A maior cidade brasileira celebrou recentemente 450 anos de existência. E a comemoração desta data aciona a memória daqueles que ajudaram a construir a grandeza de São Paulo. Como participante da comunidade judaica, recordo a contribuição dos que me antecederam, atuantes em diversas áreas do conhecimento humano, mas que deixaram marcas, em particular na medicina.
Ao contrário do que muitas vezes se pensa, a presença judaica no Brasil vem de longe e se confunde com a própria história do país. O primeiro judeu que aqui chegou - o tradutor Gaspar da Gama - fazia parte da comitiva de Cabral. Em 1502, um consórcio de empreendedores judeus, tendo à frente o cristão-novo (judeu convertido ao cristianismo) Fernando de Noronha, arrendou da Coroa Portuguesa as terras recém-descobertas. Esse contrato, renovado sucessivas vezes até 1515, previa a paulatina exploração comercial do território brasileiro, além da construção de fortalezas para defendê-lo.
A partir da década de 1530, mudou radicalmente a motivação da presença judaica no Brasil. Os imigrantes já não vinham apenas atraídos pelas oportunidades oferecidas pela colônia. Mas, principalmente, para escapar das perseguições da Inquisição, que, no reinado de D. João III, projetou sua sombra sobre Portugal.
Em um dos grupos de exilados, desembarcou o primeiro profissional diplomado a exercer a medicina no país: Jorge de Valadares, integrante da comitiva do governador Tomé de Souza, empossado em 1549 no cargo de físico-mor da cidade de Salvador, então sede do Governo Geral do Brasil. Outro médico de origem judaica, Mestre José Serrão, acompanhou o governador-geral Francisco de Souza em longa viagem de inspeção pelo país, chegando, em 1599, à então distante vila de São Paulo de Piratininga. Serrão teria sido um dos primeiros judeus a marcar presença em São Paulo, se o próprio co-fundador da vila, o padre José de Anchieta, não fosse, ele mesmo, filho de mãe judia.
De acordo com o historiador da medicina Lycurgo de Castro Santos Filho, foram judeus ou cristãos-novos quase todos os médicos que atuaram no Brasil do século XVI até meados do século XVIII. São Paulo de Piratininga recebeu apenas pequena parcela dos que aqui chegaram. Rústica, distante, de difícil acesso, a vila manteve-se de certa forma à margem da vida econômica e intelectual do país e só passou a atrair mais significativamente a imigração judaica a partir da segunda metade do século XIX. Na última década daquele século, a intolerância étnica e as miseráveis condições de vida prevalecentes nas regiões menos desenvolvidas do Velho Mundo fizeram com que aumentasse expressivamente o fluxo migratório para o Brasil. Os judeus, antes originários do Norte da África ou da Europa Ocidental, passaram a vir, em sua maioria, do Oriente Médio (sefaradim) ou do Leste Europeu (ashquenazim). São Paulo tornou-se, para eles, um destino preferencial.
Em 1912, a cidade ganhou sua primeira sinagoga. Três anos mais tarde, em 1915, fundou-se a Sociedade Beneficente das Damas Israelitas. Desta, nasceria a Unibes, a mais tradicional instituição filantrópica judaica do país, que atende indistintamente judeus e não-judeus. O insuportável clima de perseguição e brutalidade instalado pelos nazi-fascistas na Europa fez com que, a partir da década de 1930, se intensificasse ainda mais a emigração para o Brasil. A população de origem judaica alcançou, rapidamente, o patamar de 200 mil pessoas - 40% delas vivendo no município de São Paulo.
Recém-chegados ou há muito instalados no país, os judeus encontraram em solo brasileiro um espaço precioso de convivência, inclusão e participação que demonstrações isoladas de intolerância não conseguiram turvar. Recebidos com generosidade, eles souberam retribuir a acolhida com o melhor de seus talentos, engrandecendo a vida do país nos campos do comércio, da indústria, das finanças, das ciências, das artes, da política. Muitos dos mais expressivos intelectuais brasileiros do século XX formaram-se na comunidade judaica. Citar alguns nomes seria correr o risco de omitir tantos outros.
Herdeira de séculos de expressivas contribuições à medicina brasileira, a comunidade judaica de São Paulo decidiu, na década de 1950, oferecer a esta cidade uma instituição hospitalar que a honrasse com a excelência de seus serviços. Sob a liderança do Dr. Manoel Tabacow Hidal, fundou-se, em 1957, a Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein (SBIBHAE). Quatro valores tradicionais da cultura judaica inspiraram sua criação: Refuá (Saúde), Chinuch (Educação), Mitzvot (Boas Ações) e Tzedaká (Solidariedade).
Essas balizas continuam orientando nossa ação. Hoje, a SBIBHAE orgulha-se de possuir o mais avançado hospital da América Latina; um Instituto de Ensino e Pesquisa com atuação de vanguarda em destacados campos da investigação médico-científica; e um Instituto de Responsabilidade Social que responde, na comunidade de Paraisópolis, pela promoção e manutenção da saúde de mais de 10 mil famílias carentes. Em breve, estará inaugurando também sua Universidade da Saúde, com cursos técnicos, de graduação e pós-graduação, eventos científicos e atividades de treinamento destinados aos colaboradores do Einstein e à sociedade em geral. Esta é a melhor forma de retribuir o muito que a cidade nos deu. Esta é nossa maneira de dizer: "Obrigado, São Paulo!"
Cláudio Lottenberg é Mestre Doutor em Oftalmologia e Presidente da Sociedade Beneficente Israelita Brasileira Hospital Albert Einstein