Os documentos encontrados na Guenizá do Cairo revelam costumes e hábitos dos judeus entre os séculos X a XIII, preenchendo lacunas e traçando imagens da vida espiritual e cotidiana de uma comunidade judaica medieval.
Como viviam os judeus na região do Egito no século X a XIII? Quais os seus costumes? Seu estilo de vida era muito diferente daquele dos judeus contemporâneos? Respostas para estas e outras perguntas podem ser encontradas em uma exposição que foi inaugurada em julho último no Museu de Israel, que traz documentos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra, localizada no bairro de Fustat, no Cairo. A mostra marca o centenário da descoberta desta Guenizá pelo professor Solomon Schehter, da Universidade de Cambridge.
Segundo especialistas e visitantes, é uma das exposições mais emocionantes e apaixonantes dos últimos tempos, justamente por abordar um período sobre o qual não se tem muitas informações. Os documentos foram cedidos pela Universidade de Cambridge, que possui uma coleção fabulosa de documentos medievais.
Os documentos expostos incluem brochuras, cartas, ordens de pagamento, apostilas escolares e estudos de casos médicos. Foram selecionados pela restauradora Daisy Raccach-Dvijvre e compõem um mosaico que revela diferentes aspectos da vida comunitária judaica no Egito entre os séculos X a XIII, seus vínculos com a Terra de Israel e seu relacionamento com muçulmanos e cristãos. Indica também, que, de modo geral, os judeus de então não diferiam muitos dos judeus de hoje.
Algumas cartas da mostra trazem a assinatura de sábios conhecidos como Josef Caro e Moisés Maimônides. Outras são de viúvas. A letra de algumas é muito bonita, revelando a autoria de escribas ou dos responsáveis pelo Beit Din - Tribunal Rabínico. O conteúdo das cartas é variado. Algumas trazem juras de amor, outras falam de preparativos de casamentos, contratos de noivados e dotes, além de lamúrias de mulheres abandonadas. Há, também, cartas tratando de negócios e de pais desculpando-se perante professores pelo comportamento de seus filhos, além de mensagens com ameaças de punições. Correspondências entre médicos e seus pacientes também fazem parte do acervo.
Os documentos da exposição despertam sentimentos de alegria nos visitantes ao se encontrarem, por exemplo, diante das primeiras notas musicais da liturgia judaica, que foram transcritas por um padre católico convertido ao judaísmo em 1102. Ou de um fragmento de um texto com o alfabeto com desenhos semelhantes aos feitos pelas crianças dos tempos modernos.
A Carta de Damasco é um documento excepcional que descreve pensamentos e práticas de um culto judaico perdido sobre o qual só foi possível obter-se informações após a descoberta dos Rolos do Mar Morto, em Qumran. O documento indica que os conceitos vigentes em Qumran perduraram até a Idade Média, séculos após o desaparecimento da seita dos essênios.
É importante enfatizar que os documentos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra não foram os primeiros referentes à vida dos judeus no Egito. Segundo o professor Menahem Ben-Sasson, da Universidade Hebraica de Jerusalém, as guenizot foram inicialmente descobertas em 1860 por Abraham Firkovich, um caraíta russo.
Primeiras descobertas
Diz a tradição judaica que qualquer fragmento de um texto sagrado, principalmente se contiver o nome do Criador, deve ser enterrado de acordo com determinados rituais. No Cairo, no entanto, há séculos, nem sempre era possível cumprir os ritos em função dos extremistas muçulmanos. Consequentemente, os judeus passaram a colocar todos os fragmentos de textos sagrados em um local especial nas sinagogas. Com o passar dos séculos, documentos profanados em hebraico e em hebraico e árabe foram colocados juntos, sem classificação, sendo apenas escondidos, daí o nome guenizot, que corresponde em hebraico ao termo lignoz e significa guardar, manter secreto.
Atualmente, o conteúdo das guenizot está espalhado por bibliotecas de mais de catorze países. Professor Firkovich e sua equipe passaram meses selecionando textos completos ou quase completos sobre os caraítas, fizeram a tradução para o russo, para vendê-los à Biblioteca de São Petersburgo. Os documentos selecionados das outras guenizot, no entanto, apesar de interessantes, não podem ser comparados aos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra, muito mais ricos em detalhes e abordando assuntos mais variados.
Por que os documentos da Guenizá do Cairo foram levados para Cambridge? A resposta está diretamente relacionada a duas mulheres que compraram os primeiros fragmentos em 1896 e pediram ao seu amigo, o professor Schehter - especialista em Talmud e Literatura Rabínica e acadêmico de Cambridge - que os decifrasse. Schehter, que sempre acreditara na existência de uma versão em hebraico, desaparecida há séculos, ficou maravilhado ao receber os documentos e, entusiasmado, partiu para o Cairo em companhia de um colega, Charles Taylor.
Após analisar os documentos na Guenizá, Schehter convenceu a comunidade judaica do Cairo a transferir os 140 mil fragmentos para a Universidade de Cambridge, para serem estudados. Durante sua permanência no Egito, durante o inverno de 1897, adquiriu também centenas de fragmentos de outras guenizot.
A existência dos documentos sempre atraiu antiquários à Guenizá do Cairo e assim continuou acontecendo, apesar de os melhores já terem sido levados para Cambridge. Alguns estão atualmente nas mãos dos negociantes de Mea Shearim. E, há cerca de 20 anos, foram encontrados alguns documentos no cemitério de Bassatin, também no Cairo. Centenas de fragmentos foram espalhados pelo mundo inteiro, levando os especialistas a persegui-los com uma tenacidade digna dos caçadores da Arca Perdida.
A descoberta de Schehter e os seus estudos, segundo Ben-Sasson, não apenas deu início a uma nova fase nas pesquisas da cultura e história judaicas. Permitiu também o preenchimento de lacunas na história de países como a Itália, a Índia, a região do Magreb (Argélia, Marrocos e Tunísia) e o Estado de Israel. De fato, nos séculos X a XIII, o Egito era uma rota de comércio e de migrações, como também um centro administrativo para grande parte do Oriente Próximo, da Síria e do Iêmen.
Relações comerciais são mencionadas nos milhares dos fragmentos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra. Naquela época, a grande maioria dos judeus vivia em países islâmicos e mantinha relações comerciais com o Egito.
Entre os anos 1060 e 1160 ocorreram três ondas migratórias de judeus da região do Magreb ao Cairo. Na primeira metade do século XII, os judeus começaram também a chegar da Europa, influenciados certamente pelos cruzados, vivendo dentro de uma certa prosperidade e sendo imitados por outros judeus.
Poligamia judaica
O florescimento da cultura e da criatividade judaicas no campo da filosofia, do direito, da ciência e da literatura - no contexto da sociedade muçulmana e árabe - são temas centrais das pesquisas feitas nos documentos da Guenizá da sinagoga Ben Ezra pelos grandes pesquisadores como Schehter, Abraham Harkavy, Jacob Mann e, mais recentemente, S.D.Goitein. Todo material pesquisado por Goitein foi reunido em um estudo intitulado "Uma Sociedade Mediterrânea" e está disponível na Biblioteca Nacional de Jerusalém para consulta.
A seleção dos documentos expostos no Museu de Israel abrangeu vários temas. Cada um constitui um pequeno drama que, às vezes, assemelha-se a uma novela. Um deles conta um fato ocorrido no início do século XII, envolvendo a filha de um grande banqueiro e ela mesma uma bem-sucedida mulher de negócios, Wahsha (Desirée). Segundo o fragmento, o pai de seus filhos e provável herdeiro era um homem casado de Asquelon. Quando o escândalo tornou-se público, Wahsha foi expulsa da sinagoga.
Um outro documento, que aborda a poligamia judaica, revela que uma mulher violentada e presa pelos mamelucos, em Acre, em 1291, viu-se forçada a aceitar o status de segunda esposa na casa do homem que havia pago o seu resgate. E, ao expirar o contrato de casamento, o marido teria direito a escolher uma terceira esposa.
Um edital rabínico, redigido em aramaico em 1082, também faz parte da exposição. Nele, autorizava-se a esposa caraíta de um líder rabínico a seguir seus próprios costumes, revelando a integração social e religiosa das duas comunidades.
Mães judias
O comércio e as difíceis condições de viagens, no passado, mantinham os maridos afastados de suas esposas e famílias durante meses. Em uma carta exposta no Museu de Israel, uma mulher se declara incapaz de comer e, mais ainda, de cozinhar. Em uma carta datada do século XV, uma esposa pede a seu marido que interrompa sua viagem para a Turquia e que retorne para casa.
Outra mulher escreve pedindo ao marido que não contrate empregados muito educados. Dunash ibn Labrat, um dos grandes poetas hebraicos espanhóis, no século 10, partiu para uma longa viagem deixando sua jovem esposa e um bebê. Em uma carta, ela expressa sua desolação através de um poema em hebraico, recebendo uma resposta igualmente poética de seu marido, também em hebraico. Graças à Guenizá da sinagoga Ben Ezra, está disponível hoje o único texto conhecido de um poeta medieval feito em hebraico.
Os fragmentos indicam também que as mães judias parecem não ter mudado, apesar da passagem dos séculos. Uma carta escrita por uma viúva, em 1067, que vivia na região de Raqqa, próxima às margens do Eufrates, queixa-se de que seus filhos desapareceram sem dar notícias durante anos. Ela diz que, mesmo um pouco de roupa suja, a ser lavada, seria um conforto: "Mandem-me suas camisas sujas e rasgadas, que elas me farão reviver...".
Uma cláusula de um contrato de casamento de 1007 revela muito sobre a personalidade do noivo. Tuvia ben-Ali se comprometeu a respeitar as exigências de sua noiva, Faiza bat Solomon, de se comportar e evitar certo tipo de companhia. Um amuleto mágico de tecido também foi encontrado na Gniza. Supõe-se que seu objetivo fosse fazer alguém apaixonar-se.
De modo geral, as mulheres dependiam de seus maridos. Mas, segundo pode ser constatado nas cartas da exposição, os contratos de casamentos permitiam-lhes recuperar seu dote, se o casamento não desse certo. Um contrato de noivado do século X especifica que se uma certa mulher chamada Maliha quiser um dia se divorciar, poderá retomar os bens que levou para o casamento, exceto os valores estipulados na ketubá (contrato de casamento).
Algumas mulheres casadas eram muito mais ricas do que os seus maridos. Durante o século XII, Sitt al Husn, esposa de R. Nathan ben-Samuel, determinou em seu testamento que suas duas escravas fossem libertadas e dividiu os seus bens entre elas e o marido. Outro documento conta a história de uma bela jovem assediada por dois homens, um muçulmano e um cristão, ambos rejeitados por ela. Nenhum dos documentos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra faz referência a casamentos entre pessoas de religiões diferentes.
Naquela época, apenas 5% dos judeus viviam na Terra de Israel, mas a vida nas comunidades da diáspora não era fácil. Uma carta datada do século XI, escrita por judeus de Toulouse a um certo Hisdai ibn Shaprut, fala detalhadamente de perseguições e descreve um costume que era muito comum no século VIII. Durante as comemorações de Pessach, os judeus, além de pagar um imposto especial, deveriam escolher um membro da comunidade que seria esbofeteado por não judeus, em público.
Outra carta, também remetida a Ibn Shaprut por um judeu cazar, descreve a conversão dos cazares ao judaísmo. Uma missiva de uma comunidade de Kiev, com onze nomes bíblicos, parece indicar que parte dos signatários pode ter sido cazares convertidos. O terremoto que destruiu Ramla no século X também foi descrito em detalhes em uma carta.
A presença na Guenizá do Cairo de uma Bíblia hebraica transcrita em caracteres árabes pode ser explicada em função da chegada dos cruzados à Terra Santa. Provavelmente foi levada ao Cairo por caraítas que fugiram da Palestina, onde judeus e muçulmanos eram assassinados pelos cruzados. Os caraítas tinham o costume de escrever sua próprias cópias da Bíblia, pois não confiavam na fidelidade das cópias manuscritas feitas pelos rabinos eruditos.
A tragédia de Maimônides
Os documentos expostos revelam também que algumas desavenças entre judeus eram levadas a cortes muçulmanas. Um exemplo é o texto de uma petição protestando contra inovações nos ritos tradicionais da sinagoga. Os rabinos, autores da petição, esperavam que os muçulmanos tradicionalistas não aprovassem as inovações.
Mães judias
O comércio e as difíceis condições de viagens, no passado, mantinham os maridos afastados de suas esposas e famílias durante meses. Em uma carta exposta no Museu de Israel, uma mulher se declara incapaz de comer e, mais ainda, de cozinhar. Em uma carta datada do século XV, uma esposa pede a seu marido que interrompa sua viagem para a Turquia e que retorne para casa.
Outra mulher escreve pedindo ao marido que não contrate empregados muito educados. Dunash ibn Labrat, um dos grandes poetas hebraicos espanhóis, no século 10, partiu para uma longa viagem deixando sua jovem esposa e um bebê. Em uma carta, ela expressa sua desolação através de um poema em hebraico, recebendo uma resposta igualmente poética de seu marido, também em hebraico. Graças à Guenizá da sinagoga Ben Ezra, está disponível hoje o único texto conhecido de um poeta medieval feito em hebraico.
Os fragmentos indicam também que as mães judias parecem não ter mudado, apesar da passagem dos séculos. Uma carta escrita por uma viúva, em 1067, que vivia na região de Raqqa, próxima às margens do Eufrates, queixa-se de que seus filhos desapareceram sem dar notícias durante anos. Ela diz que, mesmo um pouco de roupa suja, a ser lavada, seria um conforto: "Mandem-me suas camisas sujas e rasgadas, que elas me farão reviver...".
Uma cláusula de um contrato de casamento de 1007 revela muito sobre a personalidade do noivo. Tuvia ben-Ali se comprometeu a respeitar as exigências de sua noiva, Faiza bat Solomon, de se comportar e evitar certo tipo de companhia. Um amuleto mágico de tecido também foi encontrado na Gniza. Supõe-se que seu objetivo fosse fazer alguém apaixonar-se.
De modo geral, as mulheres dependiam de seus maridos. Mas, segundo pode ser constatado nas cartas da exposição, os contratos de casamentos permitiam-lhes recuperar seu dote, se o casamento não desse certo. Um contrato de noivado do século X especifica que se uma certa mulher chamada Maliha quiser um dia se divorciar, poderá retomar os bens que levou para o casamento, exceto os valores estipulados na ketubá (contrato de casamento).
Algumas mulheres casadas eram muito mais ricas do que os seus maridos. Durante o século XII, Sitt al Husn, esposa de R. Nathan ben-Samuel, determinou em seu testamento que suas duas escravas fossem libertadas e dividiu os seus bens entre elas e o marido. Outro documento conta a história de uma bela jovem assediada por dois homens, um muçulmano e um cristão, ambos rejeitados por ela. Nenhum dos documentos encontrados na Guenizá da sinagoga Ben Ezra faz referência a casamentos entre pessoas de religiões diferentes.
Naquela época, apenas 5% dos judeus viviam na Terra de Israel, mas a vida nas comunidades da diáspora não era fácil. Uma carta datada do século XI, escrita por judeus de Toulouse a um certo Hisdai ibn Shaprut, fala detalhadamente de perseguições e descreve um costume que era muito comum no século VIII. Durante as comemorações de Pessach, os judeus, além de pagar um imposto especial, deveriam escolher um membro da comunidade que seria esbofeteado por não judeus, em público.
Outra carta, também remetida a Ibn Shaprut por um judeu cazar, descreve a conversão dos cazares ao judaísmo. Uma missiva de uma comunidade de Kiev, com onze nomes bíblicos, parece indicar que parte dos signatários pode ter sido cazares convertidos. O terremoto que destruiu Ramla no século X também foi descrito em detalhes em uma carta.
A presença na Guenizá do Cairo de uma Bíblia hebraica transcrita em caracteres árabes pode ser explicada em função da chegada dos cruzados à Terra Santa. Provavelmente foi levada ao Cairo por caraítas que fugiram da Palestina, onde judeus e muçulmanos eram assassinados pelos cruzados. Os caraítas tinham o costume de escrever sua próprias cópias da Bíblia, pois não confiavam na fidelidade das cópias manuscritas feitas pelos rabinos eruditos.
A tragédia de Maimônides
Os documentos expostos revelam também que algumas desavenças entre judeus eram levadas a cortes muçulmanas. Um exemplo é o texto de uma petição protestando contra inovações nos ritos tradicionais da sinagoga. Os rabinos, autores da petição, esperavam que os muçulmanos tradicionalistas não aprovassem as inovações.