Famoso por seus retratos e pinturas de gênero, Kaufmann fez do universo judaico, tema central de seu trabalho.
Isidor Kaufmann viveu em Viena, em fins do século 19, enquanto a cidade vivia extraordinária efervescência cultural. Suas pinturas em óleo sobre madeira, ricas em detalhes, precisão e apuro técnico, eram muito apreciadas pela burguesia, na Viena do fin-de-siècle. No entanto, sua necessidade de encontrar um caminho artístico de uma arte mais pura, sem apelo ao comercialismo, leva-o a procurar inspiração na vida tradicional judaica, principalmente entre os judeus chassídicos da Galícia, Hungria e Polônia. Ao registrar sua vida, procurou ressaltar a beleza de seus valores singulares, ligando-os, em contraponto, com a aculturação do mundo vienense.
Mas, apesar de ter dedicado grande parte de sua obra ao universo judaico, nunca deixou de retratar a cosmopolita sociedade vienense daquele fim de século. Como escreve seu biógrafo, G.Tobias Natter, "o pintor nunca vivenciou a tensão entre estes dois mundos de forma tão forte que o impelisse a optar por um dos lados. No fundo, o que queria criar era um retrato absolutamente fiel da vida tradicional da ortodoxia judaica. Não via suas obras como lembranças de um mundo que fenecia, mas como verdadeiras 'filtrações' dos valores espirituais do mesmo".
Sua vida
Isidor nasceu em 1853, na cidade de Arad, hoje Romênia, à época parte do Império Austro-húngaro, onde servia seu pai, oficial do exército. Contrariando as expectativas dos pais, judeus tradicionais que esperavam que o filho seguisse uma carreira ligada ao comércio, Kaufmann acabou fazendo da pintura o seu ganha-pão e a sua vida. Mas, apesar de ter começado a pintar na adolescência, até completar 21 anos tentou fazer carreira no Banco do Comércio e Negócios Exteriores, em Arad.
Foi um desenho de Moisés, de 1874, o que deslanchou sua carreira artística. Nesse mesmo ano, seu talento foi descoberto pelo Conde Andrassy, que se torna seu grande incentivador. Seu pai falecera muito jovem e Isidor consegue convencer a mãe a deixá-lo ir para Budapeste estudar artes. Graças ao apoio financeiro do conde, no ano seguinte o pintor realiza seu intento, inscrevendo-se na Academia Nacional de Arte daquela capital.
No entanto, sua estada em Budapeste foi curta; um ano mais tarde o jovem artista se muda para Viena. Vivia-se então, uma época de prosperidade e crescimento. Os judeus da cidade, que a partir de 1867 passaram a ter acesso a universidades e profissões até então proibidas, tinham, neste processo, um papel importante em todas as esferas da vida econômica e cultural. E Kaufmann, que viveu em Viena até o final de seus dias, participou intensamente dessa efervescência cultural.
Uma vez estabelecido em Viena, Kaufmann se inscreve na Academia Imperial de Artes Visuais, mas, a princípio, não tem sucesso. Quando, após o primeiro ano, não é aceito para prosseguir estudos nessa instituição, não se deixa abater pelo rechaço e passa a estudar com Joseph Mathäus Aigner, famoso retratista.
Posteriormente, é readmitido na Academia, onde completa o curso. Torna-se aluno de Josef Trenkwald, conhecido pintor histórico, que viria a ser seu mentor. É dele que Kaufmann adquire o firme embasamento no naturalismo que o tornaria famoso.
No entanto, não adota a linha artística do mestre, dedicando-se, desde cedo, à pintura de gênero* e aos portraits. Por volta de 1883, seu trabalho desperta o interesse do marchand Friedrich Schwarz, famoso por apoiar e investir em jovens talentos. E é o que faz com Kaufmann.
Em sua obra, o artista retratava o cotidiano da vida de pessoas comuns, incorporando temas e personagens judaicos ou não, mendigos, jogadores de xadrez, rabinos e outros. Mas, a partir de 1894, os motivos judaicos se tornam a alma de sua arte. À procura de inspiração, Kaufmann começa a viajar dentro das fronteiras do Império Austro-húngaro, nas áreas onde a vida judaica se mantinha rica e vibrante, apesar das dificuldades e perseguições.
Torna-se verdadeiro cronista dos tipos e costumes judaicos da Galícia, nos shtetls e guetos da Silésia, Hungria e Polônia, registrando em seus esboços tudo o que atraía seu olhar no momento mesmo das viagens. Com grande esmero, cuidadosamente documenta estilos de vida, peculiaridades e vestimentas de seus correligionários na Europa Oriental. As experiências vivenciadas e os sentimentos nele despertados foram retratados com riqueza de detalhes. Em 1899 projetou a "Sala de Shabat", no antigo Museu Judaico de Viena, infelizmente destruído pelos nazistas. A sala, com seus móveis e objetos, serviu de inspiração para projetos similares em outros museus pelo mundo.
É interessante notar que os personagens de seus quadros - rabinos, estudiosos do Talmud, chassidim, crianças, mulheres - não aparecem com as roupas do dia-a-dia, de trabalho, mas com seus melhores trajes, enfeites e objetos que usavam no Shabat ou outras festividades religiosas. Não se sabe se sua intenção foi retratá-los sob um aspecto diferente daquele em que a sociedade não-judaica os via ou se ele apenas registrava aspectos que, para ele, seriam mais importantes e melhor refletiriam a essência judaica.
Apesar de sua paixão pelo universo judaico, Kaufmann nunca deixou de retratar a sociedade vienense. Sua arte abrangia duas vertentes, a Viena cosmopolita e o mundo tradicional e religioso do shtetl. Mas, indiscutivelmente, seus trabalhos mais conceituados tratam da vida dos judeus, entre os quais se destacam: "A visita do Rabi", "O enxadrista" e "O cético", que lhe proporcionou a medalha de ouro na Exposição Mundial, aWeltausstellung de 1873.
Seu talento lhe garantiu o reconhecimento dos apreciadores de arte, judeus ou não. O quadro "A visita do Rabi", por exemplo, foi comprado pelo imperador austro-húngaro, Francisco José I, e, posteriormente, doado ao Museu Histórico e de Belas Artes de Viena, Kunsthistorisches Museum. Ao longo de sua carreira, recebeu inúmeros prêmios em exposições internacionais, entre os quais uma medalha de ouro da Exposição Internacional de Munique (1897). Merecem destaque, também, o Prêmio Barão Königswarter Künstler; a medalha de ouro do Imperador da Alemanha, em Berlim (1899); a medalha de 3º lugar na Exposição Universal de Paris (1900) e o prêmio da maior exposição de artistas judeus da época, em Berlim, em 1907.
Após a 1ª Guerra Mundial, o interesse por sua obra cresceu muito, principalmente após sua morte, em 1921, em especial em Viena, cidade que escolheu para seu segundo lar. A obra de Kaufmann pode ser apreciada, hoje, em museus e coleções particulares. Em dezembro de 2006, seu quadro o "O antiquário" foi vendido pela Sotheby's de Nova York, por 772 mil dólares.
Sua arte
A pintura de Kaufmann é extremamente detalhista, característica que se observa desde seus primeiros trabalhos e que foi mantida ao longo de sua carreira.
Renomado por suas superfícies polidas e luzidias sobre mogno, madeira nobre, consegue criar, com jogo de cores e luzes, uma claridade constante nas imagens luminosas e tranqüilas, que transmitem muita paz.
As pinceladas precisas, aliadas ao brilho das cores, ganhavam dimensões especiais em decorrência do realismo com que as retratava. No conjunto de sua obra há muitos retratos de chassidim, constituindo, cada um deles, não apenas penetrante estudo do indivíduo representado, mas também da serenidade, integridade, dignidade e, principalmente, do orgulho de ser judeu que o artista desejava ressaltar, ao registrar a vida nas comunidades judaicas.
No trabalho, "Uma difícil passagem do Talmud", Kaufmann retrata um jovem aluno da ieshivá, com um gasto volume do Talmud repousando em seu colo. Tem, na cabeça, uma kipá preta, e seu rosto, suave e doce, está extremamente sério, quiçá pela responsabilidade dos textos que estuda. No quadro "Hannah", a jovem senhora (possivelmente, sua filha) tem uma expressão digna e serena. O elemento que mais chama a atenção é o lindo sterntichel, um adorno com o qual as mulheres casadas cobriam a cabeça.
O olhar sofrido, mas digno, do menino na obra "Criança com o lulav", é um dos tantos detalhes que comprovam a maestria do artista. Neste quadro, Kaufmann pintou um garoto de pé, diante da Arca Sagrada da Torá, tendo nas mãos o ramo de mirta e salgueiro, e um etrog. Usa um talit e seus peiot caem, encaracolados, sobre os ombros. (Vide pág. 19, artigo Sucot: algumas leis e tradições).
"Noite de Sexta-feira" retrata mais uma cena do cotidiano dos judeus ortodoxos, uma mulher sentada num cômodo elegante, ao lado de uma mesa posta para a chegada do Shabat. Este momento, normalmente associado à chegada da escuridão da noite, é visto por Kaufmann como uma cena repleta de luminosidade. As duas velas flamejantes, sobre a mesa coberta com uma toalha de linho engomada, indicam que já foi feita a bênção sobre as velas. A obra é um exemplo típico de seu estilo ao retratar pessoas devotas. Todas parecem extasiadas pelo cumprimento do ritual. Têm o ar perdido em sonho, muito semelhante ao obtido pelos pintores do simbolismo do final do século 19, que conseguiram distanciar-se do mundo material do impressionismo para entrar na profundeza misteriosa do mundo das emoções.
A cena provavelmente retrata a casa de uma família de classe média, em um dos tantos vilarejos da Galícia. Na verdade, o quadro usa quase que o mesmo ambiente da "Sala de Shabat", projetada para o antigo Museu Judaico de Viena, acima mencionada, e que reproduzia as inúmeras residências que visitara ao percorrer as províncias do Império dos Habsburgo. Kaufmann deixou inacabado o quadro "Noite de Sexta-feira". Este fato, assim como o de usar tela em vez de seus tradicionais painéis em mogno, sugere que o trabalho possa ter sido pintado em seus últimos anos.
As obras de Kaufmann eram populares principalmente entre a burguesia judaica, cada vez mais assimilada e cosmopolita, na Viena do fin-de-siècle. Para os que adquiriam seus trabalhos, as pinturas serviam duplo-propósito: faziam a ponte entre passado e presente, dando-lhes uma conexão representativa com sua herança ancestral; e serviam ainda como mais um entre os milhares de atavios e adornos, carregados de status, que compunham o estilo de vida de seus clientes burgueses. Ironicamente, esses judeus citadinos, assimilados, viam na obra de Kaufmann o último elo com a vida que seus pais e avós tinham levado - aquele passado comum que tanto se tinham esforçado para deixar para trás...
Bibliografia:
Furman, Jacobo, The Treasures of Jewish Art, from the Jacobo and Asea Furman Collection of Judaica ", Ed. Hugh Lauter Levin Associates
Tumarkin, Goodman, Susan - The Emergence of Jewish Artists In Nineteenth - Century Europe
Ronald Alley, Catalogue of the Tate Gallery's Collection of Modern Art other than Works by British Artists, Tate Gallery e Sotheby Parke-Bernet, London 1981