Nos anos ‘80 do séc. 19, o filósofo, ensaísta e ativista Asher Zvi Hirsch Ginsberg adotou o pseudônimo hebraico de Ahad Ha’am – “Alguém Deste Povo”, conforme tradução literal de uma passagem do Gênesis. Há também quem traduza como “Um do Povo” ou “Primeiro do Povo”. Na verdade, a intenção do autor ao adotar este nome, foi bem além de se conferir uma simples assinatura literária. Ginsberg foi um idealista que, através do próprio nome, se atrelou ao destino do Povo Judeu na dimensão infinita da eternidade.
Quando Ha’am nasceu, perto de Kiev, na Ucrânia, no dia 18 de agosto de 1856, as condições de vida dos judeus eram complexas e enfeixadas em diversas restrições, a começar por suas condições de moradias: estavam confinados a um território demarcado pelo Império Russo, fora do qual eram proibidos de residir. Isto significava, também, que não podiam viver livremente em qualquer parte de toda a Ucrânia, apenas nas áreas designadas. Além disso, os judeus estavam impedidos de possuir terras ou de praticar uma série de profissões, o que concorria para limitar suas oportunidades econômicas, sendo forçados a se dedicar a pequenas atividades comerciais e ao artesanato. Por tudo isso, os judeus viviam praticamente isolados em cidades de pequeno porte, à feição de aldeias, chamadas em iídiche de shtetl. Embora a prática do Judaísmo fosse permitida, ocorriam restrições ocasionais e aleatórias, sobretudo no que dizia respeito à construção de sinagogas. Apesar de tantas limitações, alguns judeus conseguiram prosperar no território marcado, mas a maioria vivia numa condição de pobreza próxima da miséria.
Ahad Ha’am foi criado nessa atmosfera de opressão nos moldes de uma família judaica ortodoxa. Muito jovem, dominou a literatura rabínica e foi atraído pela corrente racionalista da filosofia judaica medieval e pelos escritos da Haskalah (Iluminismo). Este era um movimento judaico liberal cuja intenção era integrar o Judaísmo à modernidade do pensamento ocidental.
Aos 22 anos, Ginsberg se transferiu para Odessa, cidade russa portuária de grande porte, onde vivia uma vibrante comunidade judaica com atividades tão intensas e numerosas que a cidade era chamada de “Pequena Jerusalém”. Odessa foi o centro do movimento nacionalista conhecido como Chibat Tsion (Amor a Sião). Lá ele foi influenciado tanto pelo nacionalismo judaico quanto pelas filosofias materialistas russas e pelos filósofos positivistas ingleses e franceses.
Os seguidores do movimento eram chamados de Chovevei Tsion, cuja liderança reunia algumas das mais brilhantes mentes judaicas daquela época, com destaque para Eliezer Ben-Yehuda, o visionário do renascimento do idioma hebraico que, nos séculos anteriores, era restrito às cerimônias religiosas.
Ben-Yehuda argumentava que um renascimento da nação judaica deveria incorporar sua origem ancestral porque o iídiche se identificava com as perseguições aos judeus ashquenazitas e seus confinamentos compulsórios.
É certo que Ginsberg aderiu à ideologia do renascimento do idioma e, a partir dessa convicção, adotou um pseudônimo calcado no idioma hebraico. Ben-Yehuda afirmava que o único lugar viável para a afirmação do nacionalismo judaico moderno seria na Terra de Israel, onde os judeus deveriam assumir o hebraico como língua a ser falada no cotidiano a par de já ter sido a língua da Torá, do Tanach, da liturgia religiosa e da narrativa de sua história e das expressões de seus sábios e filósofos ao longo de séculos.
Em 1882, quando tinha 27 anos, a formação ideológica de Ahad Ha’am, que pode ser apontada como pré-sionista, ficou fortalecida com a leitura do livro Autoemancipação, escrito por um médico judeu russo chamado Lev (Leon) Pinsker. Nesta obra o autor argumentou que o antissemitismo não era um fenômeno passageiro de preconceito religioso medieval, mas um fenômeno moderno consistente, uma doença transmitida de geração em geração. Pinsker sustentou que essa doença só poderia ser curada se os judeus se deslocassem para um ambiente no qual pudessem determinar a sua própria autonomia econômica e social. Pinsker asseverou, ainda, que a Terra de Israel seria o único lugar viável para a autolibertação nacional judaica. Ele não apenas se afiliou ao movimento Chibat Tsion, como também se tornou seu líder.
Ahad Ha’am foi admitido no comitê central do Chibat, que bancou a publicação de seu primeiro ensaio, intitulado Este Não É o Caminho, escrito em hebraico, no qual enfatizou a necessidade absoluta de o Sionismo acumular uma sólida estrutura espiritual tendo como pilares os valores espirituais, históricos, culturais e tradicionais do Povo Judeu.
Enquanto o jovem Asher (Zvi Hirsch) Ginsberg brilhava em Odessa, um jovem chamado Theodor (Binyamin Zeev) Herzl se destacava entre os estudantes da Faculdade de Direito de Viena. Nascido em Budapeste no dia 2 de maio de 1860, era filho do comerciante Jakob e de Jeanete Herzl, um casal de classe média alta, quase totalmente assimilado. A mulher era apreciada por seu aprofundado conhecimento da literatura germânica, com o qual se exibia para as amigas, ao mesmo tempo em que costumava repetir, por alguma razão inexplicável, que seu filho teria um futuro grandioso.
Theodor se preparava para atuar como advogado, mas o que queria, mesmo, era ser autor teatral. Na faculdade, presenciou indignado alguns atos isolados de antissemitismo, mas encarava tais incidentes no contexto de um grande drama vivido pelos judeus, no qual, também por uma razão inexplicável, ele sentia que viria a desempenhar um grande papel. Tinha hábitos sofisticados de um cidadão austríaco nascido na Hungria e se situava longe da religião, embora mantendo um profundo sentimento judaico de caráter nacional. Definitivamente, não era um homem comum.
Em 1891, Herzl se encontrava em Paris como jornalista correspondente do jornal vienense Neue Freie Presse. Muitos historiadores afirmam que a concepção da implantação de uma pátria judaica fermentou a mente de Herzl enquanto ele se empenhava na cobertura do julgamento do capitão Dreyfus, vítima de uma conspiração antissemita por parte de militares do alto comando do exército francês. Entretanto, o posicionamento de Herzl, centrado no conceito da libertação nacional dos judeus, já estava consumado em sua formação política e intelectual. O infortúnio de Dreyfus apenas tinha servido para impulsionar seu propósito que resultaria no Sionismo, uma ideologia pacífica, mas que continha em sua formulação iniciativas tão inéditas e audaciosas que poderiam ser identificadas como verdadeiras ações revolucionárias.
Naquele mesmo ano, em Odessa, Ahad Ha’am já tinha solidificado sua condição de respeitado intelectual e combativo jornalista por conta da publicação de consistentes artigos na imprensa judaica, que proliferava em Odessa.
No dia 14 de fevereiro de 1896, Theodor Herzl publicou em Leipzig e Viena sua célebre obra O Estado Judeu, escrita em alemão e logo em seguida traduzida para outras línguas europeias. Seu conteúdo – a viabilidade da criação de uma pátria soberana judaica – inflamou as mentes e os corações do Povo Judeu tanto na Europa Ocidental como na Oriental, deflagrando o movimento rotulado como Sionismo político.
Ahad Ha’am decerto leu o livro de Herzl pouco depois de sua publicação e, também decerto, este lhe causou duas reações. A primeira foi no sentido de que o trabalho de Herzl não lhe significava uma novidade porque o julgava como uma reprodução da Autoemancipação de Pinsker, cujo subtítulo já o havia mobilizado: O chamado de um judeu russo para seus irmãos. Julgou que o chamado de Pinsker era tão vigoroso quanto o de Herzl, além de ter sido enunciado há muito mais tempo. A segunda reação foi no sentido de apontar a ausência de uma significativa essência judaica religiosa e tradicional na exposição de Herzl. Escreveu, então, um artigo intitulado O Estado Judeu e o Problema Judaico,no qual argumentou que a implantação de um estado judaico não deveria ser o único foco do Sionismo, até porque via com ceticismo a possibilidade de os judeus, sobretudo os da Europa Ocidental, trocarem sua existência por um futuro incerto na distante e desconhecida Palestina Otomana. Aduziu que a implantação de um centro com poderosa ênfase na cultura e nos valores judaicos, naquela parte do mundo, era mais importante do que a posse da terra. Argumentou que se o referido centro viesse a ser dotado de um grande conteúdo espiritual, tal condição fortaleceria o propósito do Sionismo e seria um ponto de referência para os judeus que não cogitassem integrar uma corrente imigratória para a Palestina Otomana. Em contraste com aqueles que tinham como foco principal a conquista de um território, Ahad Ha’am julgava que um renascimento cultural e educacional judaico é que seria a garantia da continuidade do Judaísmo.
Foi como correspondente de um jornal judaico de Odessa que Ahad Ha’am se credenciou para assistir às sessões do Primeiro Congresso Mundial Sionista na cidade da Basileia, Suíça. Os números do evento foram surpreendentes: 208 delegados, representando 17 países. Desse total, 69 haviam sido designados por entidades judaicas e 139 foram constituídos por convidados e jornalistas. A rigor, era reduzido o número de países, mas seus delegados correspondiam ao que havia de mais expressivo no sentido intelectual em suas comunidades, a par de empresários bem-sucedidos e essenciais para a viabilização das ideias apresentadas no decorrer do Congresso.
Ahad Ha’am deve ter ficado aturdido com a aprovação de Herzl pela quase unanimidade dos delegados, sobretudo por sua aclamação no encerramento dos trabalhos a ponto de alguém ter exclamado: “Temos um rei!” O pragmatismo de Theodor Herzl sensibilizava os anseios dos judeus bem mais do que os enunciados de Ha’am, posteriormente definidos por historiadores como Sionismo cultural.
De qualquer maneira, Ha’am decidiu avaliar o confronto entre a teoria e a prática da ideia sionista e fez duas viagens para a Palestina Otomana, antes ainda da realização do Primeiro Congresso Mundial Sionista. Sua conclusão, após duas jornadas, foi que a Palestina Otomana seria inviável para a implementação de um Estado judaico, tal como preconizado no livro de Pinsker.
Escreveu uma série de artigos nos quais, com alcance visionário, antecipou um conflito em potencial entre árabes e judeus, que acabou se concretizando numa extensão que, nos dias atuais, já alcança 140 anos.
Ahad Ha’am não previu, e nem tinha elementos para prever, que os árabes venderiam por vultosas quantias a maior parte de suas propriedades para o Fundo Nacional Judaico, de modo a acolher a Segunda Aliá, o influxo de pioneiros iniciado por volta do final da primeira década do século 20.
Ha’am também não previu que o progresso trazido pelos pioneiros, em vez de ser repudiado pelos árabes, teve um efeito contrário, atraindo milhares de imigrantes de países árabes vizinhos, principalmente do Egito, em busca de melhores condições de vida em face das crescentes oportunidades de trabalhos e de serviços em cidades de feição metropolitana, como Tel Aviv, fundada em 1909. Quanto às semeaduras existentes, estas eram rudimentares quando comparadas com as novas técnicas agrícolas trazidas pelos imigrantes judeus.
O escritor americano Hillel Halkin, radicado há mais de 50 anos em Israel, escreveu um instigante ensaio, ao qual recorro como fonte, em que analisa as trajetórias e os legados de Ahad Ha’am e de Theodor Herzl. Diz que apesar das divergências, ambos convergiram, com inusitada grandeza, para o triunfo do mesmo ideal sionista.
No seu entender, o Sionismo de Ha’am continha um princípio elitista porque apontava a Palestina Otomana como um território totalmente alheio aos possíveis destinos das massas judaicas. Os artigos que escreveu depois de suas visitas à Palestina sob domínio turco foram devastadores. Tornou a enfatizar que somente um idealismo dedicado ao renascimento nacional poderia atrair pessoas capazes de resistir às dificuldades da vida naquela terra. Do ponto de vista demográfico, assinalou que os judeus que lá viviam, estes poderiam ser uma base para futuros desenvolvimentos. No entanto, acentuou que encarava o cenário com inescapável pessimismo porque para onde tivesse olhado, encontrava comunidades sob má gestão, oportunidades desperdiçadas e estagnação. Criticou a iniciativa agrícola do barão Edmond de Rothschild por ter insistido na monocultura da uva. (Na verdade, este vinhedo deu origem a uma próspera indústria de vinhos hoje localizada em Rishon LeTsion).
Ha’am alertou que o poder dominante turco era contra o Sionismo e, portanto, imporia aos pioneiros taxações abusivas e entraves burocráticos destinados a impossibilitar a sequência de seus trabalhos. Focalizando o conjunto de empecilhos, afirmou que o empreendimento judaico na Palestina Otomana seria tão inconcebível quanto indesejável. Mas, a despeito de tantas restrições e entraves, ele não se considerava menos sionista e se fixava na necessidade da existência de uma nação judaica devido à sucessão de pogromsincentivados pelo Império Russo, na década de 1890.
Na concepção de Ahad Ha’am, se aquilo que qualificava como o “problema dos judeus” não pudesse ser aliviado pelo Sionismo, permaneceria o “problema do Judaísmo”. Isto não tinha a ver com o antissemitismo, mas com a assimilação, que identificava como a mais importante de todas as questões. Enfatizou que o final do século 19 indicava um caminho secular, razão pela qual a tradição religiosa judaica cada vez mais perdia o seu poder, sem nada que a substituísse. Por isso reconsiderou a possibilidade de um Estado Judeu na Palestina Otomana, onde os judeus poderiam criar um modelo de sociedade judaica cuja influência se irradiaria para a diáspora, dando-lhe um sentimento de orgulho, tendo o futuro se encarregado de confirmar sua previsão.
Embora alguns importantes pensadores judeus de meados da década de 1890 considerassem Ahad Ha’am um derrotista, seus artigos foram bem recebidos na Europa, porque contavam de suas viagens à Palestina Otomana. Sua influência perdurou até que, em 1896, avultou a figura de Theodor Herzl, autor do livro O Estado Judeu, escrito no ano anterior durante o primeiro julgamento de Dreyfus. Segundo os padrões da época, era mais uma brochura do que propriamente um livro, por seu reduzido número de páginas. O conteúdo tinha sido dividido em duas partes. Na primeira, Herzl pontificou que somente uma nação judaica poderia se impor como um potente obstáculo para conter o antissemitismo. A segunda parte consistia num meticuloso passo a passo para atingir esse objetivo. Na sua visão, seriam imprescindíveis acordos diplomáticos internacionais, sociedades anônimas bem capitalizadas, vastas compras de terras, redes coordenadas de trens e navios a vapor conduzindo emigrantes que ergueriam cidades modernas, em tempo recorde, para abrigar novos recém-chegados.
Halkin esclarece que O Estado Judeu foi quase desapercebido na Alemanha e, na Áustria, se limitou a uma mera curiosidade. Mesmo na Europa Oriental judaica, onde o Sionismo era um tema diário de discussões, diz Halkin que Herzl não apareceu nos céus dos judeus com um brilho repentino, semelhante ao de um cometa. Esse não foi o caso. Uma revisão da numerosa imprensa judaica daquele tempo sugere que quase não houve interesse na figura de Herzl até as semanas anteriores ao Congresso Mundial Sionista, programado para acontecer no final do verão de 1897.
Na verdade, mesmo com a aproximação da sessão de abertura do Congresso, no dia 28 de agosto, os sionistas da Europa Oriental, a maioria deles discípulos de Ahad Ha’am, permaneceram céticos com relação a Theodor Herzl, visto como pouco conhecedor dos fundamentos do Judaísmo.
Para os seguidores de Ahad Ha’am, todo o esquema de Herzl parecia um exagero utópico. Mas, apesar de todas as manifestações contrárias, o Congresso se realizou. Herzl, com toda a teatralidade que tinha aprendido nos palcos vienenses, organizou a conferência com grande talento, desde a enorme bandeira azul e branca colocada na entrada do recinto, até o fraque e as gravatas brancas que os delegados foram obrigados a usar, tudo foi calculado para ressaltar um tom de solene festividade. O discurso de abertura de Herzl foi recebido com aplausos estrondosos. Seguiu-se um discurso sobre a condição do Judaísmo mundial, proferido pelo célebre filósofo judeu-alemão Max Nordau, recém-convertido ao Sionismo. Tudo que acontecia naquele salão da Basileia era uma novidade, uma surpresa, um espanto, uma conquista com elementos concretos embora se circunscrevesse ao plano idealístico da abstração. Como escreveu um jornalista austríaco, “cada palavra atingiu o alvo como uma flecha”. Jamais, ao longo da diáspora, representantes do Povo Judeu haviam presenciado em conjunto um fenômeno sequer parecido.
O discurso de encerramento de Theodor Herzl foi comedido, no qual se esforçou para aplacar os delegados da Europa Oriental, que dele discordavam, algo de que já estava bem consciente. Entretanto, não recuou das suas próprias posições. Num gesto retórico, dirigido tanto aos seguidores de Ahad Ha’am como aos delegados religiosamente ortodoxos do Congresso, declarou que o Sionismo deve ser “um retorno ao Judaísmo mesmo antes de ser um retorno à terra judaica”. Esse apaziguamento não impediu que Ahad Ha’am, ao regressar a Odessa, poupasse Herzl de novas e severas críticas, a ponto de escrever que na Basileia havia se sentido “como um enlutado num casamento”.
Mas, a rigor, o Congresso na Basileia tinha evidenciado a preponderância do pragmatismo formulado a partir de um sonho impossível, mas com potencial para se tornar uma vigorosa realidade.
Theodor Herzl faleceu em Viena, no dia 3 de julho de 1904, com apenas 44 anos. Jamais, na história da humanidade, o líder de um povo alcançou tamanha dimensão com pouco mais de oito anos de atuação política.
Ahad Ha’am aproximou-se de Chaim Weizmann e foi seu assessor em todas as etapas políticas e diplomáticas que levaram à emissão da Declaração Balfour. Ha’am radicou-se em Tel Aviv, em 1920, e ali faleceu sete anos mais tarde, no dia 2 de janeiro.
Do embate ideológico entre Ahad Ha’am e Theodor Herzl é possível concluir que Ha’am preconizava um Estado Judeu e Herzl preconizava um Estado dos Judeus.
A atualidade revela que o Estado de Israel do século 21 reúne essas duas condições.
Zevi Ghivelder é escritor e jornalista.