Os judeus sírios são parte da epopeia da extinção das comunidades judaicas do mundo árabe. Sua história é longa e complexa, e suas principais comunidades – Alepo e Damasco – já foram importantes e prósperos centros judaicos. A história dos judeus sírios inicia-se na época bíblica e termina nas últimas décadas do século 20. Hoje vivem apenas quatro judeus na Síria. Nessa edição vamos traçar sua saga até o início do século 20.

Desde os tempos bíblicos, houve judeus  vivendo no território da atual Síria, sendo que os maiores centros da vida judaica na região sempre foram Alepo e Damasco. As primeiras referências bíblicas a essas cidades remontam à época de nosso primeiro patriarca, Abraham. Na Torá, Alepo é chamada de Aram Tsobá e, Damasco, de Dammesek.

Os exércitos do rei David, que reinou sobre Israel de 1000 até 967 antes da Era Comum – a.E.C. –, comandados por Joab Ben Zeruiá, conquistaram parte da atual Síria. Segundo a tradição, ao tomar Alepo, Joab ergueu uma torre e uma fortaleza que constituíram os alicerces da antiga Cidadela, a Qal’a, e gravou em um dos muros: “Eu sou Joab Zeruiá e conquistei esta cidade”. Ergueu, também, a estrutura do que viria a ser a Grande Sinagoga. Joab se juntou aos operários, levando nos ombros as pedras usadas na construção, e, até hoje, há judeus alepinos que a chamam de “a Sinagoga de Joab”.

A outra sinagoga, situada no vilarejo de Jobar, próximo de Damasco, está hoje em destroços e também remonta à época bíblica. Teria sido fundada no século 9 a.E.C. pelo profeta Elisha, que a ergueu acima da gruta na qual o profeta Eliahu ter-se-ia refugiado de seus perseguidores.

A região da atual Síria foi dominada pelo Império Assírio, em 732 a.E.C., e, pelo Neobabilônico, em 604 a.E.C.  O número de judeus que viviam em Alepo e Damasco iria aumentar após 586 a.E.C., quando o exército babilônico de Nabucodonosor II arrasou Jerusalém, destruiu o Grande Templo, e levou a maior parte da população cativa para a Babilônia. Parte da população se refugiou em outros lugares, inclusive em Alepo e Damasco.

Setenta anos após a destruição do Templo, o Império Babilônico cai em mãos de Ciro, o persa. O imperador autoriza a volta dos judeus à Terra de Israel, mas o retorno dos judeus para a Eretz Israel não é claro nas crônicas de Ezra ha-Sofer (Ezra, o Escriba) e Neemias. Sabe-se ter ocorrido em diferentes levas e por diferentes caminhos, e que um grupo liderado porEzra seguiu uma rota que passava por Alepo, onde já havia uma comunidade judaica. Ao parar em Tedef, vilarejo perto de Alepo, Ezra teve que persuadir os judeus de que seus conhecimentos sobre a Torá eram inspirados pelo Ruach Hacodesh, o Espírito Divino. Escreveu, então, um Sefer Torá onde omitiu o Sagrado Nome de D’us. Ao terminar, guardou o pergaminho em uma caverna, durante a noite. No dia seguinte, ao examiná-lo, os judeus viram que o Nome de D’us estava em todas as lacunas que Ezra deixara em branco. Para celebrar tal milagre, construiu-se uma sinagoga próximo à caverna.

Os gregos e romanos

A região da atual Síria seria tomada no ano de 333 a.E.C., por Alexandre, o Grande. Depois de sua morte, seus generais dividem entre si o gigantesco império que Alexandre conquistara. A parte oriental, cujo território incluía a Síria e a Terra de Israel, ficou com Seleucos I Nicator. Sob domínio selêucida, os judeus sírios, assim como os que viviam em Eretz Israel, sofreram pressões e perseguições para helenizá-los, mas, eles não abriram mão de suas Leis e tradições.

No ano de 64 a.E.C., Roma faz da Síria uma província romana, com Damasco como capital. Para os judeus o período romano foi de prosperidade e tranquilidade. A lei romana reconhecia o Judaísmo como uma “religião lícita”. Cada comunidade tinha direito de cobrar impostos e administrar suas finanças, bem como estabelecer os locais para estudos, sinagogas, cemitérios e tribunais onde julgar as disputas entre seus membros.

Em sua obra, Antiguidades Judaicas, Flavio Josefo1, relata que na Síria, considerada a mais rica província do Império, havia cidades onde os judeus constituíam mais que a metade do total de habitantes.  Eles eram uma minoria bem-organizada, culta, e relativamente rica. Mas, seu modo “diferente” de viver criara, entre os pagãos helenizados, uma aversão a suas “peculiaridades” religiosas – principalmente a crença num Único D’us e a circuncisão – aversão esta que se manifestava, periodicamente, em ataques aos bairros judeus.

O antijudaísmo dos pagãos helenizados iria fincar profundas raízes na região. 

Há um substancial crescimento  da população judaica que vivia na Síria nos séculos 1 e 2 desta Era, com a vinda de judeus da Terra de Israel, fugidos da repressão e violência romanas. Particularmente após os anos 70 e 132, quando os exércitos de Roma esmagaram a  1a e 2a Guerras Judaicas. Muitos se estabeleceram em Damasco, cuja proximidade com Tiberíades e Tzfat a tornava quase um subúrbio religioso de Eretz Israel. No século 2, havia 10 mil judeus que viviam em Damasco. Outros se estabeleceram em Alepo.

Uma estela em pedra esculpida, datada do ano de 241, encontrada em um dos muros da Grande Sinagoga de Alepo, comprova  que o crescimento da comunidade judaica alepina justificava a construção de uma casa de orações de grande porte. A tranquilidade da população judaica do Império Romano vai chegando ao fim à medida em que há uma progressiva afirmação do Cristianismo, legalizado em 313 através do Édito de Constantino. Quando o Cristianismo se torna a religião oficial do Império Romano, em 380, o Judaísmo deixa de ser uma religião “lícita” e passa a ser “reconhecida”, até chegar a ser meramente “tolerada”. Os judeus são reduzidos à condição de minoria socialmente degradada e politicamente excluída.

A vida judaica na Síria torna-se ainda mais difícil no final do século 4, quando o Império Romano é dividido em Império do Ocidente e do Oriente. A Síria se torna parte do Império do Oriente, chamado de Império Bizantino.

Os governantes bizantinos eram extremamente hostis aos judeus, tendo incorporado ao antijudaísmo cristão todo o antissemitismo helenístico. Os judeus passam a ser alvo de discriminações, conversões forçadas e ocasionais perseguições, especialmente quando Justiniano se torna imperador, em 527. Ele rebaixa o Judaísmo à condição de “heresia” e promulga uma severa legislação antijudaica, proibindo, entre outras, a construção de novas sinagogas e o exercício de certas atividades econômicas.

Sob domínio bizantino, a Síria, localizada no centro das rotas comerciais para a Índia e o Extremo Oriente, alcança um notável desenvolvimento econômico, e, apesar de todas as discriminações, os judeus sírios continuam a atuar no comércio internacional e participam do bem-estar econômico do período.

Em Alepo, os judeus viviam em um bairro próprio, onde está localizada a sinagoga Knissat Mitkal (hoje uma mesquita), erguida no século 4.  A ala ocidental da Grande Sinagoga foi construída, no século 5, sobre a estrutura tradicionalmente erguida por Joab Ben Zeruiá.

Surgimento do Islã

A partir do século 7, o Islã, novo poder religioso e militar, irá mudar o Oriente Médio. A Síria foi conquistada pelos exércitos árabes no espaço de cinco anos – de 633 até 638. Damasco foi tomada em 635, e, Alepo, em 637. As conquistas árabes criaram um império, denominado Dar al-Islam, que se estendia por três continentes. E, a lei islâmica, a Shari’ah, ditava a vida de todos que nele viviam e que, gradativamente, adotaram o idioma, a religião, os costumes e até a arquitetura dos conquistadores. Contrariamente ao ocorrido em Damasco, em Alepo a islamização ocorreu de forma lenta, poupando a cidade da intolerância aos estrangeiros e do fanatismo islâmico que havia em Damasco.

A Shari’ah permitia a judeus e cristãos viver em Dar al-Islam na condição de dhimmis, aceitando a supremacia do Islã e se submetendo ao Estado muçulmano. Eram também obrigados a pagar impostos específicos, principalmente a jizya2e cumprir uma serie de obrigações cujo rigor variava de acordo com os interesses dos governantes. Em troca, o Estado islâmico lhes garantia a vida, a propriedade, o direito de praticar sua religião, e uma relativa autonomia comunitária. Os dhimmis podiam habitar onde quisessem, possuir terras e propriedades e exercer a atividade econômica que lhes aprouvesse. Na Síria, alguns judeus chegaram a ser grandes latifundiários e outros a ocupar altos cargos na corte.

O árabe se torna, na Síria, como no resto do Império Islâmico, o idioma do cotidiano, do comércio e das ciências, mesmo entre os judeus que passam a ser chamados de must’arabim3. Eles passam a escrever o árabe com caracteres hebraicos, o que deu origem ao judeu-árabe, uma língua híbrida utilizada por grandes sábios, como o Rabi Yehudá Ha-Levi, Maimônides e Rabi Pakuda, entre outros.

Em 661, quando o governador da Síria, Mu’awiya ibn Abi Sufyan, toma o poder, o Império passa a ser governado pela dinastia omíada. A capital de Medina é transferida para Dimashk-al-Sham, ou Al-Sham, como Damasco passou a ser chamada. A cidade se torna o mais importante centro cultural, econômico e político do mundo islâmico.

Sob os omíadas a vida dos judeus melhora significativamente, mas o período de relativa paz acaba quando, em 750, os abássidas tomam o poder. Intolerantes com os não-muçulmanos, eles iniciam uma política discriminatória contra judeus e cristãos. Em toda a história do Império Islâmico, diferentes dinastias religiosas vão se suceder no poder, e, sempre que uma dinastia religiosamente mais liberal era substituída por outra mais extremista, a vida dos dhimmis piorava.

Os abássidas mudam a capital do Império para Bagdá, e a Síria perde sua posição de centralidade no Império, e só voltará a vivenciar um crescimento econômico e comercial no início do século 9.

Alepo, além de um importante centro comercial e bancário, torna-se grande produtor de seda. Documentos encontrados na Guenizá do Cairo revelam que os judeus participavam ativamente da economia da cidade, atuando especialmente no comércio com o Oriente. Muitos fizeram fortunas e, a partir do século 10, surgem os jahbadhs – banqueiros judeus que atuavam em cortes islâmicas.

Judeus sob os Aiyúbidas

Em 1095, o papa Urbano II exortou os cristãos a libertar Jerusalém do jugo islâmico. Dois anos mais tarde, 30 mil homens cruzaram a Ásia Menor e o mundo islâmico viu-se obrigado a enfrentar o Ocidente cristão. Antióquia caiu em mãos cruzadas, em 1098, e, um ano mais tarde, partes da Síria são incorporadas ao Reino Latino de Jerusalém. Alepo foi sitiada pelos Cruzados em 1098 e em 1124, sem, no entanto, ter sido conquistada. Alepo se torna o centro da resistência ao avanço cruzado, e muitos judeus que viviam nos domínios cruzados refugiam-se na cidade.

Coube a Saladino il-Ayubbi, Saladino, o Grande, reconquistar os territórios em mãos cristãs. Apesar de lutar contra os cruzados, Saladino manteve o lucrativo comércio com a Europa. Com as cruzadas crescera na Europa  a demanda por sedas e brocados, joias, especiarias e perfumes.  O comércio de luxo era altamente lucrativo, e nada conseguiu freá-lo – nem a ameaça papal de excomungar qualquer cristão que tivesse relações comerciais com os muçulmanos.

Sob os aiyúbidas a Síria entrou  em um período de opulência  e de uma frenética construção  arquitetônica, inclusive militar.  Os judeus sírios, ativos no comércio internacional, participaram dessa prosperidade. Inúmeros deles se tornaram tesoureiros, escribas ou médicos nas cortes dos governantes muçulmanos.

Pelos relatos de judeus em visita à região, temos informações sobre a comunidade judaica síria. Rabi Binyamin de Tudela, autor de um famoso Diário de Viagem, visitou Alepo e Damasco em 1173. Descreve Alepo como “um lugar muito grande”, onde viviam, assim como em Damasco, milhares de judeus. Samuel ben-Simson, judeu francês que esteve em Damasco em 1210, relata ter visto “a linda sinagoga de Jobar”. A sinagoga fora restaurada, no século 1, por Rabi Eleazar ben-Arak, discípulo de Rabi Yochanan ben-Zakai.

No século 12, já havia em Alepo uma comunidade judaica com florescente vida cultural e religiosa e uma grande dedicação ao estudo da Torá. Maimônides (1138-1204)  tinha especial apreço pela comunidade alepina. Em uma missiva dirigida à comunidade de Lunel, na França, o Rambam diz: “Em toda a Terra de Israel e na Síria, há apenas uma única cidade, chamada Alepo, onde há sábios que estudam a Torá”. Era grande a influência de Maimônides entre os judeus de Alepo, que adotaram seu método de estudo da Torá, que recebeu o nome de “Haiyun ha-Halabi”.

Os Mamelucos

No ano de 1260, os mongóis, liderados por Hulagu, invadiram a Síria e mataram milhares de habitantes. Damasco se rendeu e foi poupada. E, em Alepo, centenas de judeus se salvaram refugiando-se na Grande Sinagoga.

O avanço dos mongóis é contido pelos mamelucos do Egito.  O sultão mameluco Baybars  (c.1223 -1277) une então a Síria  e o Egito em um único reino.  Sob os mamelucos,judeus e cristãossão alvo de medidas discriminatórias e de extorsivos impostos.  Os cristãos eram o principal alvo da hostilidade muçulmana, mas esta invariavelmente atingia os judeus.  No ano de 1301, por exemplo, os dhimmis foram obrigados a se vestirem nas cores que identificavam sua origem. Aos judeus, por exemplo, tocava o amarelo.

Os mamelucos, porém, reorganizam as rotas das caravanas que voltam a passar por Alepo. Com isso, inúmeros comerciantes judeus conseguem fazer fortunas.

Em 1401, os mongóis voltam à Síria, liderados por Timur, o Coxo. Damasco e Alepo não foram poupadas e foi necessário meio século para que as comunidades judaicas das duas cidades se recuperassem. A Grande Sinagoga de Alepo, destruída pelos mongóis, é reconstruída no mesmo local, em proporções menores, e reinaugurada em 1418.

Rabi Ovadia de Bertinoro, o Bartenura, o maior comentarista da Mishná, após deixar a Itália,  em 1486, viajou por dois anos  pela Síria. Em suas cartas, descreve as riquezas e as lindas casas ajardinadas dos judeus de Damasco e a prosperidade judaica de Alepo.

Os Otomanos e a chegada dos sefaradim

Os otomanos conquistaram Constantinopla, em 1453, e, em 1515, após derrotarem os mamelucos, fazem da Síria uma província em seu império. Os governantes otomanos não tinham uma política específica em relação aos dhimmis, que usufruíam de autonomia e liberdade pessoal e comunitária. Os judeus eram considerados uma minoria afluente, culta e com grandes talentos na área administrativa, comercial e financeira. E, diferentemente dos cristãos, não tinham pretensões políticas. Com exceção da cobrança da jizya, as políticas relativas aos judeus eram improvisadas e relativamente liberais. Dependiam grandemente de sua “utilidade” aos governantes.

A vida judaica nos domínios otomanos irá mudar após a expulsão dos judeus da Península Ibérica, em 1492, promulgada pela Espanha, no que seria seguida, pouco depois, em 1497, por Portugal. Ao tomar conhecimento do apelo dos judeus sefaraditas por asilo em terras otomanas, Eliyahu Kapsali, Grão-Rabino de Istambul, intercedeu junto ao sultão Bayazit II para que abrisse as portas de seu império aos judeus ibéricos. Ciente das vantagens que a vinda dos sefaradim traria aos seus domínios, Bayazit II ordenou que viessem e fossem bem acolhidos. Os otomanos valeram-se dos préstimos e conhecimentos dos sefaraditas não só para a expansão e desenvolvimento do comércio regional e de além-mar, mas, também, para o incremento das finanças, diplomacia e ourivesaria.

Acredita-se que aproximadamente 12 mil famílias chegaram ao Império Otomano; em sua maioria estabeleceram-se em Constantinopla, Salônica, Esmirna e na região dos Bálcãs. E, após 1516, quando os otomanos conquistaram a Síria, um número respeitável de sefaradim lá se estabeleceu, principalmente em Alepo e Damasco.

O surgimento do Judaísmo Sefaradita Oriental

Os sefaradim foram bem recebidos por seus correligionários que viviam no Império Otomano; sua chegada, porém, provocou certa tensão. Abastados e cultos eram imensamente orgulhosos de sua linhagem e herança e arraigados às suas tradições e costumes. Em praticamente todos os lugares onde se estabeleciam, a erudição de seus rabinos fazia com que o processo de integração se invertesse: não foram os sefaradim que se “assimilaram” às tradições dos judeus locais, mas, sim, as comunidades judaicas locais que se tornaram sefaraditas.

Esse foi o caso de Damasco, onde se estabeleceram renomados cabalistas que logo assumiram a liderança religiosa da comunidade. Entre eles, podemos destacar: Rabi Hayim Alshaich; Rabi Chaim Vital, discípulo do Arizal, autor de Etz HaChaim; e Rabi Israel Najara, autor de LechTob e de inúmeros piyutim, como Yah Ribon Olam, recitado no Shabat.

O caso de Alepo foi uma exceção. Há séculos um respeitado centro de estudo da Torá, era uma comunidade arraigada a tradições milenares. Os sefaradim não tardaram a assumir posições de destaque na comunidade, porém, sem chegar a impor totalmente seus costumes nem a suplantar a antiga liderança comunitária. Mas, com o decorrer do tempo, os judeus alepinos incorporam grande parte das tradições e costumes sefaraditas. Essa herança continua, até hoje, presente entre os judeus de origem sefaraditas. Em Chanucá, por exemplo, acendem uma vela a mais durante a festa.

Os judeus alepinos sempre tiveram uma importante participação no comércio, principalmente internacional, mas coube aos mercadores e banqueiros judeus de Sefarad desenvolver um comércio de tão alto nível que não apenas se tornou vital para a economia internacional, como tornou vital o papel dos judeus. Os judeus sefaraditas criaram extensas redes comerciais com outros judeus ibéricos, em todo o Império

Otomano, assim como com conversos que viviam na Europa.

Segundo o censo de 1570-90, viviam em Alepo 233 famílias judias. Historiadores acreditam que esse número era maior. Um viajante português de nome Teixeira estimou haver, em 1600, “mil famílias judias em Alepo, muitas das quais em excelente situação”.

Uma nova ala é construída na Grande Sinagoga, cuja fama e beleza, era famosa em todo mundo judaico. Nessa nova ala passaram a rezar os sefaradim, conforme seus costumes. Ao sul dessa ala, na direção de Jerusalém, estava a “Gruta de Eliahu ha-Navi”.

A chegada dos “franj”

A partir do século 16 o Império Otomano começa a assinar com nações europeias as chamadas “Capitulações”, tratados que garantiam aos europeus que viviam no Levante privilégios e garantias pessoais e materiais, e a proteção contra as perseguições muçulmanas.

Atraídos pelas possibilidades comerciais, e pelas garantias das Capitulações, uma nova leva de sefaraditas, principalmente italianos e franceses, radica-se na Síria, nos séculos 17 e 18. Conhecidos como Señores Francos, Francos ou, mais popularmente, franj, eles tinham hábitos europeus, inclusive na forma de se vestir.

Um número considerável de  franj seestabelece em Alepo, onde encontraram uma comunidade próspera e integrada. Eles não criaram uma comunidade separada, mas integraram-se à existente. Viviam como o restante dos judeus no bairro de Bahsita, próximos à Grande Sinagoga,  que passaram a frequentar. Foi uma época de muita prosperidade, pois grande parte da atividade comercial da cidade estava concentrada em mãos de judeus e cristãos. A influência dos comerciantes e banqueiros judeus era tamanha que a saída de importantes caravanas era adiada, às vezes, por coincidir com alguma festa judaica.

Damasco, por outro lado, ainda estava fechada aos estrangeiros, e a comunidade judaica era basicamente composta de artesãos e vendedores. Eram poucas as famílias abastadas, estas formadas por banqueiros e comerciantes internacionais.

Século 19

Os europeus levaram a modernidade ao Império Otomano. A penetração de uma Europa industrializada e militarmente superior resultará no enfraquecimento da sociedade islâmica tradicional. As minorias não-muçulmanas foram as que mais se beneficiaram com a interferência europeia no Oriente Médio e as que mais rapidamente se ocidentalizaram, adotando mesmo as vestimentas e os hábitos europeus.

Em 1831, Mohamed Ali Paxá, governante do Egito, conquista a Síria. Abre sua economia ao Ocidente, promovendo o comércio com a Europa. Com a abertura de Damasco a estrangeiros, instalam-se na cidade empresas comerciais europeias, e contratam representantes cristãos, em sua maioria, e alguns judeus.

Em meados do século 19, havia em Damasco cerca de 4 mil judeus e, como escreveu Josias Porter em seu guia, Murray’s Handbook, “Os judeus da cidade são muito influentes devido à grande riqueza de algumas famílias”. As residências dos mais proeminentes, como os Farhi, Lisbona, Stambouli, Totah e Anbar, localizadas em Harat Al-Yahud, o bairro judeu, encontravam-se entre as mais bonitas mansões da Cidade Velha.

Na província de Alepo, de acordo com o censo otomano de 1893, havia 10.761 judeus. Até as últimas décadas do século 19, os judeus viviam em Bahsita, na cidade antiga, como vimos mais acima. Quando novos bairros são construídos fora do centro antigo, os judeus com melhores condições econômicas se mudam para um novo bairro, o de Jamilie. Os mais abastados moravam em casas bonitas, sem chegar, no entanto, à suntuosidade e beleza das mansões judaicas de Damasco.

No início do século 20, somente os judeus de poucos recursos ainda viviam em Bahsita, onde se localizava a Grande Sinagoga, chamada pela população local da al-Safra. Inúmeros viajantes que passaram pela cidade, ao longo dos séculos, haviam ficado maravilhados com sua grandiosidade e beleza.  A sinagoga foi totalmente reformada em 1855.

Reformas no Império Otomano

Em 1839, o Império Otomano foi modernizado por uma série de reformas, conhecidas como Tanzimat Fermani. A jizya foi extinta,mas, em seu lugar o governo criou um imposto – o de substituição militarou bedel-i-askeri – que recaía sobre todos os não-muçulmanos que, pelas novas leis, podiam ser recrutados para servir no exército turco.

A pressão europeia fez com que, em 1856, um novo édito concedesse total igualdade a cidadãos de todas as religiões e, dez anos mais tarde, a cidadania, sem distinção religiosa ou étnica. O édito de 1856 incluiu a reorganização das comunidades religiosas em bases nacionais e a criação do sistema dos “millets” (nações). O sistema garantia a cada comunidade o pleno controle sobre suas propriedades, instituições e escolas.

O ano de 1869 foi crucial na história dos judeus sírios. Naquele ano foi aberto o Canal de Suez que permitia às embarcações navegar da Europa à Ásia. Antes da sua construção, as mercadorias precisavam fazer por terra o percurso entre o Mar Mediterrâneo e o Mar Vermelho. A abertura do Canal foi prejudicial para Alepo, e, principalmente, para Damasco. À medida que as caravanas do deserto foram sendo substituídas por rotas mercantis mais baratas e seguras, as duas cidades perdem sua importância no comércio internacional. O resultado foi uma estagnação econômica que levou centenas de judeus a deixarem a Síria, em busca de países com melhores oportunidades.

Neste mesmo ano de 1869 foram abertas escolas da Alliance Israélite Universelle em Alepo e Damasco. Criada em 1860, na França, após o Caso Damasco, a instituição visava prover uma educação nos moldes da francesa e a profissionalização dos alunos. As escolas proporcionaram à juventude judaica uma vantagem sobre as massas muçulmanas – que não recebiam educação formal – numa época em que o Oriente Médio estava sendo varrido pela modernidade.

Antissemitismo no mundo árabe

Como vimos acima, nos séculos 19 e 20, filiais de empresas europeias na Síria atuavam através de representantes cristãos e judeus. As empresas não contratavam muçulmanos. À medida que esses intermediários enriqueceram, fazendo surgir uma nova classe abastada de judeus e cristãos, cria-se um profundo ressentimento em meio à população muçulmana. Por outro lado, os cristãos, ao entrar em acirrada competição comercial com os judeus, introduzem um intenso e até então desconhecido antissemitismo de cunho cristão. No decorrer do século 19, no Império Otomano, em cidades como Rodes, Cairo, Alepo e Dayr Al-Qamar surgem as primeiras acusações de assassinato ritual. A mais grave aconteceu em Damasco, em fevereiro de 1840, quando 13 proeminentes membros da comunidade são presos e torturados. A acusação era de terem matado o frade capuchinho Tommaso de Calangianus, e seu criado, para fins rituais. O Caso Damasco repercutiu no mundo todo. Líderes judeus mundiais pressionaram seus respectivos governos, exigindo a libertação de seus irmãos. Na Inglaterra, o barão Nathaniel de Rothschild, amigo íntimo da Rainha Vitória, sir Moses Montefiore, os irmãos Salomon e os Goldschmidt obtêm o apoio da Coroa britânica. Na Áustria, os Rothschild e os Arnstein conseguem o apoio de Metternich. Além das razões humanitárias, os dois países viam no affaire uma oportunidade para solapar o prestígio francês junto ao governo egípcio.

Sir Moses Montefiore e Adolphe Crémieux organizam uma delegação de judeus ocidentais ao Egito, para um encontro pessoal com Mohamed Ali Paxá. No final de agosto Mohamed Ali Paxá concorda em libertar todos os presos. No entanto, quando chega a Damasco a ordem de soltura, quatro judeus já haviam morrido, sete estavam mutilados e somente dois saem do cativeiro ilesos. Crémieux e Montefiore, temerosos de que se repetissem as acusações de assassinato ritual, seguem para Constantinopla. Lá, conseguem que o sultão Abdul Megid publique um édito declarando que a acusação contra judeus de usar sangue cristão em seus rituais não passava de uma mentira. Ademais, o sultão se comprometia a proteger os judeus do Império Otomano contra calúnias. Lamentavelmente, até hoje, as acusações do Caso Damasco são consideradas verdadeiras, no mundo árabe, e são usadas como “provas” das intenções judaicas.

No inicio do século 20, apesar da aparente tranquilidade dos judeus sírios, a tempestade já se aproximava...

Em 1911, apesar dos êxodos, ainda havia 11 mil judeus vivendo em Damasco e 9 mil em Alepo. Damasco tornara-se o centro das atividades sionistas na Síria e também do nacionalismo árabe. Esse movimento, que se opunha ao colonialismo e à interferência ocidental, vinha imbuído de violento antissionismo e antissemitismo.

Até o século 20 a grande maioria dos árabes muçulmanos não via os judeus como ameaça econômica ou política, ao contrário de como via a minoria cristã.

Mas, ocorrera uma mudança radical na atitude geral dos árabes com relação aos judeus com o confronto entre o sionismo e o nacionalismo árabe. Os judeus passam a ser vistos pelos muçulmanos como ameaça política.

Uma extensa literatura antissemita circula por todo o Oriente Médio.  A situação muda por completo... E isto convidamos os leitores de Morashá a lerem no próximo número...

1  Flavio Josefo – Historiador judeu do século 1 desta Era.

2  Imposto per capita cobrado aos não-muçulmanos – aplicado aos homens adultos e com posses.

3  Must’arabim eram os judeus que falavam a língua árabe, em grande maioria judeus dos países árabes e judeus do Maghreb.