Vittorio Corinaldi, arquiteto ítalo-brasileiro radicado em Israel, foi um dos responsáveis pelo projeto do Kibutz Kfar Aza, um dos kibutzim atacados no dia 7 de outubro de 2023, quando o grupo terrorista Hamas invadiu Israel. Corinaldi foi, também, um dos responsáveis pelos projetos de outros kibutzim, de norte a sul de Israel.
Os Corinaldi, uma família de judeus italianos, imigrou para o Brasil em 1939, um ano após o governo fascista de Mussolini adotar as “Leis Raciais” inspiradas nas de Nuremberg, de 1935, na Alemanha nazista. Em 1955, já arquiteto formado, Vittorio trocou o Brasil por Israel, pois queria participar da construção do Estado Judeu. Os projetos de kibutzim de Vittorio são uma combinação de estética, funcionalidade e respeito pelo ambiente, refletindo tanto sua formação quanto sua visão sobre arquitetura e urbanismo.
Vida na Itália
Vittorio nasceu em Milão, em 1931. Era o segundo de três filhos de Margherita e Adalberto Corinaldi. Sua irmã mais velha, Elena, nasceu em 1930 e seu irmão caçula, Emanuel, em 1935. O pai era diretor da importante companhia de seguros, a Assicurazioni Generali.
Vittorio teve uma infância feliz no seio de uma família da burguesia judaica italiana. Ao completar seis anos foi matriculado numa escola estatal. Os judeus que viviam na Itália, uma pequena minoria, estavam integrados na sociedade e na cultura italiana, mas a vida deles mudou drasticamente a partir de 1938, quando o governo fascista outorga as “Leis Raciais” para “avançar” no que o fascismo chamava de “defesa da raça italiana”. As leis, claramente racistas e antissemitas, privaram os judeus da cidadania italiana, proibiam-lhes ocupar cargos governamentais e profissionais, possuir bens imobiliários, lecionar e estudar em escolas estatais, entre outras restrições. Elena e Vittorio foram obrigados a deixar a escola estatal e passaram a estudar numa escola judaica.
Margherita e Adalberto acompanhavam o desenrolar dos acontecimentos na Itália e, após a publicação das leis racistas, decidiram que chegara o momento de partir. O Brasil foi o destino escolhido, ainda que fossem profundamente sionistas. Mas, em 1939 era quase impossível conseguir um visto para a então Palestina sob Mandato Britânico, pois os britânicos emitiram em março daquele ano um documento chamado White Paper, para coibir a entrada de judeus na então Palestina. O documento praticamente fechava o território aos judeus, com exceção de uma insignificante fração de refugiados.
Assim, em junho de 1939, a família deixou a Itália a bordo do navio Augustus, com vistos de turistas válidos por três meses e um futuro incerto pela frente. Sobre a viagem, Vittorio costuma dizer: “Para nós, crianças, a viagem pareceu um prazeroso cruzeiro de lazer. Só muito mais tarde soubemos avaliar a carga de apreensões que acompanharam a decisão de nossos pais e a preocupação com a adaptação a um ambiente desconhecido”.
Algum tempo após chegar a São Paulo, a família se mudou para uma pensão de imigrantes refugiados na Avenida Angélica. O Colégio Piratininga foi a primeira escola de Vittorio no Brasil. Ainda sem saber português, a professa permitiu inicialmente que ele fizesse as lições em italiano. Gradativamente, o português substituiu a língua materna e a cultura brasileira foi sendo absorvida. Tanto sua mãe quanto seu pai tornaram-se ativistas nas organizações judaicas.
A semente do sionismo
Os acontecimentos trágicos da 2a Guerra Mundial, culminando com o extermínio de seis milhões de judeus durante o Holocausto, tornaram cada vez mais altos os clamores dos judeus do mundo todo pela criação de um Lar Nacional Judaico, um Estado Judeu. Este era um assunto permanente nas conversas familiares durante as quais os jovens absorviam o Sionismo enquanto acompanhavam as notícias sobre o que acontecia na Palestina sob Mandato Britânico.
Assim escreveu Vittorio em um de seus inúmeros artigos para publicações brasileiras e israelenses: “Surgia, então, em nossos espíritos adolescentes, um impulso de solidariedade que nos levava quase a sonhar com um alistamento voluntário junto àqueles combatentes do Ishuv1, que para nós personificavam a justiça de uma causa levada em condições de desigualdade e dureza”.
Vittorio se integrou ao movimento juvenil Dror, participando ativamente dos programas do grupo, entre os quais, o período de treinamento agrícola como preparação para a vida nos kibutzim. Suas memórias da época do Dror fazem parte do livro que ele publicou recentemente, Fragmentos de Memória.
Formação acadêmica
Vittorio cursou a Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP). Ainda estudante, participou de um concurso internacional de estudantes de arquitetura organizado pela Bienal de Arte de São Paulo. O projeto, apresentado em conjunto com dois colegas, foi premiado por um júri internacional do qual participavam nomes ilustres do Movimento Moderno da Arquitetura, entre eles Walter Gropius e Alvar Aalto. Gropius foi fundador e mestre da Bauhaus2, escola de vanguarda na arquitetura do século 20, e que está fortemente presente na arquitetura de Tel Aviv. O finlandês Aalto ensinou a gerações de arquitetos o uso correto de materiais em arquiteturas despojadas de formalismos.
Momento de decisão: Aliá
Ainda que recém-formado, Vittorio já realizara projetos que haviam sido bem recebidos e poderia ter uma carreira de sucesso no Brasil. Mas, a vontade de participar da construção e solidificação do recém-criado estado de Israel superou as oportunidades que poderia ter no País. Assim tomou a decisão de fazer aliá e o Kibutz Bror Chail foi o local escolhido para ser seu novo lar.
Vittorio chegou a Israel aos 24 anos, um país que ainda tinha pela frente inúmeros desafios e dificuldades, levando na bagagem o aprendizado e os padrões da arquitetura brasileira dos anos 1950 e se defrontando com as poucas perspectivas que a arquitetura israelense tinha então para oferecer.
Desses primeiros momentos, Vittorio relembra com gratidão aqueles que o ajudaram e incentivaram desde o início, entre os quais Dov Tzamir (no Brasil usava o nome de Bernardo Cymring), que chegou a ser conselheiro político do então primeiro-ministro David Ben-Gurion.
Foi Tzamir quem mostrou a Vittorio o potencial de trabalho profissional que o kibutz oferecia. Quando chegou a Bror Chail, em 1956, as moradias dos kibutzim de modo geral eram acampamentos de barracas. A Agência Judaica era, então, o órgão oficial encarregado de toda a sua infraestrutura – do financiamento ao planejamento e à execução. Foram necessários muito trabalho, determinação, política e profissionalismo para romper as barreiras então impostas pelos padrões arquitetônicos de quem estava à frente da implantação dos kibutzim, além dos parcos recursos disponíveis. O país estava em plena fase de construção e absorção decorrentes das ondas de refugiados que vinham da Europa e dos países árabes.
Vittorio entrou no Departamento de Planejamento do Movimento Kibutziano, onde chegou a ocupar o posto de arquiteto-chefe durante 10 anos. O Departamento ainda era um embrião do que viria a se tornar nos anos seguintes. Junto com um grupo de jovens arquitetos vindos de diferentes países, ele ajudou a desenhar o perfil dos kibutzim, de norte a sul no país, integrando a paisagem e as construções aos princípios e ideais socialistas que marcaram a implantação deste modelo de vida comunitária, procurando atender às necessidades e às demandas da sua população. Vittorio era o responsável por inúmeros projetos nas áreas de habitação, educação, esporte, edifícios públicos, urbanismo e planejamento regional em todo o território israelense.
“No kibutz, como arquiteto, tentei dar forma física a uma ideia que abracei e que por muito tempo me fascinou. Fascinou-me a vontade de renovar o conceito do social segundo uma visão totalmente diferente e completa; fascinou-me o conhecimento de homens e mulheres de extrema modéstia pessoal, mas de grande dedicação e estatura moral, de comportamento direto e transparente; fascinou-me a experiência de uma comunidade absolutamente solidária e capaz de reger autonomamente seus destinos, sem qualquer tipo de compensação material individual (em outras palavras, sem salário pelo trabalho e sem dinheiro nas transações) e através de um mecanismo exemplar de democracia aberta, direta e participativa...”.
Quando descreve sua atuação no Departamento de Planejamento do Movimento Kibutziano, Vittorio afirma sua atividade como arquiteto: “Sempre procurei em minhas obras ser fiel a esse espírito: fugindo de modismos bombásticos e usando um vocabulário visual simples, claro, limpo e despretensioso”. Em todos os seus trabalhos aspirava dar à arquitetura do kibutz um sentido de arte de formação de ambiente. Acreditava que se deve ver o projeto além de sua interpretação utilitária e dizia: “A essência de nossa criatividade está na estruturação de espaços capazes de despertar uma experiência estética e intelectual”.
Os projetos de Vittorio marcaram não apenas o Kibutz Bror Chail, mas a maioria dos kibutzim que integravam o Conselho Regional Sha’ar HaNegev. No kibutz que leva o nome do Conselho Regional, participou do planejamento e design de diversos edifícios, incluindo moradias e espaços comunitários, como, por exemplo, o ginásio poliesportivo. Seu trabalho foi marcado pela busca de uma arquitetura que se integrasse ao contexto árido e desértico da região, buscando criar soluções eficientes e sustentáveis no uso de recursos naturais, como água e energia solar.
No Kibutz Sde Boker, famoso por ser a residência de David Ben-Gurion, ex-primeiro-ministro de Israel e figura central na fundação do Estado, Corinaldi também deixou sua marca. Ele desenvolveu projetos residenciais e de espaços comunitários, sempre com uma abordagem que priorizava a simplicidade e a funcionalidade, em harmonia com a paisagem local.
O projeto no Kibutz Ein HaShofet, uma das primeiras comunidades agrícolas a serem estabelecidas em Israel, teve a assinatura de Corinaldi em alguns de seus edifícios mais emblemáticos. Ele ajudou a desenhar moradias e instalações coletivas que refletiam a vida comunitária e colaborativa típica do kibutz, mas com um olhar voltado para as necessidades de modernidade e conforto.
Corinaldi também trabalhou no Kibutz Yagur, em uma área mais verde de Israel, desenvolvendo projetos que refletiam uma relação estreita entre a arquitetura e o entorno natural. O design buscava aproveitar a vegetação local e as características do clima para criar espaços mais agradáveis e sustentáveis. No Kibutz Ma’ale HaHamisha, situado perto de Jerusalém, o arquiteto também deixou sua marca, entre outros.
Ele foi pioneiro em adotar soluções modulares, que permitiam adaptação ao crescimento das comunidades ao longo do tempo. Essas soluções eram práticas, econômicas e, ao mesmo tempo, respeitavam as condições climáticas locais, como a forte incidência solar e o calor do deserto.
No decorrer dos anos, Vittorio se dedicou a divulgar os aspectos particulares do planejamento e arquitetura dos kibutzim, enfatizando o caráter único dessa arquitetura e do seu lugar no contexto cultural israelense mais amplo. Ele o fez através de artigos publicados em Israel e no exterior, bem como em palestras ministradas a profissionais e ao público em geral.
Em 2017, seus arquivos pessoais – incluindo desenhos, reproduções e vários álbuns de fotos – foram transferidos para Yad Tabenkin, o arquivo central do movimento kibutziano. Além do arquivo pessoal de Vittorio, Yad Tabenkin também mantém o acervo do Departamento de Planejamento do Movimento Kibutziano Unido, que contém muitos outros projetos criados por Corinaldi em seu trabalho como arquiteto-chefe do órgão. Nos últimos anos, tem se dedicado a escrever artigos. Em 2019, publicou, através da Associação Dror, um livro de caricaturas do kibutz intitulado Ironias do Destino. Com sua esposa Yaffa – tiveram três filhos, Amos, Yonatan e Guidon – viveram no Bror Chail durante 40 anos até que, em 1995, mudaram-se para Tel Aviv.
Kibutz Kfar Aza
Fundado em 1957, o Kibutz Kfar Aza está localizado no sul de Israel, a cerca de dois quilômetros da Faixa de Gaza.
Antes do massacre de 7 de outubro de 2023, o kibutz abrigava 950 moradores, muitos dos quais se dedicavam ativamente à promoção da paz e ao fortalecimento do diálogo com os palestinos. Um exemplo trágico é a família Kutz. Durante 15 anos, eles organizaram um festival anual de pipas próximo à cerca que separa Israel de Gaza. As pipas carregavam mensagens de esperança e paz, visíveis do outro lado da fronteira. Em 2023, o festival de pipas estava programado para o dia 7 de outubro, em Simchat Torá. A família Kutz fazia os últimos preparativos para o evento quando, poucas horas antes do início, terroristas do Hamas invadiram o kibutz e assassinaram toda a família. Os corpos do pai, da mãe e dos três filhos adolescentes foram encontrados abraçados um ao outro.
O Kibutz Kfar Aza é um microcosmo do massacre onde o Hamas matou bebês e famílias inteiras, decapitando pessoas e cometendo os mais diversos atos de selvageria. Incendiaram as casas e lançaram granadas dentro para forçar os ocupantes a saírem dos abrigos antibomba e então abriram fogo contra eles. Essa comunidade fronteiriça foi reduzida a ruínas. As casas foram queimadas até restarem apenas suas estruturas, crivadas de balas e manchadas de sangue – um retrato do horror vivido por seus moradores. Naquele dia, 61 dos 950 residentes foram brutalmente assassinados pelos terroristas palestinos, e outros dois morreram no cativeiro. Dezoito pessoas foram sequestradas e levadas para Gaza, incluindo crianças de apenas quatro anos. Entre os reféns estavam duas mães – Hagar e Chen – cada uma capturada junto com seus três filhos. Elas foram libertadas posteriormente no acordo firmado entre Israel e o Hamas em novembro de 2023.
Desde então, a comunidade de Kfar Aza encontra-se devastada. A maioria dos moradores está dispersa, alojada em dormitórios e hotéis, onde estão no caminho para sua reabilitação – incluindo tratamento psiquiátrico e tratamento para lidar com o trauma.
1 Ishuv – denominação na época das comunidades judaicas em Eretz Israel.
2 A Bauhaus foi uma escola de arte vanguardista na Alemanha. Foi uma das maiores e mais importantes expressões do que é chamado Modernismo no design e na arquitetura, sendo a primeira escola de design do mundo.