A pequena Safed ou Tzfat, em hebraico, é uma cidadezinha da Galileia Incrustada no pé de uma colina e cercada por montanhas.  Berço do misticismo judaico, foi um porto seguro onde se estabeleceram, no século 16, inúmeros conversos em fuga durante a Inquisição. Os anseios messiânicos, aliados à enorme vontade dos conversos de retornar ao Judaísmo, fazem parte desta heroica e desconhecida epopeia da História Judaica.

Tzfat é uma das quatro cidades mais sagradas no Judaísmo, juntamente com Jerusalém, Hebron e Tiberíades, e é um dos principais berços da mística judaica, a Cabalá. O maior cabalista de todos os tempos, Rabi Yitzhak Luria, o Ari HaKadosh, Ari, o Santo, lá se estabeleceu. A cidade foi o lar de outras grandes figuras da História Judaica, entre eles, Rabi Yossef Caro, o autor do Shulchan-Aruch (Código de Lei Judaica); Rabi Moshé Cordovero, professor do Ari e autor da obra cabalística Pardess Rimonim; e Rabi Shlomo Alkabetz, autor do Lechá-Dodi, hino litúrgico cantado no Shabat em todas as sinagogas do mundo.

Outro grande sábio de Tzfat foi o Rabi Yakov Birav - o rabino-chefe da comunidade. Rico e generoso, homem de grande sabedoria e conhecedor profundo do Zohar, o Livro do Esplendor, Rabi Birav quis restabelecer o Sanhedrin - a Suprema Corte Judaica - para acelerar a vinda do Mashiach. Encontrou-se uma resolução para reconvocar o Sanhedrin baseada numa legislação de Maimônides que pedia a convocação dos rabinos mais sábios, eruditos e íntegros. Um deles seria escolhido e autorizado a conceder Smichá1. Tudo isso foi organizado em Tzfat e implementado no ano de 1538.

EXÍLIO EM ERETZ ISRAEL

Em sua interpretação do Livro de Isaías (43:6), Rabi Isaac Abravanel escreve: “Foi no ano de 5252 (1492), quando o Espírito Divino agiu e os Reis da Espanha expulsaram 300 mil almas de seus Reinos, saindo pelo Ocidente rumo à Terra de Israel. Saíram não apenas os judeus, mas também os anussim2 que haviam abandonado a Torá migrando todos para lá, reunindo-se na Terra Santa”.

Entre 1492-1497 encerra-se, na Península Ibérica, o “Tempo dos Judeus”, uma época de florescimento político, social e cultural dos judeus ibéricos, dando início ao Tempo dos Conversos”, um período de perseguições inquisitoriais e sofrimento.

Cabe notar que, na Península Ibérica, o “Tempo dos Judeus” se estende aproximadamente do ano 711, quando da conquista muçulmana da Península, até 1492, ano em que os Reis Católicos expulsaram maciçamente a população judaica da Espanha, e o ano 1497, data do decreto de Dom Manuel I determinando a expulsão e a conversão forçada dos judeus que viviam em Portugal. O “Tempo dos Judeus” coincide com o tão decantado período na história da Península Ibérica de convivência relativamente pacífica entre as três religiões monoteístas.

Para sermos mais precisos, o Tempo dos Conversoscomeça quando os Reis Católicos estabeleceram a Inquisição na Península Ibérica (V. matéria à pág. 42) legitimando um período deterror e perseguições. Durante o “Tempos dos Conversos” milhares de judeus e conversos deixaram os territórios ibéricos em busca de paz e liberdade religiosa. Dentre os primeiros exilados estava o Rabi Isaac ben Judah Abravanel, o administrador e fiel conselheiro dos Reis Católicos.

Ao analisar as ondas migratórias de conversos para Eretz Israel, percebe-se que, durante 40 anos (1492-1532), não há nenhuma leva de imigração para a região. Num primeiro momento, os conversos constituíram uma grande diáspora hispano-portuguesa espalhada em países próximos à Espanha e Portugal e por todo o Mediterrâneo. Fundaram suas comunidades na Europa Ocidental, na França, Itália, Países Baixos, Holanda e Reino Unido; no Império Otomano, especialmente em Istambul e Salônica (hoje, Tessalônica), e em outras inúmeras cidades do norte da África, principalmente no Marrocos.

CONVERSOS EM ERETZ ISRAEL

Os documentos são lacônicos quanto à presença de conversos em Jerusalém, no século 16. O “Itinerário de Peregrinação a Terra Sancta” de Frei Pantaleão de Aveiro, um franciscano português que visitou a Terra Santa em 1565, comenta que “desde a conquista do Oriente Médio pelos turcos, há em Jerusalém um número de judeus pobres; e que os ‘portugueses são 30 indivíduos, um deles médico importante de Évora de nome Barbosa”. Em outro trecho da obra Pantaleão escreve que “nas proximidades do túmulo do Profeta Samuel (Nebi Shmuel) se estabeleceram judeus portugueses e castelhanos”. É muito possível que as expressões “portugueses” e “judeus portugueses sejam uma referência aos conversos de origem lusitana.

Com a conquista da Terra de Israel pelo Império Otomano, no início do século 16, a pequena Tiberíades surge como um sonhado porto seguro para conversos hispano-portugueses. Viajantes que chegaram à Terra Santa e visitaram o território arrendado aos conversos pelo sultão otomano descrevem Tiberíades como “um verdadeiro paraíso”.

O projeto colonizador de Tiberíades contou com o apoio do sultão Salim II e visava manter um território autônomo para os conversos. Os recursos para viabilizar esta importante obra filantrópica foram disponibilizados por Doña Gracia Mendes Nassi (La Señora) e seu sobrinho Dom Joseph Mendes Nassi. Essa família de banqueiros espanhóis escolhera, em 1492, o exílio à conversão, refugiando-se em Portugal, onde foram convertidos à força, em 1497. No entanto, a família Mendes nunca abandonou as Leis de Moisés. Documentos emitidos por cortes judaicas se referem aos irmãos Francisco e a Diogo Nassi como “Rabis Anussim”, responsáveis por conduzir as orações entre os conversos.

E era em prol destes que Doña Gracia e Dom Joseph trabalhavam, não medindo custos e nem perigos. De acordo com os dois, Tiberíades tinha o potencial de se tornar uma província judaica semiautônoma, onde os judeus poderiam estabelecer-se e viver em segurança.

CONVERSOS EM SAFED

O século 16 se caracterizou pela intensificação das perseguições inquisitoriais que ocorriam em terras cristãs. As fontes judaicas da época descrevem Safed como um importante refúgio de conversos. Um dos sábios da cidade dizia: “Os anussim …. chegam às nossas terras para voltar ao Judaísmo”.Lá, fundam comunidades autônomas com pessoas sedentas por debater questões de Halachá. Esta literatura aborda temas vinculados ao status dos conversos em suas congregações. Dentre as perguntas mais frequentes incluíam-se: São os conversos ainda parte de Israel? Que deverão fazer para reintegrar-se às novas comunidades? Estes eram alguns dos principais assuntos debatidos em Jerusalém, Tiberíades e Safed, como também nas comunidades da “diáspora hispano-portuguesa”e no Império Turco-otomano.

Dentre os temas que preocupavam os conversos podemos citar o status individual de cada um deles frente à sua congregação, direitos de herança, a questão de serem ou não aptos a preencher funções destinadas aos Cohanim (sacerdotes), podiam consumir e abençoar o vinho casher e, caso não pudessem, poderiam ser convocados pelo tribunal rabínico para prestar testemunho? Certa vez, o renomado cabalista Rabi Salomão Ha-Levi Alkabetz (1500-1576) redigiu uma oração sobre a Gueulá (Redenção), lembrando aqueles conversos portugueses que heroicamente fincaram raízes em Eretz Israel.

Assim escreve esse autor do “Lechá Dodi”: “Houve aqueles que foram forçados a se converter, sendo feridos amargamente em sua honra. Houve aqueles que foram forçados a se ajoelhar a outro D’us, morrendo queimados pela ‘Santificação do Nome de D’us’ (al Kidush Hashem) nos autos-da-fé; sacrificando a vida de filhos e filhas para não profanar Teu Nome.... Agora seus espíritos anseiam ascender ao Monte Sion, o Monte do Todo Poderoso... Eles se congregam diante de Ti e como leões chegam para inclinar-se frente a Ti nesta Terra Sagrada, deixando para trás bens, conforto, dinheiro e ouro, hoje distantes de Eretz Israel”. Através dessa oração é possível sentir o respeito e a admiração que os conversos chegados há pouco tinham por Safed e pela Terra de Israel.

Esses conversos voltavam abertamente ao Judaísmo, procurando redimir seus erros por intermédio de flagelos. Entendiam que suas transgressões (averot) precisavam ser punidas com um castigo físico. Esta visão dos anussim se origina numa antiga tradição judaica, que reza que para cada transgressão existe um castigo, ideia que já era presente no movimento martirológico judaico dos “Chassidei Ashkenaz”, vigentedurante as Cruzadas.

Outras fontes para o estudo dos conversos são os textos redigidos por dois viajantes cristãos. Um deles é o peregrino espanhol Juan Perera, que visitou Safed em 1552. Em sua vasta obra “Camino y peregrinación desde Roma a Jerusalém” (1619), registra a existência de judeus na cidade, basicamente espanhóis e portugueses, estes últimos foragidos da Inquisição.

O segundo peregrino é o já mencionado Frei Pantaleão de Aveiro. Este franciscano, que para alguns estudiosos teria origem conversa, oferece relatos curtos acerca da vida judaica nas diferentes cidades santas do Oriente Médio. Peregrino, mantinha diálogos com judeus portugueses, mas procurava esquivar-se das polêmicas e discussões teológicas com seus conterrâneos cristãos.

Frei Pantaleão de Aveiro foi informado que em Safed habitavam mais de 400 judeus, a maioria nascidos em Portugal. Mesmo que estes dados não sejam exatos, é importante enfatizar que a maioria dos judeus lusitanos que chegavam a Safed eram descendentes de judeus convertidos à força em Portugal, em 1497. Eles ensinavam a seus filhos a “Bíblia”3 em ladino. O rabino de Fez, Issaschar Ibn Sussan (1539-1572), que traduziu a “Bíblia” ao árabe, afirmava que “entre conversos há alguns sábios e cultos, versados nas interpretações bíblicas”.

A presença de conversos portugueses em Safed pode ser constatada nos arquivos de Istambul. Lá estão arquivadas listas de contribuintes tributados pelo governo turco-otomano, que registram a tributação da totalidade dos habitantes da Terra Santa desde o estabelecimento definitivo dos otomanos, em 1517. Nelas, os conversos são denominados de “portugueses”.

Os dados estatísticos dos contribuintes judeus de Safed estão distribuídos em três listas, sendo que cada uma elenca o nome do contribuinte ou a congregação tributada. Na primeira lista, de 1525-1526, constam 21 casas de famílias portuguesas. Numa segunda, de 1555-1556, contabilizam-se 143 casas de família lusas e, na terceira, dos anos 1567-1568, encontram-se 200 casas de família portuguesas. Mesmo havendo um possível erro na documentação, é evidente que, em quatro décadas, foi gigantesco o crescimento da população conversa da cidade. A comunidade dos “portugueses era superada numericamente apenas pelos judeus “castelhanos”, os anussim vindos da Espanha.

MOTIVAÇÕES MESSIÂNICAS

Vários são os motivos que levaram inúmeros conversos a escolher a Terra Santa como refúgio diante das perseguições dos tribunais da Inquisição e suas fogueiras. Mas, é provável que o fluxo de conversos a Eretz Israel, em geral, e a Safed, em particular, atendesse também a fortes anseios messiânicos.

A catástrofe vivida pelos judeus ibéricos, com o Edito de Expulsão da Espanha, em 1492, e o batismo forçado em Portugal, em 1497, influenciou-os decisivamente na escolha de um novo lar onde recomeçar. A expulsão de 1492 foi interpretada como o fim de uma era de prosperidade e criatividade para o Judaísmo espanhol. Havia nessa população judaica um profundo sentimento escatológico e messiânico. O Judaísmo na Península Ibérica chegava a seu fim e, portanto, a chegada a Safed era um alivio espiritual, pois lá poderiam voltar a observar abertamente seu Judaísmo.

O ano de 1492 retoma a ideia messiânica da qual não se separaram os judeus, em todos os tempos, entre eles os conversos. Esta eterna crença judaica inclui uma contagem regressiva (sfirat haketz) para a volta do Messias. Rabi Dom Itzhak Abravanel dedicou uma trilogia a essa ideia. Para Rabi Abravanel, a chegada do Messias redimirá todos os judeus desgarrados do rebanho de Israel. Entre eles, serão reunidos na cidade santa de Jerusalém os judeus assassinados pela Inquisição.

As expectativas messiânicas difundidas pelos conversos chegaram rapidamente à Terra de Israel, assim como às comunidades estabelecidas em Roma, Livorno, Ferrara, Ancona, Veneza, Amsterdã, Antuérpia, Londres, Paris, Marselha, Nantes, Bordeaux, Constantinopla e Esmirna. Esta efervescência messiânica jamais deixou de palpitar nos corações dos judeus e conversos ibéricos desde a fatídica Expulsão.

A cidade de Safed ficou famosa por ser um centro de expectativas e vivências messiânicas, pois segundo o Livro do Esplendor (Sefer HaZohar), o Messias se revelará na Galileia. O cabalista Rabi Abraham Ben Eliezer Ha-Levi (1540-1600) afirmou: Não sabia que toda semente de Redenção precisa florescer em Jerusalém, apenas sei que quando o Messias se apresentar será na Galileia; e será uma Redenção libertadora, tanto para os moradores da Terra de Israel como para aqueles que a visitam”.

VIDA COMUNITÁRIA EM SAFED

A primeira leva migratória de 21 exilados é talvez a do ano de 1525. Nos anos de 1530, 1540 e 1550 este número deve ter crescido exponencialmente como resultado do estabelecimento do Santo Ofício da Inquisição em Lisboa, em 1536.

Em relação à vida comunitária dos conversos de Safed, a documentação pouco informa. Qualquer referência à comunidade de portugueses (Kehilat Portugal), sempre deverá ser entendida como a “comunidade dos conversos portugueses”. Os portugueses mantinham financeiramente suas próprias instituições, entre elas a Sinagoga Portuguesae o Tribunal “Kahal Kadosh” português (K”K, da Comunidade Sagrada de portugueses). Em carta dos rabinos de Safed aos de Modena, os primeiros se referem ao “Kahal Kadosh” lusitano como uma entidade autônoma que atua junto à kehilá (comunidade) dos asquenazitas e dos provençais.

Uma importante instituição fundada pelos conversos de Safed foi a Associação de Retornados ao Judaísmo (Chevrat Baalei Teshuvá). Seu objetivo era redimir os pecados de seus membros através da flagelação (halka’á), a reclusão para introspecção e orações especiais. Num texto do Rabi Yaacov Birav (1474-1546), citando Rabi Shimon ben Tzemach Duran (1361-1444), aparece o termo “Baalei teshuvá” (retornados ao Judaísmo), em referência aos conversos.

Também o Rabi Ovadia de Bartenura (1445-1515) denomina os conversos “Baalei teshuvá”. Esta “Associação de Retornados” é lembrada em documentos sobre costumes de Safed e em outros textos de sábios. Assim, o grande Rabi Abraham Ha-Levi nos comenta que “os membros dessa Associação jejuam e rezam minchá chorando aos prantos e se autoflagelam, alguns o fazendo todos os dias, enquanto outros, duas ou até três vezes por semana. Eles acordam no meio da noite para estudar, vestem-se de preto e deitam-se no chão lamentando a destruição do Templo de Jerusalém”.

Rabi Moisés de Leiria oferece valiosa informação acerca da Associação de Retornados”.Ele ficou estupefato, ao ver que, “Erev Rosh Chodesh” (véspera do início do mês), os conversos se congregavam em suas sinagogas e ieshivot, passavam o dia rezando, jejuando e chorando pela destruição do Templo, por seus pecados e os de seus antepassados”. 

IDENTIDADE DOS CONVERSOS

As levas migratórias dos conversos que chegaram a Safed durante a segunda metade do século 16 compunham-se de judeus de origem espanhola, que, com a expulsão de 1492, foram obrigados a deixar o país ou se converter.

Entre os que abandonaram em 1492 a Espanha estavam 600 famílias abastadas que conseguiram permissão de se estabelecer em Portugal. Quase todos eles tinham sobrenomes hispânicos. Poucos adotaram sobrenomes portugueses, como os Sagres (nome de importante cidade lusa), cujos descendentes eram reconhecidos sábios dessa cidade cabalística nos séculos 16 e 17.

A família de Moisés de Leiria, mencionado anteriormente, vivia em Leiria desde o século 15 e tinha raízes nesta antiga vila portuguesa. Outro judeu de nome Yosef de Leiria é citado na Responsa do renomado sábio Rabi Yaacov Birav. Inclusive Rabi Moisés Cordovero (sábio natural de Córdoba) teve em sua genealogia alguns ancestrais lusos e não por acaso foi escolhido para servir na comunidade portuguesa de Safed.

O Tribunal de Safed recebeu pedidos de divisão de heranças, um deles era o espólio de David Oliveira, filho da renomada família Guedalya. Entre os conversos lisboetas que fugiram da cidade de Lisboa na perseguição de 1506 está Yehudá Guedalya, que tinha uma gráfica nessa cidade. Ao fugir para Salônica, também trabalhou na gráfica de Eliezer Toledano, abrindo mais tarde sua própria gráfica nessa mesma cidade. O pai de Yehudá era o “Mestre Pedro”, médico na corte portuguesa.

A CONVERSÃO FORÇADA

Definir o termo converso não é tarefa fácil. Estamos falando de judeus que abandonaram o Judaísmo à força, tendo muitos entre eles se tornado cripto-judeus, mantendo, no maior sigilo, as Leis e festas judaicas. A Inquisição e a população cristã-velha os acusava de “judaizar“.

Rabinos e cabalistas de Safed trazem detalhes relevantes sobre a “conversão forçada” desses novos cristãos. O tema os preocupava profundamente. Mesmo passadas duas a três gerações do “Édito de expulsão” de 1492, aqueles que escrevem sobre esta delicada questão o fazem com muita sensibilidade, narrando atos heroicos de “Kidush Hashem”. Perdão e compaixão são dois termos frequentes para descrever as provações enfrentadas pelos conversos, o que demonstra o enorme respeito e a admiração dos sábios de Safed por eles.

As flagelações e a reclusão ascética das quais falamos acima testemunham o grau de arrependimento por eles terem sido forçados e terem concordado em abandonar a fé de seus ancestrais. Reafirmam a persistência e devoção desses retornados às comunidades de Israel. Por isso, há historiadores que falam desses convertidos como almas que foram obrigadas a transitar por um mundo duplo, sendo considerados verdadeiras “almas em litígio”.

Com muita emoção, Rabi Salomão Ha-Levi Alkabetz registra: “O judeu que acredita com fé sincera e pura, está disposto a sofrer e entregar sua própria vida em Nome de D´us (al Kidush Hashem), jamais temerá morrer por Ele, sempre com o objetivo de não transgredir sequer o menor dos preceitos e mandamentos da Torá. E mesmo que a maldade o assole, seu coração ficará feliz em poder honrar o Criador”.

Rabi Moisés Alsheich Hakadosh (1508-1593) também descreve sob uma luz positiva a prática sincera de “Kidush Hashem” dos judeus conversos, que, uma vez convertidos, perseveraram na prática do judaísmo. O sábio de Safed faz uma diferença entre aqueles que rapidamente se entregaram à morte e aqueles que optaram por sofrer tormentos prolongados. Mas, afirma: “Todos eles são merecedores de louvores e devem ser considerados como excelentes exemplos de ‘Santificação do Nome de D´us’”.

Um outro cabalista de Safed foi o prodigioso Rabi Moisés Cordovero (1522-1570), o maior discípulo de Rabi Yosef Caro. Para Rabi Cordovero, os conversos que foram testados em sua fé e se converteram não devem ser julgados e castigados por suas ações, por não serem ações sinceras, vindas do fundo da alma. Na obra “Or Yakar” (Luz querida) escreve: “Os anussim carregarão por toda a vida essa mancha (haver deixado o Judaísmo); mas nunca deverão ser punidos. O pecador intencional é o pior; este, sim, deve ser punido por seu pecado, uma vez que pode conduzir ao pecado os demais. Já ao converso, não há como negar-lhe a santidade”.

Uma postura misericordiosa para com os anussim emerge também da obra “Reshit Chochmá” (Início da Sabedoria) do Rabi Eliyahu de Vidas (1518-1587). Em sua obra “Shaar Ha’ahavá” (O Portão do Amor), compara os conversos que retornaram à Providência Divina com a geração do Egito, pois ambos se libertaram não apenas da escravidão do corpo rumo à Redenção, mas também da escravidão espiritual que martirizava suas almas. Nos dois casos - conclui Rabi Eliyahu de Vidas - testemunhamos um amor incondicional ao D’us de Israel, à Torá e aos ensinamentos sagrados.

PALAVRAS FINAIS

No século 16, Safed foi cidade-refúgio de conversos. Eles abandonaram sua máscara cristã e retornaram abertamente ao Judaísmo, estabelecendo várias comunidades de portugueses e mantendo costumes do judaísmo sefaradi. O peso da conversão sempre esteve presente na vida destes seres humanos, que desejavam ser aceitos como judeus de qualquer forma e, para isso, até recorreram a flagelações, introspecção e jejuns. Não encontramos nos cabalistas de Safed uma postura única em relação aos conversos. A literatura cabalista traz opiniões diversas, demonstrando como a “questão dos conversos” preocupava a todos por igual. No entanto, fica evidente que a maioria deles mantém uma visão de compaixão, misericórdia, amor e aproximação com os conversos chegados à cidade.

Fica gravada eternamente a bela frase do cabalista Rabi Moisés Cordovero: “Os anussim carregarão eternamente sua pecha, o defeito moral da conversão, mas jamais deverão ser punidos por suas transgressões, pois suas ações foram impensadas, posturas falsas, nada sinceras, que não surgiam do fundo do coração”.

1Smichá - Palavra derivada de um termo hebraico que significa invocar ou estar autorizado. Refere-se à ordenação de um rabino no judaísmo, que passa oficialmente a possuir autoridade para dar conselhos ou julgamentos de acordo com a Lei judaica.

2Anusim ou anussim éotermo empregado na literatura rabínica para designar os judeus convertidos à força ao Islã ou ao Cristianismo, mas que continuaram clandestinamente guardando os ritos e costumes judaicos (criptojudeus). Para os judeus convertidos a força na Península Ibérica costuma-se usar, na literatura não rabínica, termos como “conversos”, “cristãos-novos” ou o pejorativo utilizado pelos cristãos-velhos espanhóis, “marranos”, que significa porcos.

3Os conversos denominavam os “Cinco Livros de Moisés” de Brívia ou Bíblia. Na Península Ibérica os conversos não podiam usar abertamente nenhuma terminologia judaica.

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Prof. Reuven Faingoldé historiador e educador; PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. é responsável pelos projetos educacionais do “Memorial da Imigração Judaica e do Holocausto” de São Paulo.