Um dos principais retratistas do século 19, foi o primeiro a trabalhar no mundo alemão não-judaico e, ainda assim, permanecer assumidamente judeu. Suas obras representam o encontro entre a tradição judaica e os desafios do mundo moderno.
A profundidade e talento de Moritz Daniel Oppenheim nos retratos e pinturas de gênero*, também chamadas de petit genre, sobressaem-se em suas obras. Apesar de ter retratado personalidades proeminentes da época, judias ou não, é hoje lembrado por documentar pictoricamente a vida judaica tradicional, principalmente familiar, e as festas e rituais religiosos em seus óleos e gravuras.
Infelizmente, muitas telas se perderam durante a 2ª Guerra Mundial. Em 1941, os nazistas confiscaram todos os seus trabalhos, na Alemanha. No pós-guerra, seu nome ficou praticamente esquecido em seu país natal, até as últimas décadas do século 20, quando o museu de Hanau, cidade onde nasceu, começa a resgatar suas obras e criar seu acervo. Atualmente, seus quadros estão espalhados em diversos museus e coleções particulares, mundo afora. Em 2000, para celebrar os 200 anos do nascimento do artista, o Museu Judaico de Frankfurt, em colaboração com o Museu de Hanau, exibiu uma rica retrospectiva de sua obra. No mesmo ano, a exposição foi apresentada em Nova York, no Museu da Yeshiva University.
A importância de Oppenheim, considerado o "primeiro pintor judeu", vai além de seu talento como artista ou do acervo de sua obra. Para o próprio pintor, mais importante do que o estilo artístico era o conteúdo de seu trabalho, a mensagem contida nas telas e gravuras. Sua vida e carreira artística correram paralelas à emancipação dos judeus, na Europa. Muitas das obras representam a nascente burguesia judaica: intelectuais, políticos, homens de negócios e artistas; judeus que cobravam seu direito a uma participação plena na sociedade alemã. À época, a opção de permanecer judeu acarretava grande discriminação social, atrelada a uma série de restrições legais. Na Europa Ocidental, a emancipação judaica, processo longo e complicado iniciado na França em 1789, só foi completada 80 anos mais tarde, em seu sentido estritamente legal.
Para muitos intelectuais judeus e membros da incipiente burguesia judaica européia, a conversão ao cristianismo parecia o caminho indicado aos que buscavam a liberdade e o sucesso. Outros queriam permanecer judeus, mas com uma religião mais "adequada" à vida em meio à sociedade cristã. Nascia o Movimento Reformista judaico-alemão, que advogava a introdução de novos conceitos e idéias na prática do judaísmo, de modo a adaptá-lo à modernidade. Oppenheim foi uma exceção; orgulhoso de sua identidade, manteve-se fiel às práticas da ortodoxia judaica durante toda a vida, sendo ativo membro da congregação dirigida pelo famoso rabino Samson R. Hirsch, brilhante porta-voz da ortodoxia no século 19.
Vida e carreira artística
Moritz Daniel Oppenheim nasceu em 1800, em uma família judia ortodoxa, em Hanau, próximo a Frankfurt. As portas do gueto onde nascera tinham sido derrubadas pelos exércitos de Napoleão, que ocuparam toda a região.
Após ter recebido educação judaica, o jovem Moritz começou a estudar pintura na cidade onde nasceu. Pouco depois, aproveitou as novas oportunidades abertas aos judeus pelo incipiente processo de emancipação, inscrevendo-se na recém-criada escola de artes de Frankfurt, Staedel Art Institute, com apenas 17 anos. Tratava-se de fato extraordinário para um pintor de sua religião. Durante toda a Idade Média e início da Era Moderna, os artistas judeus haviam sido confinados aos guetos, sendo-lhes permitido estudar ou exercer a veia artística apenas no seio de suas próprias comunidades.
Posteriormente, foi para Paris, onde teve aulas com o pintor francês Jean-Baptiste Regnault. Em 1821, já em Roma, continuou os estudos com mestres como Thorwaldsen, Niebuhr e Overbeck, apesar da grande discriminação de que foi alvo por ser judeu.
Na capital italiana, começa a estudar a vida dos judeus no gueto, onde buscou inspiração para os primeiros esboços sobre os diferentes rituais que regem a prática do judaísmo. Estes, mais tarde, ajudaram a compor a famosa série "Cenas da Vida da Família Judaica Tradicional". Durante sua estada na Itália, Oppenheim se aproximou do Barão Carl Mayer von Rothschild, que adquiriu vários de seus trabalhos. Era o início de um longo e cálido relacionamento entre o pintor e o clã Rothschild.
De volta à Alemanha, em 1825, instalou-se em Frankfurt, montando um estúdio onde trabalhava e, também expunha, muitas vezes suas obras. O quadro "David tocando diante de Saul" levou a seu estúdio, naquele mesmo ano, admiradores de toda a Europa. A cada trabalho exibido, Oppenheim avançava mais um passo na consolidação da carreira.
Sua arte
Um de seus primeiros auto-retratos mostra um jovem elegante, de ar confiante. Com apenas 18 anos, pintou o quadro "Moisés e a Lei", onde já se insinua a postura artística e judaica que adotaria. Na tela, Moisés aponta para o mandamento "Não terás outros deuses...". Oppenheim teve o cuidado de não escrever na tela o nome de D'us em sua grafia completa.
Famoso por seus retratos, pintou inúmeras personalidades ao longo da vida. O realismo sempre foi uma das principais características ao executar este tipo de trabalho. As obras "Auto-Retrato" (1822) e "Ludwig Borne" (1831), como exemplo, revelam um mestre da pintura romântica, detalhista e perspicaz. Os quadros de "Hanna" e "Joseph Baer", de 1840, possuem a dignidade e simplicidade vista nos retratos da pintura da Idade de Ouro holandesa.
Entre seus clientes principais destacavam-se os Rothschild, a ponto de ser conhecido como "o pintor dos Rothschild e o Rothschild dos pintores''. Seus trabalhos para os membros da família, ao longo de 20 anos, abarcando três gerações do famoso clã, são mais do que simples retratos de membros da sociedade. Entre as que mais se destacam, contam-se as telas que pintou quando das bodas de Charlotte von Rothschild com o primo, barão Lionel Nathan de Rothschild, em 1836. Este último foi o primeiro judeu a ser membro do parlamento inglês e seu retrato transmite a auto-confiança e o otimismo que o caracterizavam. O de Adolph Carl Von Rothschild, feito em 1851, mais do que um retrato é a materialização artística do sucesso, poder e riqueza.
A partir de 1830 aventura-se pela pintura de genre para a burguesia alemã. Seus temas mesclavam atividades judaicas e alemãs, como que numa tentativa de conciliar, através da arte, as tensões e contradições entre as duas culturas. A primeira tela do gênero, considerada sua obra-prima, é "Retorno de um voluntário judeu das guerras à família, que ainda segue seus antigos costumes", de 1834. No quadro, o artista quer deixar clara a contribuição dos judeus alemães ao exército prussiano, como forma de dissipar as suspeitas levantadas sobre a atuação desses voluntários durante as guerras napoleônicas. Os judeus de Baden usaram a tela de Oppenheim em um panfleto com o qual defendiam a sua emancipação. Outra obra admirável é "Tarde de Shabat".
Seu talento era reconhecido em toda a Europa e foi o escolhido para ilustrar os trabalhos de Goethe, figura das mais representativas da cultura alemã de todos os tempos. Em 1832, por intervenção do escritor, o Grão Duque Carl August de Saxe-Weimar agracia Oppenheim com o título de Professor Honoris Causa.
Os retratos do Imperador austríaco Joseph II e do Kaiser Otto IV, feitos em 1839, foram fundamentais para a consolidação de sua fama como um dos mais importantes artistas do século 19. Em 1852, recebeu o título de Cidadão Honorário de Frankfurt. Acontecimento surpreendente e inédito para alguém tão assumidamente judeu, era mais uma comprovação de seu prestígio na sociedade alemã.
Uma série singular
A origem judaica e vivência no gueto de Hanau estão ainda mais presentes nos trabalhos das últimas duas décadas da vida do pintor. A série "Cenas da Vida da Família Judaica Tradicional", iniciada por volta de 1850, retrata os ciclos da rotina religiosa e familiar dos judeus. O ambiente em que se situam as telas são a casa e a sinagoga; no total, são 20 óleos sobre tela e 13 gravuras em preto e branco.
O grande sucesso da série levou o pintor a executá-las novamente em tons de cinza, ou grisailles, para que as imagens pudessem ser reproduzidas em fotografia. Este recurso era usado para a impressão de litogravuras em álbuns e livros fotográficos.
Em todas as obras da série, o artista denota certo saudosismo no retratar da vida dos judeus no gueto, no século 18, antes do início do processo de sua emancipação, na Europa. É um mundo embebido em tradição, firmemente assentado na vida familiar, onde são observadas com devoção todas as leis e tradições judaicas; um mundo em que o estudo tem importância primordial. Oppenheim é sempre detalhado na descrição dos eventos ligados ao calendário judaico. Revela, também, valores arraigados entre os seus, como o amor à família, a compaixão pelo próximo, a união e afetividade entre os membros da comunidade.
Mas o gueto que ele reproduz é muito diferente do local onde os judeus foram obrigados a viver, durante séculos. Em suas telas, não reproduz um local sombrio; ao contrário, seu gueto é bastante acolhedor. É um lugar onde os judeus espontaneamente se refugiam para fugir da realidade não-judaica da sociedade maior, que os cercava e sufocava. Em seu respeitado ensaio sobre as pinturas de Oppenheim, o escritor Ismar Schorsch afirma que o gueto de Oppenheim não era uma representação da inferioridade cultural e social judaica, pois que o pintava "como um refúgio de civilidade e santidade em um mundo não civilizado; um oásis ao qual o judeu, forçado a buscar sua sobrevivência em um terreno hostil, voltava para restaurar seu corpo e sua alma".
Em termos artísticos, a série revela uma obsessão pelo detalhe e, ao retratar sentimentos e emoções, Oppenheim o faz de maneira quase teatral, conseqüentemente, perde grande parte da força e da sutileza que exibe em seus portraits. Mas, se como arte em si, a série "Cenas da Vida da Família Judaica Tradicional" não representa o melhor de sua produção artística, certamente é fundamental para a compreensão do contexto social, à época. Reflete também seu empenho em abordar o dilema enfrentado pelos judeus alemães, em meados do século 19. Ao incluir em seus trabalhos personagens não-judeus, como, por exemplo, no quadro Sucot, em que se vêem crianças alemãs olhando, curiosas, para dentro de uma Sucá, Oppenheim alude à necessidade de integração do judaísmo ao mundo alemão, sem, no entanto, abrir mão da tradição. O sentimentalismo e saudosismo presentes são uma indicação de que, para os judeus, as certezas do passado se foram para sempre, sendo substituídas por uma realidade que desafia constantemente o próprio judaísmo e seus valores.
Na época em que viveu Oppenheim, a luta pela manutenção da identidade judaica, fosse como judeu observante ou não, era constantemente posta à prova. Era tamanha a pressão para que provassem ser bons cidadãos, que muitos judeus, incapazes de resistir, acabam convertendo-se ao cristianismo. Em sua arte, Oppenheim tenta mostrar que os judeus devem orgulhar-se de suas tradições e de seu passado e que existe a possibilidade de um futuro judeu, ainda que para alguém integrado no mundo alemão.
Entre suas últimas telas, duas se destacam pela qualidade artística: "O Casamento", de 1861, e "A Bênção Rabínica", de 1871. A perfeita composição das telas, principalmente em "O Casamento", com seu brilho dourado e cores venezianas, permite que cor e luz se encarreguem de narrar a temática.
Moritz Daniel Oppenheim morreu em Frankfurt, em 1882. Sem jamais ter aberto mão de sua fé ou de suas tradições como forma de conquistar o sucesso, Oppenheim fez do judaísmo tema constante em suas obras; e de sua arte uma ferramenta para a continuidade e a transmissão de sua mensagem. Além de rico legado artístico para a humanidade, provou que o sucesso e a vida segundo os princípios da fé judaica não eram mutuamente excludentes.
Bibliografia:
Tumarkin, Goodman, Susan - The Emergence of Jewish Artists In Nineteenth-Century Europe
Artigo de Isidore Singer e Frank Cramer, "Moritz Daniel Oppenheim", publicado na Jewish Encyclopedia.com
Artigo de Richard McBee, "Moritz Daniel Oppenheim", publicado em fevereiro de 2001, American Guild of Judaic Art
* Pinturas de gênero são os trabalhos ricos em detalhes, precisão e apuro técnico. Constituem um estilo sóbrio, comprometido com a descrição de pessoas comuns, realizando atividades do cotidiano; muito apreciado pela emergente burguesia da época.