A importante história dos judeus de Thessaloniki, até o extermínio praticamente total da comunidade judaica durante o Holocausto, é pouco conhecida em nosso meio, e merece ser contada mais uma vez.
Quem visita hoje a jovem e vibrante cidade de Thessaloniki, centro cultural da Grécia, não se dá conta da longa história judaica da cidade. Por vários séculos, Thessaloniki foi a cidade europeia com maior concentração de judeus entre a sua população – em vários censos antigos, a cidade contava com mais de 50% dos seus habitantes como sendo judeus, fato jamais igualado no restante da Europa.
Thessaloniki, também conhecida como Tessalônica ou Salônica, foi fundada em 315 E.C. por Cassandro da Macedônia e, por sua posição estratégica como porto do Mar Egeu, logo se tornou uma cidade de vital importância para a região. A cidade cresceu tanto em importância comercial que rivalizava com Atenas e, mais tarde, com Constantinopla, como centro econômico e cultural da região, tida inclusive como a segunda capital do Império Otomano.
Não se tem certeza sobre a época em que os primeiros judeus se estabeleceram na cidade. Sabe-se, entretanto, que o apóstolo Paulo chegou a Thessaloniki no ano 57, tendo ido pregar em três sinagogas, na tentativa de convertê-los à nova religião. Talvez uma destas sinagogas tenha sido transformada na primeira igreja católica da Grécia, mas este fato é disputado por vários autores. Benjamin de Tudela, o grande viajante judeu do século 12, cujas aventuras o levaram da Espanha até a região do Iraque e do Irã modernos, menciona em seu Sefer haMassaot (“Livro das Viagens”) uma comunidade judaica de cerca de 500 pessoas em Thessaloniki, no ano de 1170. Tudela dá grande ênfase ao fato de que judeus e muçulmanos conviviam em grande cordialidade e respeito em toda a região.
Com o passar dos séculos esta pequena comunidade foi aumentando às custas de imigrações de judeus ashquenazis e italianos. Com a conquista de Thessaloniki em 1430 pelos turcos e a instalação do Império Otomano a partir de 1453, os judeus de Thessaloniki foram todos removidos para a capital Constantinopla pelo próprio califa. O censo de 1478 não registra nenhum judeu na cidade.
A situação viria a mudar em 31 de março de 1492, com a assinatura, por Fernando II e Isabela I de Aragão, do Decreto de Alhambra, que determinava a expulsão dos judeus de todos os seus domínios. Muitos judeus da Espanha foram então a Thessaloniki, às vezes com passagem temporária dessas famílias por Portugal. Já no próprio ano de 1492 começaram a chegar os primeiros judeus de Majorca, seguidos de outras levas vindas de Sevilha, Aragão e outras cidades espanholas. Poucos anos depois seria a vez dos judeus portugueses, devido às perseguições aos “marranos” ou judeus conversos. Tal leva migratória fez com que a comunidade judaica constituísse, em 1519, 56% da população local. Em 1520 foram contados 20.000 judeus na cidade. A entrada em Thessaloniki, bem como em outras cidades do Império Otomano – notadamente Constantinopla1 e Smirna – era bem-vinda pelo Império Otomano, tendo os judeus, conhecidos na região como dhimmis (não-muçulmanos com proteção legal) recebido proteção oficial do Califa. Além da grande imigração da Península Ibérica, Thessaloniki passou a receber, com seu novo status de centro judaico, judeus vindos da Áustria, da Hungria e da Bulgária. Em 1613, os judeus constituíam 68% dos habitantes da cidade!
Devido a essa imigração de vários países, a comunidade judaica se dividiu em várias al’jamas (congregações, em espanhol arcaico), cada qual com seu rito e tradições ligeiramente diferentes. Essas al’jamas orbitavam sempre em torno de uma sinagoga, geralmente com o nome da cidade de origem daquela mini-comunidade. Assim, as sinagogas eram conhecidas como Lisboa Iashan (Velha Lisboa), Katalan Iashan (Velha Catalunha), Katalan Hadash (Nova Catalunha), Sicilia, Kastilla, Aragon, e assim por diante. Para coordenar tamanho número de sinagogas foi criado um órgão governamental oficial, Talmud Torá Hagadol, composto por sete membros eleitos por mandatos de um ano.
A comunidade esmerou-se, também, na educação de seus jovens. As ieshivot de Thessaloniki estavam entre as melhores da Europa: além de educação religiosa formal, os jovens recebiam educação secular completa, incluindo árabe e latim, medicina, astronomia e ciências naturais. A tanto chegou a fama das ieshivot da cidade que elas passaram a ser frequentadas por jovens vindos de vários pontos da Europa e de todo o Império Otomano. Provavelmente nenhum outro centro judaico da época apresentava tanta organização e prestígio quanto Thessaloniki.
A cidade tornou-se um importante centro de estudos judaicos, com uma enorme contribuição ao cancioneiro ladino e à própria liturgia judaica. O próprio Rav Yosef Caro, autor do Shulchan Aruch, veio de Toledo e viveu em Thessaloniki entre 1532 e 1534, onde foi Rosh ha-Ieshivá, antes de emigrar para Sfat, em Israel. O Rav Shlomo Alkabez, autor da famosa reza que recebe o Shabat, Lechá Dodí, nasceu e cresceu em Thessaloniki, tendo emigrado para Israel após seu casamento.
Esta pujança levou os judeus a dominar a vida econômica da região. Atuavam em todos os níveis da sociedade, desde artesãos refinados até grandes mercadores que controlavam o porto – que, inclusive, não funcionava no Shabat. No entanto, a atividade que mais caracterizou a comunidade judaica da cidade era a confecção em lã, de altíssima qualidade, e exportada para todo o Império Otomano: roupas, cobertores, tapetes e carpetes, eram supridos regularmente ao califado, em Constantinopla, e distribuídos por todo o Império.
Mas após a grande efervescência da construção da nova grande comunidade judaica, nos séculos 16 e 17, começa a declinar a atividade intelectual e religiosa da cidade. Uma ideia que corria a comunidade, de tempos em tempos, era a de que estava se aproximando a Era da Redenção, com a chegada do Messias, que coincidiria com o fim do mundo.
Um episódio bem conhecido foi a chegada na comunidade de um jovem rabino, enérgico e com o poder da palavra, no ano de 1651.
Seu nome era Shabetai Zvi e ele havia sido expulso recentemente de Smirna, devido à afirmação de ser o Messias e de que o fim do mundo se aproximava. Em Thessaloniki, Shabetai conseguiu seguidores que acreditavam piamente em suas afirmações – principalmente entre os congregados da Sinagoga Shalom. Certa noite, no jantar no pátio da sinagoga, Shabetai afirmou, repentinamente, que ele era o Messias, filho do Rei David, e que todos deveriam segui-lo. O rabinato acabou por expulsá-lo da cidade, mas ele continuou a pregar nos arredores de Thessaloniki. A desordem gerada na sociedade foi tanta que o sultão ordenou sua prisão imediata. Na prisão Shabetai Zvi acabou por se converter ao Islamismo, o que resultou em uma série de conversões entre os judeus que ainda o seguiam.
No ano de 1686, trezentas famílias judaicas muito ricas converteram-se simultaneamente ao Islamismo, mas praticaram uma religião isolada, nunca absorvida pela religião islâmica praticada pelos turcos da cidade. Esse grupo (conhecidos como Dönme – renegados), isolado dentro das duas religiões, acabou transformando-se em importante fonte intelectual das ideias modernistas que levaram à revolução que criou a República Turca moderna – a revolução dos Jovens Turcos, em 1908.
Em 1912, após a 1ª Guerra dos Bálcãs, Thessaloniki passou às mãos da Grécia. Muitos membros da comunidade judaica, acostumados a pertencer aos turcos do Império Otomano, não receberam bem a notícia. A anexação à Grécia, entretanto, acabou sendo bastante favorável à comunidade judaica: houve acesso imediato a mercados europeus até então inacessíveis, houve licença oficial para os judeus trabalharem no domingo ao invés de no Shabat, e houve ainda um apoio importante à causa sionista.
Em busca de apoio político, a cidade foi visitada por David Ben-Gurion, Zeev Jabotinsky e Yitzhak Ben-Zvi, o que demonstra a importância da comunidade de Thessaloniki para os líderes sionistas. Um fato pouco conhecido é que o próprio Ben-Gurion morou em Thessaloniki a partir de 1911. Aparentemente, este grande líder sionista, saído da sociedade extremamente antissemita de Plonsk, era fascinado pela possibilidade de judeus terem uma vida de liberdade completa no Império Otomano, tendo se alistado voluntariamente no exército otomano, no final da 1ª Guerra, com a finalidade de lutar contra os ingleses na Palestina. Ben-Gurion trabalhou como jornalista em Thessaloniki, aprendeu a língua turca de maneira fluente e cursou a Faculdade de Direito em Istambul a partir de 1912. A ligação da comunidade com o jovem Estado de Israel era muito presente, e muitas famílias de Thessaloniki para lá emigraram já após a 1ª Guerra Mundial.
As condições econômicas desfavoráveis no período entre guerras fizeram com que uma parte da comunidade emigrasse. Uma porção importante foi para Paris e para outros países europeus como Suíça, Espanha e Inglaterra; uma parte para a América do Sul e muitos para a Palestina. O avô materno do presidente francês Nicolas Sarkozy era Aaron Mallah, um judeu de Thessaloniki que foi um dos maiores cirurgiões urológicos de Paris. Outros judeus conhecidos saíram de Thessaloniki: o regente Maurice Abravanel, de enorme sucesso nos Estados Unidos; a família Recanati, fundadores do Israel Discount Bank e grandes filantropos israelenses; Isaac Carasso, que saiu de Thessaloniki para Barcelona, onde fundou a companhia Danone, depois adquirida pela Nestlé; Mordechai Mano, pioneiro da indústria marítima de Israel, além de outros.
Com este movimento migratório, no início da 2ª Guerra a comunidade reduzira-se a cerca de 54.000 membros. A Macedônia, incluindo Thessaloniki, foi invadida por tropas alemãs em abril de 1941. De início, foi assegurado aos judeus que as leis de Nuremberg não seriam aplicadas a eles, o que deu à comunidade uma falsa sensação de segurança. Em julho de 1942, entretanto, todos os jovens judeus entre 18 e 45 anos foram presos pelos alemães e submetidos a trabalhos forçados de construção de estradas, extremamente extenuantes, que causaram grande quantidade de mortos. Finalmente, em fevereiro de 1943 foram instituídas as leis de Nuremberg, restringindo fortemente a movimentação dos judeus e obrigando-os ao uso de braçadeiras amarelas. No fim do mês os judeus já estavam enclausurados em três pequenos guetos, sendo daí transportados para os campos de extermínio de Auschwitz-Birkenau e Bergen-Belsen. Apenas cerca de 3.000 judeus conseguiram escapar da cidade após a invasão alemã. Dos 54.000 deportados para os campos de extermínio mais de 90% morreram, fazendo de Thessaloniki uma das comunidades mais destroçadas pelo nazismo. Sem dúvida, a maior comunidade sefaradi a ser varrida do mapa pela Alemanha Nazista.
Quem visita hoje a Thessaloniki moderna, alegre, jovem e pujante, encontra poucos vestígios da antiga comunidade judaica: o Museu Judaico de Thessaloniki, o Cemitério Judaico (o mais antigo cemitério judaico da região mediterrânea) e uma única sinagoga de antes da 2ª Guerra, a sinagoga Martirioton. É o que restou desta que foi, durante muitos séculos, uma das mais importantes comunidades judaicas da Europa.
1Até 330 E.C. a cidade era conhecida por Bizâncio. Em 1453 tem seu nome mudado para Constantinopla – denominação bastante difundida no Ocidente. Durante o período otomano, os turcos a conheciam por Istambul, mas a cidade continuou conhecida como Constantinopla, especialmente pelos europeus, até o nome Istambul ser oficialmente adotado pela República turca, em 28 de março de 1930.
Sergio D. Simon é médico oncologista e presidente do Museu Judaico de S. Paulo.