Durante os quatro anos em que vivi em Moscou, freqüentei a sinagoga da rua Arkhipova, no coração da capital russa. Certa feita, numa cerimônia de Rosh Hashaná, identifiquei um grupo que me chamou a atenção por seus traços físicos e vestimentas.
Não pareciam russos típicos. "São judeus da montanha", explicou-me um amigo moscovita. "Vêm do Azerbaijão, ex-república soviética na região do Cáucaso".
Fiz, de imediato, a associação. Os mercados de Moscou guardam a tradição de contar com comerciantes do Cáucaso, que trazem produtos agrícolas de suas terras natais, premiadas com um clima mais ameno do que o cortante frio moscovita. Etnias como chechenos, azerbaijanos, ossetinos, ingushetios, entre outros, predominam na paisagem das feiras livres. Em sua maioria muçulmanos, apresentam feições que lembram os turcos, como tez bem clara, muitas vezes com fartos cabelos e bigodes negros. A vestimenta mais freqüente é o casaco de couro preto, para ajudar a enfrentar as intempéries da capital russa. Os nativos de Moscou às vezes se referem de forma pejorativa aos originários do Cáucaso, chamando-os de "tchorney" (negros, em russo). Os judeus da montanha, portanto, também traziam a Moscou algumas tradições comuns do Cáucaso, como os trajes e a presença maciça no comércio. Instalados no ondulado relevo caucasiano, há muitos séculos, e convivendo com a população majoritariamente muçulmana do Azerbaijão, ainda representam mais um exemplo histórico de resistência cultural e religiosa, já que mantiveram as tradições praticamente intactas, apesar das décadas de opressão e ateísmo soviético. E se destacam por manter vivo um fenômeno provavelmente único na atualidade, o da predominância judaica num centro urbano da Diáspora e que remete aos tempos do shtetel, na Europa Oriental. O vilarejo de Krasnaya Sloboda, em solo azerbaijano, concentra quatro mil habitantes, em sua esmagadora maioria, judeus da montanha.
Meu fascínio pela história daquela comunidade aumentava à medida que mergulhava em livros e artigos sobre suas origens. Há algumas teorias.
A mais difundida sustenta que após o fim do exílio judaico na Babilônia, há cerca de 2,5 mil anos, alguns grupos permaneceram na região que corresponde à Pérsia histórica e ao atual Irã. De lá, os judeus buscaram refúgio nas montanhas do Cáucaso.
Os "gorski ivrei" (judeus da montanha, em russo) falam o tat, dialeto originário do persa e modelado por uma influência hebraica.
Antes de os comunistas tomarem o poder no Azerbaijão, em 1920, Krasnaya Sloboda abrigava 11 sinagogas. O Kremlin permitiu que apenas uma continuasse funcionando. Visitei-a em 1993, depois de desembarcar em Baku, a capital azerbaijana, e seguir de carro até aquele shtetel oriental. Acompanhei os serviços religiosos num sábado pela manhã. Conversei com líderes comunitários que me falaram, com entusiasmo, do renascimento e fortalecimento das tradições, agora livres das amarras do regime soviético, recentemente extinto. A cashrut, por exemplo, era uma característica marcante da rotina alimentar do vilarejo judaico, que visualmente mantinha os contornos de uma pequena cidade reconstruída no período da URSS. Ou seja, edifícios modestos em sua estrutura e acabamento, numa "arquitetura igualitária" imposta por Moscou.
Soube recentemente que, em 1996, o governo azerbaijano, que mantém relações amistosas com Israel, devolveu à comunidade de Krasnaya Sloboda dois edifícios de antigas sinagogas, restauradas posteriormente graças a doações. O Ministério da Educação permitiu à escola pública e secundária do vilarejo ensinar hebraico. Kuba, o grande centro urbano mais próximo a Krasnaya Sloboda, passou a contar com uma escola judaica.
Segundo o Congresso Judaico Mundial, a comunidade judaica hoje, no Azerbaijão, país com população total de 8 milhões, contabiliza cerca de 20 mil integrantes, dos quais 15 mil seriam judeus da montanha, espalhados por cidades como Baku e Kuba, além da pequenina Krasnaya Sloboda. O restante da população judaica é formado por ashquenazitas com raízes na Rússia ou por judeus originários da vizinha Geórgia, conhecidos na sociedade israelense como "gruzinim". Desde 1989, ao redor de 30 mil judeus azerbaijanos, entre os da montanha e os ashquenazitas, emigraram para Israel.
Depois de minha visita a Krasnaya Sloboda, retornei a Baku. Mas, antes de embarcar em mais um vôo da Aeroflot, visitei a família de Albert Agarunov, protagonista de uma história rara em tempos modernos. Trata-se de um judeu que se transformou em herói nacional num país muçulmano. Voluntariamente, Albert alistou-se para participar na guerra travada, nos anos 90, entre os vizinhos armênios e azerbaijanos. O jovem morreu em combate. Sua coragem e heroísmo tornaram-se célebres em todo o país.
A minha incursão pelo Azerbaijão rendeu frutos curiosos, anos depois. Já tinha abandonado o cenário soviético, trocando-o pela China. Em Pequim, freqüentava o Parati, restaurante brasileiro que se destacava como opção exótica no cenário gastronômico da capital chinesa. Para quem estivesse cansado ou temeroso da culinária local, o Parati apresentava-se como excelente alternativa.
Num sábado à noite, rumei ao restaurante. Mal entrei no salão, fui abordado pelo proprietário, um venezuelano casado com uma brasileira. Ele queria minha ajuda. Havia, segundo ele, um simpático grupo de turistas que se apossou de uma mesa e que tinha dificuldades de comunicação, porque falava um inglês bastante pobre. O dono do Parati me disse que tinha apenas entendido que eles eram judeus. E por isso requisitava meu auxílio.
Aproximei-me da mesa e fui recebido de maneira bastante cordial. De golpe, avistei as garrafas de vodca que proliferavam sobre a mesa. Numa abordagem inicial, tentei o inglês e perguntei de onde eles vinham. "Israel, Israel, Tel Aviv", responderam. Arrisquei então algumas frases no meu hebraico mambembe. Eles não entenderam. Concluí que, embora se identificassem como provenientes de Israel, queriam na verdade anunciar que eram judeus. Entre eles, comunicavam-se num dialeto que não conseguia identificar.
A vodca sobre a mesa inspirou-me a tentar uma aproximação em russo. Bastou articular as primeiras palavras para que meus interlocutores abrissem um sorriso gigantesco e se lançassem a falar no mesmo idioma, mas com um sotaque ainda mais forte do que o meu. A princípio, disseram ser da capital russa. Estranhei, porque não tinham o sotaque moscovita. Até que um deles confessou: "Dizemos ser de Moscou porque ninguém conhece o país de onde somos". Pedi que mencionasse a terra de origem.
"Azerbaijão", disse o meu interlocutor. Animado, respondi de pronto: "Já estive lá, conheço, por exemplo, a capital de vocês, Baku". O diálogo prosseguiu: "Mas não somos de lá, somos de um pequeno vilarejo do interior". "Bom", ponderei eu, "conheço a pequena Krasnaya Sloboda". A mesa inteira olhou para mim com incredulidade. "Por que a surpresa?", indaguei. "Porque somos judeus de Krasnaya Sloboda", responderam eles, quase uníssonos. Incrível. Judeus do Brasil e do Azerbaijão passaram uma noite de animadas conversas. E num restaurante brasileiro em Pequim, a capital da China. Mundo pequeno.
O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br e articulista da Folha de S. Paulo. Foi editor internacional e correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.