapo teve um papel fundamental na coordenação do envio da população judaica para guetos, campos de concentração e centros de extermínio. Em 1939, foi incorporada ao RSHA (Reichssicherheitshauptamt – Gabinete Principal de Segurança do Reich), sob o comando direto de Reinhard Heydrich, um dos principais arquitetos do Holocausto.
Como Hitler assumiu o poder?
Como vimos, a Alemanha foi tomada por uma forte onda de antissemitismo no início da década de 1930, com ataques a judeus, profanação de sinagogas e violação de cemitérios. No entanto, por mais preocupantes que fossem, essas agressões não tinham o respaldo nem do Estado, nem da lei. Isso mudou drasticamente em 1933, quando Hitler se tornou chanceler do país.
É equivocada a ideia, muito difundida, de que o líder nazista foi eleito pelo voto popular, quando, na verdade, foi nomeado para o cargo de chanceler após uma longa crise política. Apesar do enorme apoio popular recebido, o NSDAP não tinha maioria no Parlamento e teve que formar uma coalizão com partidos de centro e direita. Em tese, o NSDAP deveria compartilhar o poder e postos governamentais com os outros partidos membros da coligação.
No dia 30 de janeiro de 1933, o presidente Paul von Hindenburg, muito contrariado, mas decidido a colocar um fim à crise política, nomeou Hitler para a Chancelaria. Com isso, terminou a República de Weimar, uma democracia parlamentar, e surgiu a Alemanha nazista, também chamada de Terceiro Reich que, de acordo com Hitler, perduraria mil anos. Em pouco tempo, instituiu-se no país uma ditadura unipartidária baseada no nacionalismo extremo e no autoritarismo, bem como em uma ideologia racista, em particular antissemita.
Em 5 de fevereiro de 1933, o Reichstag, o Parlamento, aprovou um decreto que expropriava todos os prédios e máquinas impressoras do Partido Comunista, além de fechar as organizações pacifistas. No dia 27 de fevereiro, um incêndio “oportuno” destruiu a sede do Parlamento. Os nazistas culparam os comunistas pelo atentado e o utilizaram como pretexto para ampliar seus poderes. Na manhã seguinte, um decreto presidencial suspendeu os direitos constitucionais e declarou estado de emergência. Esse dispositivo legalizou a detenção arbitrária sem mandado ou julgamento.
As SA entraram em ação imediatamente: efetuaram prisões em massa e enviaram milhares de comunistas e críticos do regime, assim como muitos judeus, a um chamado “campo de concentração” em Dachau, a primeira instalação do tipo oficialmente criada pelos nazistas. Em 23 de março, o Reichstag aprovou a Lei de Plenos Poderes, que concedia a Hitler controle absoluto sobre o governo. A lei permitiu que o ditador governasse sem a necessidade de aprovação parlamentar.
Nos meses seguintes, foi implantada uma política de Gleichschaltung (“coordenação”), um processo de alinhamento de indivíduos e instituições aos objetivos nazistas.
A cultura, a economia, a educação, a medicina e o sistema legal passaram ao controle do regime. O governo também tentou impor sua influência sobre as Igrejas Cristãs. Embora não tenha alcançado sucesso total, conquistou o apoio da maioria dos clérigos católicos e protestantes.
O que foi o boicote de abril de 1933?
A primeira medida antissemita de caráter público e oficial foi a convocação de um boicote nacional às empresas de judeus (Judenboykott).
Quando começaram a circular informações sobre a iminência desse boicote, sancionado pelo governo, os judeus norte-americanos organizaram uma manifestação no Madison Square Garden, em Nova York, em 27 de março de 1933, e foi lançada uma campanha retaliatória contra os produtos alemães. Diante dos protestos dos judeus da Diáspora, bem como da pressão de jornalistas americanos e britânicos, os nazistas reviram o plano original e reduziram a duração do boicote para apenas um dia.
No dia 1º de abril de 1933, membros das SA bloquearam a entrada de lojas pertencentes a judeus – muitos haviam se convertido e outros tantos eram tão assimilados que nem mais se consideravam judeus. As vitrines e portas foram pichadas com a Maguen David (Estrela de David) e termos pejorativos, caricaturas grotescas e suásticas. Submetidos a humilhações públicas, os judeus foram forçados pelas SA a carregar cartazes com os dizeres: “Não comprem de judeus”.
Embora apresentado oficialmente como uma retaliação às críticas internacionais contra o regime nazista, o boicote foi, na verdade, o primeiro passo para a remoção da comunidade judaica da economia alemã. Foi a primeira demonstração pública e oficial de que o novo governo nazista trataria a população judaica de maneira distinta e como inferior.
O boicote foi um golpe devastador para os judeus alemães, que viam o país como sua pátria. Muitos tinham lutado por ele na 1ª Guerra Mundial. Em um esforço desesperado para reverter essa situação, algumas lideranças judaicas tentaram argumentar com as autoridades. Destacaram a lealdade e as contribuições judaicas à Alemanha, mas seus apelos foram ignorados.
O boicote foi o primeiro teste para a postura das Igrejas Cristãs em relação à “questão judaica” e à opressão nazista. Como escreveu o historiador eclesiástico alemão Klaus Scholder, “nenhum bispo, nenhum representante eclesiástico fez alguma declaração pública contra a perseguição”. De modo geral, essas instituições adotaram uma atitude de “antissemitismo moderado”, pois, embora se opusessem à violência explícita do regime, apoiavam a “luta contra a influência judaica” na economia e na vida cultural europeia. Além disso, qualquer preocupação que demonstravam limitava-se aos convertidos ao Cristianismo, ainda considerados judeus pelos nazistas.
Quais foram as primeiras legislações antissemitas?
Ainda maior que o choque causado pelo boicote foi aquele advindo da promulgação, também em 1933, de leis antissemitas, seguidas por decretos, diretrizes e regulamentos que restringiam, de maneira progressiva, os direitos civis e humanos da população judaica na Alemanha. O objetivo das autoridades era “purificar” a nação da presença e influência dos judeus, que, para isso, foram excluídos de áreas essenciais da sociedade.
Por esses dispositivos legais, os judeus foram excluídos de diversas atividades ou passaram a sofrer restrições de acesso a elas. Por exemplo, a Lei para a Restauração do Serviço Civil Profissional (1933) afastou-os do funcionalismo público, a Lei dos Médicos (1933) impôs limites à prática da medicina por eles. A Lei referente à Admissão na Profissão Legal proibia o ingresso de judeus na Ordem dos Advogados. Os judeus viram sendo revogadas as suas licenças para exercerem não só a magistratura, mas até mesmo sua atuação nos tribunais. Na área da educação, foi estabelecida, nesse mesmo ano, uma quantidade máxima de judeus como estudantes em escolas públicas e, em 1938, uma proibição à presença deles, tanto como alunos quanto como docentes, em instituições de ensino não judaicas.
O que foi a “limpeza” das artes e da cultura?
Como afirmava que tudo o que vinha dos judeus estava “corrompido” e “infectado”, Hitler não tolerava a influência deles em nenhuma produção científica, artística ou cinematográfica. Por isso, Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda, foi encarregado de “limpar” a vida cultural alemã de qualquer resquício “não ariano”. Goebbels liderou, a partir de 1933, uma agressiva campanha para a “sincronização da cultura” (Gleichschaltung), um processo pelo qual as artes foram moldadas para atender aos objetivos do Partido Nazista. Os judeus e grupos considerados “politicamente suspeitos” viram suas organizações culturais serem fechadas e suas produções, proibidas.
Também foi banida a arte moderna, cujos criadores, de acordo com o nacional-socialismo, seriam “imorais”. Em 1937, o governo confiscou dos museus alemães, milhares de obras consideradas “degeneradas” e exibiu boa parte delas na famosa exposição Entartete Kunst (“Arte Degenerada”), em Munique, como “exemplos da corrupção cultural promovida por judeus e comunistas”. Boa parte dessas peças artísticas foi destruída, mas as mais valiosas foram vendidas para financiar os preparativos para a guerra.
O que foi a queima de livros?
O primeiro passo da “sincronização da cultura” (Gleichschaltung), mencionada anteriormente, foi dado por universitários de direita, muitos deles membros de organizações nazistas. Em 6 de abril de 1933, a Associação Estudantil Alemã para Imprensa e Propaganda proclamou um “Ato Nacional contra o Espírito Não-Germânico”. Determinou ainda a queima pública de livros considerados “indesejáveis”, a grande maioria deles de autores judeus, de intelectuais de esquerda e de outros opositores do regime. O objetivo era “purificar” a literatura da Alemanha por meio do fogo.
Durante a cerimônia, ocorrida em 10 de maio de 1933 em 34 cidades universitárias do país, estudantes nazistas marcharam à luz de tochas em desfiles organizados pelas SA, enquanto entoavam palavras de ordem contra o “espírito não-germânico”. Ao som de bandas de música e “juramentos” de fidelidade à pátria, mais de 25 mil livros foram lançados em enormes fogueiras.
O episódio fez ressoar, com um tom trágico, uma frase sinistramente profética do poeta alemão Heinrich Heine, que, no século 19, escreveu: “Onde queimam livros, acabarão por queimar pessoas”.
O que eram as Leis de Nuremberg?
Dois dispositivos legais distintos aprovados pela Alemanha nazista em 1935 são conhecidos, em conjunto, como Leis de Nuremberg: a Lei de Cidadania do Reich (Reichsbürgergesetz) e a Lei de Proteção do Sangue e da Honra Alemã (Gesetz zum Schutze des deutschen Blutes und der deutschen Ehre). Ambos incorporavam os princípios raciais que fundamentavam a ideologia nacional-socialista e serviram como base “legal” para a perseguição sistemática do Povo Judeu.
Hitler promulgou as Leis de Nuremberg em 15 de setembro de 1935. As novas medidas proibiam casamentos e relações sexuais entre alemães judeus e não judeus com vista a preservar a “pureza racial” da raça ariana. A Lei de Cidadania do Reich estabeleceu uma diferenciação legal entre os “Cidadãos do Reich” (Reichsbürger), que, por serem “arianos”, tinham plenos direitos, e os “Súditos do Estado” (Staatsangehörige), que não gozavam de cidadania. Estes incluíam, além dos judeus, outros grupos “não arianos”.
O decreto teve um efeito devastador na comunidade judaica, que se considerava genuinamente alemã devido a seu alto grau de assimilação: falava o idioma alemão e a cultura alemã era também a sua.
Segundo a definição racial nazista, a população judaica da Alemanha à época compunha-se de cerca de 475 mil “judeus de religião judaica” e 300 mil “cristãos-judeus” (convertidos). A lei não fazia nenhuma distinção entre esses grupos; um judeu continuava sendo judeu mesmo se a família houvesse se convertido há três gerações. Além disso, aproximadamente 750 mil eram Mischlinge, de primeiro e segundo grau. Essa designação era atribuída àqueles com ascendência judaica parcial, resultado de casamentos mistos.
O que aconteceu na Kristallnacht?
Nos dias 9 e 10 de novembro de 1938, ocorreu um violento ataque contra os judeus e suas propriedades em todo o Terceiro Reich, que, além da Alemanha, já incluía a Áustria e a região dos Sudetos, na antiga Tchecoslováquia. Mais conhecida como Kristallnacht (“Noite dos Cristais” em tradução literal), a onda de violência antissemita também é, muitas vezes, chamada de “Noite dos Vidros Quebrados”, referência às incontáveis vidraças, janelas e vitrinas destruídas pelas tropas de choque nazistas e pela população alemã.
As sinagogas foram o principal alvo dos ataques. Centenas foram atacadas, vandalizadas, saqueadas, e os rolos da Torá, destruídos. Muitas foram incendiadas, os bombeiros receberam instruções para deixarem-nas arder e só impedirem que as chamas atingissem outras construções. Os cemitérios judaicos foram profanados. Os judeus também tiveram casas e lojas destruídas. Atacados nas ruas por membros das SA, 91 foram brutalmente assassinados, milhares ficaram feridos e outros tantos, desabrigados. Quase trinta mil foram enviados para os campos de concentração de Dachau, Buchenwald e Sachsenhausen, nos quais boa parte deles morreria.
Quem planejou e instigou a Kristallnacht?
O ataque foi arquitetado nas altas esferas do Reich, mais especificamente por Hitler e seu ministro da Propaganda, Joseph Goebbels. Nas ruas, foi instigado pelas SA e pela Juventude Hitlerista. A ação foi planejada com meticulosidade. Por exemplo, as SS mobilizaram grupos para incendiar e destruir todas as sinagogas.
O pretexto para a violência foi o assassinato, em 7 de novembro, de um funcionário da embaixada alemã, em Paris, por Herschel Grynszpan, um polonês de 17 anos que vivia na cidade.
Entre 27 e 29 de outubro, 17 mil judeus poloneses que viviam na Alemanha haviam sido expulsos do Terceiro Reich e levados para a fronteira com a Polônia. Sua situação tornou-se desesperadora depois que a Polônia proibiu a entrada da maioria deles. Entre os oito mil que ficaram em Zbąszyń, “uma terra de ninguém” entre a Alemanha e a Polônia, encontrava-se a família Grynszpan. O frio era intenso. Os refugiados não tinham nem comida, nem abrigo. Desesperado, Zindel Grynszpan decidiu escrever a seu filho Herschel, em Paris, para relatar os acontecimentos. Ao receber a carta, o jovem desesperou-se e decidiu tomar uma atitude extrema para chamar a atenção do mundo para a situação de sua família e dos judeus sob o jugo nacional-socialista. Dirigiu-se à representação alemã, onde alegou ter uma “encomenda” para o embaixador. Foi encaminhado ao escritório do Terceiro Secretário, Ernst vom Rath, em quem atirou assim que entrou na sala. Para o governo nazista, era uma “prova da conspiração judaica contra a Alemanha”. Gravemente ferido, o funcionário alvejado morreu em 9 de novembro. Ao receber essa notícia, Hitler, furioso, teria dito a Goebbels: “As tropas de choque devem ter permissão para agir”. A resposta do ministro teria sido: “Se os distúrbios se intensificarem e se alastrarem por outras regiões além de Berlim, não devem ser contidos”. De fato, os tumultos, além de não terem sido reprimidos, foram incentivados por membros do Partido Nazista em todo o Terceiro Reich.
A Kristallnacht marcou a mudança da política alemã em relação à população judaica. À opressão político-econômica, somou-se uma perseguição física brutal e explícita. Após os acontecimentos dessa noite terrível, não restaram dúvidas sobre dois fatos: os judeus não tinham mais lugar na Alemanha e os nazistas estavam prontos para derramar o sangue deles sem titubear. Estava aberto o caminho para a destruição de comunidades inteiras na Europa e a morte de seis milhões de pessoas – pelo simples fato de serem judeus.
BIBLIOGRAFIA
Dawidowicz, Lucy, The War Against the Jews: 1933-1945
Marrus, Michael R., The Holocaust in History
Martin, Gilbert, O Holocausto: História dos Judeus na Europa na Segunda Guerra Mundial