A Europa, mergulhada na sua mais grave crise social e econômica desde a 2ª Guerra Mundial, resgata fantasmas como o terrorismo e o racismo, responsáveis por instaurar no continente uma atmosfera de temor, incerteza e desilusão.
Em 24 de maio, um atirador disparou no Museu Judaico de Bruxelas, em uma das principais capitais diplomáticas do planeta, e ceifou a vida de quatro pessoas. No dia seguinte, eleições para o Parlamento europeu produziram contornos claros de um fenômeno temido há anos: o avanço da extrema direita, com raízes historicamente fincadas na xenofobia e no antissemitismo.
A votação para uma das instituições mais opacas da União Europeia, geralmente condenada às margens do noticiário, ganhou destaque inaudito. Serviu para uma miríade de análises e interpretações, levando em consideração as especificidades de cada um dos 28 países que integram o bloco sediado em Bruxelas. No entanto, um fenômeno inquestionável repousa sobre o avanço das forças políticas ligadas ao nacionalismo exacerbado, com plataforma anti-imigração e rechaço à integração do continente.
“É um terremoto político”, comentou Manuel Valls, primeiro-ministro francês, sobre os resultados inéditos em seu país. A Frente Nacional, de extrema direita, amealhou 26% dos votos, deixando para trás a oposição de direita, o UMP, e o governista PS, do presidente François Hollande. A líder do partido, Marine Le Pen, persegue a estratégia de levar a organização fundada por seu pai, Jean Marie, aos holofotes principais da política francesa, ambicionando nada menos do que conquistar a presidência do país em 2017.
Negacionista contumaz do Holocausto, Jean Marie Le Pen liderou a FN de sua fundação, em 1972, até 2011. Tentou a presidência do país pela primeira vez em 1974, quando obteve escassos 0,74% dos votos, capitaneando um partido formado, entre outros, por ultracatólicos e colaboracionistas franceses do nazismo. Na eleição presidencial de 2012, Marine alcançou a marca de 18%, avançando sobre o voto de operários e da classe média cercada pela crise socioeconômica e por um horizonte sombrio de futuro. O desemprego na França orbita na casa dos 10%.
A herdeira de Jean Marie Le Pen se esforça para reconstruir a imagem do partido, tentando, por exemplo, afastar o rótulo de antissemita. Mas as conexões familiares e as raízes históricas de seu movimento alimentam uma caudalosa desconfiança. Em nota oficial, o Conselho Representativo das Instituições Judaicas da França (CRIF), organização “guarda-chuva” da comunidade francesa, declarou: “A História nos ensinou que crises econômicas promovem nacionalismo e isolacionismo, que são acompanhados pela rejeição ao outro, por sentimentos racistas, xenófobos e antissemitas”.
O fotógrafo e pintor francês Ron Agam, expoente da comunidade judaica, desenhou um quadro desolador: “A democracia da França corre perigo”, afirmou em entrevista ao site algemeiner.com. “Judeus na França estão agora ensanduichados entre um crescente antissemitismo dos elementos do islamismo radical francês e, uma crescente extrema direita que acabará revelando sua face verdadeira mais cedo ou mais tarde”.
Além da FN, cruzando o canal da Mancha, o Partido pela Independência do Reino Unido promove ações para rejeitar o rótulo de antissemitismo. Seu líder, Nigel Farage, prefere descrever o ideário como “anti-imigração e anti-integração europeia”, e pode atualmente gabar-se de um feito histórico: com 27% dos votos, deixou para trás os tradicionais trabalhistas e conservadores, que monopolizam há décadas a vida política britânica.
Na Alemanha, Grécia e Hungria, grupos abertamente antissemitas e embebidos no neonazismo registraram conquistas. O Partido Nacional Democrático alemão recebeu 1% dos votos, responsáveis por uma entre as 751 cadeiras do Parlamento europeu. Udo Voigt, líder do partido, tem enfrentado diversas tentativas de banir o partido, criado em 1964 e que nunca conseguiu juntar eleitores em número suficiente para participar do Parlamento alemão. Agora, no entanto, o neonazista Voigt frequentará a sede do legislativo da União Europeia.
O húngaro Jobbik contabilizou 15% dos votos, transformando-se na segunda maior força política do país. Outro partido antissemita, o grego Aurora Dourada, ultrapassou a marca de 9%. Os dois grupos também alimentam racismo em relação a ciganos e outras minorias.
“Acredito firmemente que deve ser banido”, afirmou sobre o Aurora Dourada o vice-ministro da Justiça, Transparência e Direitos Humanos da Grécia, Konstantinos Karagounis, em entrevista ao jornal israelense “The Jerusalem Post”. Interessante notar sua mudança de posição. Antes da eleição de maio, Karagounis havia classificado a proibição do grupo neonazista de “contra- produtiva”.
Vários líderes do Aurora Dourada já foram presos, depois do assassinato de um militante esquerdista, acusados de “dirigir uma organização criminosa”. Uma batalha jurídica se iniciou, e a Justiça grega terminou liberando a participação dos neonazistas gregos na eleição para o Parlamento europeu.
Depois de apuradas as urnas, Marine Le Pen se apressou a anunciar a formação de um bloco de extrema direita no Parlamento europeu, ao lado de aliados vindos da Bélgica, Holanda, Áustria e Itália. Brandiam como prioridade impedir o avanço da integração continental. Do lado de fora do Legislativo, em Bruxelas, manifestantes gritavam “fascistas na prisão”.
Embora os partidos tradicionais ainda mantenham a maioria dos votos na Europa, a extrema direita e, em geral, novos partidos à esquerda abocanham fatias crescentes do eleitorado, apoiados num discurso de mudanças. Na Espanha, o Podemos, criado a partir dos protestos de rua, quase chegou à marca de 10% dos votos, enquanto na Grécia, com 26,6%, o vencedor foi o Syriza, cujo líder, Alexis Tsipras, qualificou de “catastróficas” as condições impostas pela União Europeia e pelo Fundo Monetário Internacional em seu auxílio financeiro a Atenas.
Pesquisa da Liga Antidifamação, instituição norte-americana arquitetada para auscultar a antissemitismo no planeta, apontou a Grécia como o país com maior índice do sentimento racista, excetuando Oriente Médio e norte da África. Segundo o levantamento, 69% dos entrevistados sustentaram visões antissemitas. Um exemplo: registrou-se 85% de aprovação ao mito “os judeus detêm poder demasiado no mundo dos negócios”.
Em Tessalônica, no final de maio, vândalos atacaram o cemitério judaico. Hoje restam na cidade 1,5 mil judeus, enquanto antes do Holocausto a comunidade reunia 50 mil pessoas. Após o ataque, Evangelos Venizelos, ministro das Relações Exteriores da Grécia, declarou que seu governo “fará tudo o que for possível para encontrar e prender os perpetradores desse ato antissemita e odioso, que vai de encontro aos valores democráticos e de tolerância da sociedade grega”.
Enquanto o governo grego promete reagir, na Bulgária a comunidade judaica local pediu às autoridades mais proteção e a prisão do responsável pelas pichações antissemitas feitas no muro da sinagoga da capital, Sofia, no começo de junho. “Precisamos, também, de mais diálogo sobre como combater o ódio, a xenofobia e o antissemitismo”, exortou comunicado das lideranças comunitárias búlgaras.
Pululam no continente outros episódios de intolerância. No dia 4 de maio, num subúrbio de Bruxelas, a polícia recorreu a jatos d´água para dispersar cerca de 500 participantes da “Primeira Conferência Europeia da Dissidência”, arquitetada pelo antissemita belga Laurent Louis e que havia sido proibida pelas autoridades locais. Entre os convidados do evento, o infame artista francês Dieudonné M´bala M´bala, um dos principais porta-vozes do antissemitismo contemporâneo.
Dias depois, e às vésperas das eleições para o Parlamento europeu, o atentado contra o Museu Judaico de Bruxelas. A Europa do século 21 não pode tolerar a volta da mácula do antissemitismo, do racismo e da xenofobia. Cabe às autoridades europeias agir, com vigor e rapidez, para que a intolerância retorne à lata de lixo da História.
JAIME SPTIZCOVSKY,
foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.