Dia 18 de setembro de 1946, Hersz Wasser, um sobrevivente do holocausto, voltou à rua Nowolipki, 68, em Varsóvia, onde funcionava uma escola judaica, para desenterrar um dos mais importantes legados da resistência antinazista.
Caixas metálicas guardavam fotos, cartas e textos produzidos e coletados por uma equipe que atuava secretamente, com o intuito de documentar o cotidiano sob ocupação e as atrocidades cometidas pelas tropas de Adolf Hitler. Comandado pelo historiador Emanuel Ringelblum, no Gueto de Varsóvia, o trabalho, conhecido como "Arquivos do Oyneg Shabbes", reuniu mais de 35 mil páginas, já classificadas como uma das mais significativas coleções de fontes que documentaram o Holocausto, no mundo.
Em 1999, a Unesco, braço da ONU para ciência e cultura, também reconheceu o significado do arquivo Ringelblum, ao incluí-lo no Registro da Memória Mundial.
Milhares de documentos, depois de sua descoberta, se transformaram em acervo do Instituto Histórico Judaico da capital polonesa, e parte da coleção já foi exposta em outros países. De dezembro a abril passado, foram exibidos pela primeira vez na França, por meio da exposição "Os Arquivos Clandestinos do Gueto de Varsóvia", concebida pelo Memorial da Shoá. Também o Instituto Yad Vashem, de Israel, preparou recentemente, em seu site (www.yadvashem.org), uma exibição online sobre o trabalho da equipe dirigida por Ringelblum.
O evento francês coincidiu ainda com o lançamento de dois livros com documentos do arquivo. No primeiro tomo, aparecem cartas sobre o extermínio de judeus na Polônia, e o segundo reúne textos escritos por crianças no Gueto de Varsóvia e traz documentos a respeito do ensino clandestino sob o tacão nazista. A co-edição Fayard/Biblioteca Internacional de Documentação Contemporânea prevê ainda uma terceira obra, com testemunhos oriundos da porção oriental da Polônia ocupada.
Com iniciativas como essas, cresce a visibilidade de uma das histórias mais impressionantes do esforço de documentação, durante a 2ª Guerra Mundial. O personagem principal desse capítulo, Emanuel Ringelblum, nasceu em 1900, na cidade de Buczacz, então Polônia e, hoje, parte da Ucrânia. Em 1927, o jovem judeu se graduou em história na Universidade de Varsóvia e desenhou uma trajetória de intensas atividades comunitárias e educacionais. Até 1939, Ringelblum já havia publicado ao menos 126 textos acadêmicos, o que o colocava numa posição de destaque no cenário intelectual da época.
Em setembro daquele ano, a Alemanha nazista invadiu a Polônia e já nos primeiros meses do conflito, Ringelblum, vivendo em Varsóvia, começou a recolher documentos e testemunhos sobre a vida judaica sob ocupação. Em 22 de novembro de 1940, uma semana depois de o Gueto de Varsóvia ser isolado pelas tropas hitleristas, Ringelblum convidou cerca de dez pessoas para irem à sua casa, onde discutiram a ampliação do projeto "Arquivos do Oyneg Shabbes", que, em iídiche, significa a "alegria do Shabat", numa referência ao fato de as reuniões do grupo ocorrerem geralmente nas tardes de sábado.
Ringelblum montou uma rede ampla de ativistas para documentar a vida sob a barbárie nazista, mobilizando ativistas dos mais diversos setores do espectro cultural, político e religioso da comunidade, no Gueto de Varsóvia. Também começaram a chegar informações de outras partes sob ocupação nazista. Junto com o professor Eliahu Gutkowski e o economista Hersz Wasser, Ringelblum criou uma agência clandestina de informações que fazia seus boletins circularem com a ajuda da resistência. Em abril de 1942, chegou a Londres o primeiro relatório do grupo, enviado ao governo polonês no exílio.
Sempre sob o manto do segredo, o "Oyneg Shabbes" conseguiu juntar um vasto arquivo, que incluía documentos oficiais nazistas, cartões de racionamento de alimentos, jornais, desenhos, cartazes, obras literárias, com peças que misturavam o horror da ocupação com a intensa vida cultural e religiosa que resistia, apesar das condições impostas pela vida no Gueto de Varsóvia e em outras partes da Polônia ocupada. Ringelblum e seus colaboradores pediam, por exemplo, depoimentos por escrito a educadores e a crianças, para que descrevessem seu cotidiano e sua visão da guerra.
Ringelblum fazia questão de não contar apenas com a contribuição de historiadores. O grupo reuniu também intelectuais, como o professor Israel Lichtensztajn, o economista Menahem Linder e o rabino Shimon Huberbrand. Os ativistas queriam alertar o mundo sobre as condições enfrentadas por sua comunidade e sabiam da importância de coletar dados que seriam usados também em futuros julgamentos de nazistas.
Até o final de 1941, o "Oyneg Shabbes" priorizava a organização do material obtido, mas optou por ampliar o processo de coleta quando chegaram ao Gueto mais informações sobre as intenções nazistas de extermínio da população judaica. Ringelblum e seus colaboradores passaram a guardar os documentos sobre deportações e assassinatos em massa. Nem mesmo o envio de diversos integrantes do grupo ao campo de Treblinka, em 1942, impediu a continuação do esforço de documentação.
Em 3 de agosto daquele ano, diante das evidências dos planos nazistas de liquidar o Gueto de Varsóvia, ativistas do "Oyneg Shabbes" decidiram enterrar os arquivos. O professor Israel Lichtensztajn, acompanhado de Nachum Grzywacz e Dawid Graber, acondicionou parte dos documentos em dez caixas metálicas e as esconderam no prédio da sua escola.
Depois, usaram latões de leite para proteger os papéis e colocaram esse lote em outro ponto do prédio. Em janeiro de 1943, os ativistas encerraram a coleta de material e, em abril daquele ano, uma terceira leva do "Oyneg Shabbes" foi enterrada na rua Swietojerska, 34, na noite anterior ao início do Levante do Gueto de Varsóvia.
Ringelblum e sua família escaparam do gueto em março de 1943, para se esconder numa parte de Varsóvia. Pouco depois, eclodia o Levante do Gueto e o historiador voltou àquela região, para ser preso e enviado ao campo de trabalhos forçados de Trawniki. De lá, conseguiu fugir, para se juntar à família que permanecia escondida na capital polonesa. No entanto, em março de 1944, o esconderijo foi descoberto. Ringelblum, seus familiares e outros judeus foram levados às ruínas do Gueto, onde foram assassinados.
Menos de dez integrantes do "Oyneg Shabbes" sobreviveram ao Holocausto e um deles, Hersz Wasser, foi o responsável pela recuperação de parte dos arquivos, no ano seguinte ao do fim da 2ª Guerra Mundial. No dia 1 de dezembro de 1950, durante um trabalho de construção, encontrou-se o segundo lote de documentos. No local em que foi enterrado o terceiro, apesar das pesquisas intensas, resgataram apenas alguns poucos papéis extremamente danificados. Emanuel Ringelblum e seus colaboradores se imortalizaram como mártires na luta contra as atrocidades nazistas e como símbolos de um esforço gigantesco para documentar um período trágico. Fruto de muita coragem e de muita abnegação, o projeto "Oyneg Shabbes" recebe atualmente, com exposições e livros em diversos países, homenagens especiais, ao se destacar em meio às inúmeras e heróicas iniciativas de resistência e de combate ao nazismo.
O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br. Foi editor internacional e correspondente em Moscou e em Pequim.