Há vinte anos no poder e reeleito mais uma vez em maio passado, o presidente turco Recep Tayyip Erdogan desponta como um dos mais influentes personagens do Oriente Médio neste início de século 21, em trajetória marcada por reviravoltas diplomáticas e avanços do autoritarismo. Nas relações com Israel, por exemplo, já oscilou entre crises profundas e reaproximação, tendência dos últimos meses e para onde devem soprar os vindouros ventos políticos.
A imprevisibilidade de Erdogan mereceu menção em editorial recente do tradicional The Jerusalem Post, em meio a análises sobre a disputa pela presidência turca. “Respeitem Erdogan porque ele é o presidente de um país grande, altivo, forte e importante na região, mas ao mesmo tempo mantenham dúvidas, pois o Erdogan que se vê hoje pode não ser o Erdogan que terá de se enfrentar amanhã”.
Populista, mercurial e carismático, o Erdogan de 2023 sinaliza uma trajetória de mais pragmatismo na política externa, em particular nos primeiros momentos após sua reeleição. Uma grave crise econômica pressiona Ancara a abandonar projetos faraônicos de liderança regional, chamados de neo-otomanos, para privilegiar iniciativas voltadas a atrair investimentos e ampliar parcerias econômicas.
Quando chegou ao poder, em 2003, Erdogan enfrentou, no plano internacional, uma onda de ceticismo. Seu AKP (Partido da Justiça e do Desenvolvimento), com raízes islâmicas, ameaçava colocar em xeque a herança de Mustafá Kemal Ataturk, fundador da Turquia moderna, em 1923, e responsável por implementar a separação entre Estado e religião, num movimento inédito no mundo muçulmano. O kemalismo também apontava para alianças com países ocidentais como prioritárias para o país a se construir a partir das ruínas do Império Otomano. Mas o triunfo eleitoral do AKP levantou dúvidas sobre a manutenção dos caminhos trilhados desde os anos 1920.
Preocupado em se consolidar no poder e em amenizar os questionamentos sobre os rumos da Turquia, Erdogan, num primeiro momento, manteve a bússola pró-Ocidente. Defendeu a antiga reivindicação turca de adesão à União Europeia e conservou a aliança estratégica construída com Israel em campos como diplomacia, economia e até mesmo militar.
O calendário apontava então o começo do século 21, quando George W. Bush governava os Estados Unidos, e o cenário global era talhado pela unipolaridade. Ou seja, quando a hegemonia norte-americana vivia seu ápice, depois da desintegração soviética e antes da consolidação da decolagem chinesa.
Erdogan, porém, começou a redirecionar a política externa ao perceber mudanças dramáticas no cenário global, a partir da crise financeira internacional de 2008-9, cujas consequências redesenharam os contornos da história. Começou à época o chamado mundo multipolar, com fortalecimento dos países emergentes, como China e Índia, e a desidratação do poderio de Washington, embora os EUA se mantenham como a principal potência política, econômica e militar do planeta.
As trepidações do panorama internacional levaram Erdogan a rever o caráter pró-ocidental de sua política externa. Praticamente ao mesmo tempo, outro fator contribuiu para a alteração de rumos: a Primavera Árabe, iniciada em 2010, onda de manifestações responsável pela queda de diversos ditadores, como o egípcio Hosni Mubarak ou o tunisiano Ben Ali.
Erdogan interpretou as turbulências em regiões vizinhas como a abertura de uma janela de oportunidade para projetar influência turca, em particular no Oriente Médio. Começa então a implementação do projeto neo-otomano, nacionalista, autoritário e populista, montado para resgatar um sentimento nostálgico em relação aos séculos de poderio dos sultões.
A Turquia, portanto, embarcou em tentativas de reviver influência em áreas anteriormente próximas ou sob domínio otomano. Interveio na guerra civil da Líbia, invadiu território sírio, abriu uma base militar no Qatar, entre outras iniciativas.
A opção neo-otomana golpeou duramente as relações com Israel. Erdogan, na tentativa de ampliar apoio junto a setores da opinião pública árabe e avançar a influência de Ancara, passou a criticar duramente governos israelenses e se transformou num dos principais apoiadores do Hamas, o grupo terrorista palestino que domina a Faixa de Gaza desde 2007.
Em 2009, num dos primeiros sinais do distanciamento em relação a Israel, Erdogan hostilizou o então presidente Shimon Peres durante um painel no Fórum Econômico Mundial de Davos. O líder turco assumiu um tom agressivo e, de forma abrupta, abandonou o palco, para ser recebido como herói ao desembarcar na Turquia.
No ano seguinte, a crise bilateral se agravou. Uma flotilha partiu da Turquia em direção a Gaza, a fim de demonstrar apoio ao Hamas, e ignorou advertências de Israel para terminar a provocação. Comandos israelenses finalmente agiram para impedir a chegada do navio Mavi Marmara e, em consequência dos enfrentamentos, morreram 10 ativistas turcos.
Embora os laços diplomáticos não tenham sido totalmente rompidos, Turquia e Israel passaram a aprofundar o distanciamento. Erdogan assumia uma retórica mais agressiva e se aproximava de “polos anti-imperialistas”, como o chavismo, enquanto israelenses, no cenário do Mediterrâneo Oriental, privilegiavam laços com a Grécia e Chipre, rivais históricos de Ancara.
O líder turco, no plano doméstico, avançava sua agenda populista e autoritária, afastando-se também dos Estados Unidos e de países da Europa ocidental. Encontrava mais diálogo com Vladimir Putin, apesar das desavenças históricas oriundas dos tempos de rivalidades entre os vizinhos impérios otomano e russo.
A agenda neo-otomana de Erdogan, ao canalizar recursos para aventuras no plano externo e ao financiar projetos faraônicos em solo turco, desequilibrou o orçamento federal. Com as contas públicas em estado caótico, inflação, desvalorização da moeda e fuga de capitais passaram, sobretudo a partir de 2018, a castigar a economia da Turquia. Em seguida, veio a pandemia.
Erdogan se viu forçado a diminuir a dose de ideologia neo-otomana e a assumir abordagem mais pragmática em política externa, com intuito de atrair investimento e estimular comércio. Dentro de casa, recusava-se a aumentar juros, remédio amargo e tradicional para esfriar a economia e, consequentemente, mitigar a inflação.
Ao recalibrar a diplomacia na busca por financiamentos e investimentos, Ancara admitiu diluir ambições de liderança no universo médio-oriental e passou a cortejar monarquias árabes do golfo Pérsico, como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, além do Egito, que via com desconfiança as intenções neo-otomanas de Erdogan.
O novo capítulo da história erdoganista refez os laços com Israel. Em março do ano passado, o presidente Isaac Herzog desembarcou em Ancara, na primeira visita de alto escalão desde 2008. “Esse é um momento muito importante das relações entre nossos países, e é um grande privilégio para nós dois assentarmos os alicerces para o desenvolvimento de relações amistosas entre nossos países e nossos povos”, discursou então o israelense. Já o anfitrião classificou a visita como “um momento de virada” nas relações bilaterais.
De olho na recuperação econômica, a Turquia avalia a possibilidade de se transformar em rota da exportação de gás natural israelense para países europeus. Erdogan também leva em conta as possibilidades de expansão de investimentos e comércio intrarregionais a partir do cenário criado pelos Acordos de Abraão, assinados entre Israel e quatro países (Emirados Árabes Unidos, Bahrein, Marrocos e Sudão), com apoio tácito da Arábia Saudita.
Lentamente, os laços bilaterais passam a lembrar o momento dourado da década de 1990, antes da chegada de Erdogan ao poder. Por exemplo, em 2022, cerca de 800 mil turistas israelenses desembarcaram em solo turco. O comércio bilateral, no mesmo período, atingiu o recorde de US$ 8 bilhões.
Em fevereiro deste ano, um terremoto atingiu a Turquia e matou mais de 50 mil pessoas. Israel esteve entre os países a enviar uma missão de ajuda humanitária.
Após a vitória na eleição presidencial, Erdogan recebeu congratulações, por telefone, de Herzog e do primeiro-ministro Binyamin Netanyahu. Yair Lapid, líder oposicionista, já defendeu com intensidade a reaproximação com a Turquia, país que também avalia como ameaça à estabilidade regional e global as ambições nucleares iranianas.
Portanto, há praticamente um consenso entre as principais lideranças israelenses sobre a relevância da reconstrução de laços com um protagonista da cena médio-oriental como a Turquia. Espera-se, como alertou o The Jerusalem Post, que Erdogan, num mandato a terminar em 2028, não volte a redirecionar a bússola diplomática.
Jaime Spitzcovsky colaborador da Folha de S.Paulo, foi correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.