O Tribunal da Inquisição, conhecido como Santo Ofício e instituído pelo papa Gregório IX, em 1209, tinha por objetivo a preservação da pureza do catolicismo no continente europeu.
Até então, o Concílio de Verona, realizado no ano de 1184, determinava que os bispos visitassem as paróquias suspeitas de heresia e que colocassem em dúvida os dogmas do catolicismo e a infalibilidade da Igreja.
Além de julgar os crimes contra a fé católica, o Tribunal formalmente buscava preservar a tradição, a moral e os bons costumes nos domínios da Igreja Romana.
O mais famoso inquisidor medieval foi Nicolau Eymerich, autor de "O Manual dos Inquisidores"1, que serviu, por séculos, de referencial ou guia prático ao funcionamento do Tribunal. O manual, apenas conhecido pelos inquisidores, tinha como norma fundamental o segredo das denúncias, no enquadramento do delito, das prisões e das sentenças. Era utilizada a tortura física e o manual norteava os Inquisidores sobre suas técnicas e eficácia sobre os réus. Havia, em ala especial no prédio da instituição onde os interrogatórios eram feitos, numerosos instrumentos de tortura. Um médico normalmente acompanhava o interrogatório, avaliando quanto de tortura o réu poderia suportar, sem morrer. Um escrivão, funcionário da instituição, registrava os depoimentos.
Para compreender o funcionamento deste Tribunal, de tão longa duração, é necessário distingui-lo em períodos diferenciados. Durante o primeiro período, da Inquisição Medieval, a Igreja iniciou violenta perseguição aos albingenses, cátaros e valdenses, através da Europa germânica, franca e itálica. Em nome da ortodoxia da fé, a Inquisição levou ao extermínio comunidades inteiras de hereges. No período, a crença em feitiçarias levou à morte grande número de mulheres, tidas como bruxas. Joana D'Arc, a virgem de Orléans, sentenciada em 1430, representou o caso mais famoso. A Igreja, no período detentora do poder universal ou supranacional, contou com a aprovação das autoridades públicas, regionais ou feudais.
No segundo período, a Inquisição Romana ou Papal é instaurada, em 1542, pelo papa Paulo III, expressamente para eliminar a "heresia protestante" que já atingia grandes regiões da Europa, inclusive a Itália. Além do delito religioso, cientistas e pensadores com concepções modernas e diferenciadas, como as de Galileu Galilei e de Giordano Bruno, foram presos e sentenciados pelo Tribunal. Galileu que, oportunamente se "retratou", livrou-se da morte, e Bruno, por manter-se obstinadamente fiel a seus princípios, acabou queimado no ano de 1600.
O terceiro foi da Inquisição Ibérica. O Santo Ofício, introduzido na Espanha em 1480 e, em Portugal, em 1536, atingiu um herege particular: o cristão novo, descendente de judeus e convertido ao catolicismo, em fins do século 16, acusado de apostasia por professar o judaísmo às escondidas. Ainda que os cristãos novos constituíssem 90% dos sentenciados, a Inquisição Ibérica atingiu bígamos, homossexuais, feiticeiros e blasfemos.
Embora aos reis ibéricos coubesse a indicação do Inquisidor-mor, o Santo Ofício atuou de maneira absoluta e exclusiva, representando, no longo período de sua atuação - 1480 a 1821 -, um instrumento do poder, por excelência. No período, além da Península Ibérica, Tribunais foram instalados em domínios europeus (Países Baixos), na América (México, Lima e Cartagena de las Índias) e, em 1560, na Índia (Goa). Como as dificuldades financeiras impossibilitaram a instalação da Inquisição no Brasil, bispos especialmente designados foram enviados para colher confissões e delações pelas "Visitações" a algumas capitanias. O mais completo controle, entretanto, era exercido pelos "Familiares do Santo Ofício" que, pertencentes a todas as categorias sociais, mantinham-se atentos, denunciando "heresias" e demais comportamentos moralmente condenáveis da população colonial. Os suspeitos eram encaminhados para o Tribunal de Lisboa, onde eram julgados e sentenciados.
Pesquisas mostram que mais de um milhar de luso-brasileiros foram processados. Destes, meia centena sofreu a pena máxima: a morte na fogueira.
As denúncias constituíam base de um processo inquisitorial. Duas, três, e, às vezes, uma só, bastavam para início de um processo. Toda e qualquer denúncia era recebida pelos inquisidores, completamente indiferentes à idoneidade do denunciante e à apresentação de provas. Os juízes inquisidores creditavam rumores como provas efetivas.
Metodicamente, qualquer processo da Inquisição Portuguesa passava pelas seguintes fases:
- Instrução: o réu era instado para que confessasse as culpas pelas quais fora denunciado.
- Sessão de genealogia: quando o réu era formalmente identificado, declarada a sua genealogia, estudos, negócios e viagens; na oportunidade, os inquisidores verificavam o cumprimento dos deveres religiosos. Fazia-se, nesta etapa, o inventário dos bens dos detidos.
- Sessão "In Genere": argumentava-se sobre a crença e os fatos da acusação, não mencionando ao réu o delito, o local nem o autor da denúncia.
O andamento de um processo dependia do tipo de denúncias e do comportamento do réu, quando inquirido. O procurador ou advogado do suspeito, funcionário da instituição, não tinha acesso ao processo e não lhe era permitido assistir aos interrogatórios. Seu trabalho consistia em instar para que o réu "confessasse", apresentando as "contraditas" ou as provas de suspeição da acusação. Não havendo possibilidade de provar inocência, o réu só destruía a acusação se enumerasse seus denunciantes. A dificuldade de acerto levava à enumeração de um rol de nomes como possíveis "cúmplices". Dessas denúncias, novos processos poderiam ser abertos.
Em todas as fases do interrogatório e seguindo as recomendações do Manual secreto, os inquisidores admoestavam os réus em tom piedoso e misericordioso, instando-os a dizer a verdade para "descargo de sua consciência e bom despacho da causa". Os depoimentos dos réus eram colhidos, sob juramento dos Santos Evangelhos, e registrados pelos notários2.
O réu da Inquisição permanecia encarcerado durante o inquérito, sem qualquer contato com o mundo exterior. Era intensamente vigiado, não só pelos guardas, mas pelos próprios companheiros de prisão, que, inseguros, denunciavam-se uns os outros. Depois de algum tempo, anos para alguns, a sentença era declarada, depois de simultaneamente votada pelos inquisidores, juízes e jurados. Aos "negativos" ou os que se negavam a confessar, era atribuída pena máxima - a morte na fogueira - pronunciada pela Justiça comum. Os réus que se mostrassem arrependidos, em única oportunidade, "reconciliavam-se" com a Igreja. Para estes, as punições variavam de prisão perpétua a desterro ou a confinamento em uma pequena aldeia, por toda a vida. Os sentenciados usavam, obrigatória e perpetuamente, o "sambenito", traje confeccionado com dizeres infamantes. Comumente, os bens dos processados por "culpas de judaísmo" eram confiscados para a Inquisição e Câmara Real.
As sentenças finais dos réus eram proferidas numa cerimônia pública formal, preparada em grande praça. Toda a população era convidada a assistir. No alto, em um palanque, sentavam-se os inquisidores, os bispos e outras autoridades eclesiásticas. Clérigos de boa oratória eram indicados para proferir sermões acusatórios aos judeus, assistidos pela família real, nobres, embaixadores e convidados especiais, aos quais eram servidas iguarias. Em procissão, no Auto-de-Fé, os penitentes dirigiam-se ao palanque para ouvir suas sentenças e assinar o "termo de segredo", comprometendo-se, sob juramento, nada comentar do que lhe acontecera enquanto preso. A cerimônia se estendia pela noite, terminando com a queima dos três ou quatro réus, condenados à pena máxima, em geral, por se negar a confessar envolvimento com a heresia judaizante.
Pela rigidez, severidade e violência, o Tribunal do Santo Ofício era mais temido que a justiça civil. Por intervir no terreno da moral e dos costumes, além da esfera religiosa, os inquisidores se transformaram em agentes do controle social, gerando total insegurança à população.
O alcance "universal" da Inquisição marcou a história das nações européias e de suas possessões coloniais na África, Ásia e América. Foi extinto das regiões ibéricas, ao serem estas atingidas pelas forças liberalizantes de Napoleão Bonaparte, na segunda década do século 19.
Notas:
1 Eymerich, N. O Manual dos Inquisidores. Edições Afrodite, Lisboa , 1972.
2 O Arquivo Nacional da Torre do Tombo, em Lisboa, guarda 40.000 processos manuscritos.
Rachel Mizrahi é autora de A Inquisição no Brasil:Miguel Telles da Costa. O capitão judaizante de Paraty.
(2ª Ed., no prelo) e Imigrantes no Brasil: Os judeus. São Paulo: Lazuli/Ed. Nacional, 2005