Morreu, aos 94 anos, em 1º de outubro deste ano de 2018, o cantor e compositor francês Charles Aznavour, um dos mais populares artistas de todos os tempos. Era, também, um dos mais declarados amigos dos judeus e de Israel, na França.
Chamado de o “Frank Sinatra da França”, Aznavour era uma figura grandiosa na música francesa. Encantou gerações com sua voz magnífica e sensível e as letras poéticas de suas músicas. Quando estava em seu auge, soltando sua nostálgica voz de tenor, arrebatava corações e inspirava sentimentos acalentadores até mesmo entre os frios parisienses.
Aznavour esteve muitas vezes em turnê no Brasil, sendo sempre calorosamente recebido pelo público. Sua última visita ao País foi em 2017, a convite do KKL, Keren Kayemet Le-Israel. O valor arrecadado foi destinado à revitalização das florestas em Israel.
Desde os nove anos de idade, ele começou a se envolver no meio artístico, primeiro como ator, depois como cantor e, por fim, compositor. Sua grande estreia seria logo após a 2ª Guerra Mundial, quando abriu o show da grande Edith Piaf, então uma estrela em ascensão. Em 1946, ela o contratou como empresário e compositor para acompanhá-la em uma turnê pelos Estados Unidos. A partir de então, sua carreira estava lançada: vendeu mais de 100 milhões de discos em cerca de 80 países e escreveu mais de 1.000 canções.
Mas Aznavour não era apenas um artista, engajou-se também em diversas causas filantrópicas e políticas. Permaneceu, a vida toda, fiel à sua herança armênia, tendo sido uma das vozes mais conhecidas nessa diáspora, entre os defensores de sua causa. Foi incansável militante em prol do reconhecimento, como genocídio, do assassinato de 1,5 milhão de armênios pelos turcos otomanos durante a 1ª Guerra Mundial. Em 2009, a Armênia o nomeou seu embaixador na Suíça, onde o cantor residiu nos últimos anos. Foi, também, embaixador da UNESCO e delegado permanente da Armênia, em 1995.
A vida e trajetória artística de Aznavour foram narradas em três livros autobiográficos. Mas, nesses livros, pouco ou quase nada se mencionou sobre o fato de sua família ter escondido e salvo judeus e armênios durante a ocupação nazista, na França.
Até então, Aznavour nunca se prolongara sobre o assunto por “não achar que o que sua família tinha feito fosse tão especial”. Mas o professor Yair Auron, historiador e pesquisador israelense especializado no Holocausto, autor do livro Matzilim Tzadikim Ve’Lohamim” (Salvadores e Combatentes Justos, em tradução livre), conseguiu convencê-lo da importância de contar sua história. O Prof. Auron o entrevistou longamente, bem como à sua irmã, Aida Aznavour-Garvarentz, dizendo-lhe que também entrevistaria parentes das pessoas salvas por seus pais, em sua pesquisa sobre a Shoá. Os atos de bravura dos pais de Aznavour constam do livro acima mencionado, lançado em 2016.Originalmente escrito em hebraico, será traduzido para francês e armênio. “Tenho muito orgulho da história da minha família e de seu ato, nobre e humanitário, de salvar pessoas”, afirmou Aznavour por ocasião do lançamento do livro. “Nada me faz mais feliz do que pensar que meus queridos pais salvaram a vida de tantos.”
Sua vida
Charles nasceu em Paris, em 22 de maio de 1924, com o nome de Shahnour Varinag Aznavourian, em uma família de refugiados cristãos armênios. Quando adotou o nome artístico de Aznavour, apenas cortou o sufixo ‘ian’ de seu sobrenome.
Seu pai, Mischa Aznavourian, nasceu na Geórgia, país da antiga URSS, em 1895, perdendo toda a sua família no genocídio armênio perpetrado pelos turcos otomanos, em 1915. Mischa foi o único sobrevivente. Sua mãe, Knar Baghdasaryan, nasceu em Esmirna, em 1904. Apenas ela e sua avó sobreviveram ao genocídio.
Os pais de Aznavour fugiram dos turcos em um navio italiano que os levou até Tessalônica, na Grécia, onde, em 1923, nasceu sua irmã, Aida. Em seguida foram para a França. Charles nasceu logo após a chegada da família à Paris. Seus pais estavam na cidade a espera do visto para os Estados Unidos – que nunca lhes foi concedido.
Os Aznavourian decidem, então, recomeçar a vida na Cidade das Luzes, estabelecendo-se no bairro Les Marais, predominantemente judaico, mas que abrigava imigrantes de várias origens. Mischa era cantor de ópera e Knar, atriz. Para complementar os ganhos do pai como cantor, o casal manteve, por algum tempo, um restaurante armênio. Ao descrever sua relação com os judeus do Marais, Aznavour afirmou: “Crescemos juntos – jovens judeus e armênios, no distrito de Les Marais.... A convivência era tanta que meu pai até falava iídiche melhor do que muitos deles. Eu mesmo sabia algumas palavras”.
Disse, ainda, em entrevista ao jornal The New York Times:“Todos os meus amigos de infância eram judeus. Por isso acabei por adquirir os mesmos gestos, o jeito de falar e de contar piadas. Durante a ocupação alemã, fui preso várias vezes por me confundirem com os judeus. Uma vez, fui levado à central de comando nazista e mostrei meu certificado de batismo. Mas os alemães não acreditavam em mim e até abaixaram minhas calças... Eu costumava brincar e dizer aos amigos que eu era o único ‘goi ashkenazi’ da França”.
A 2ª Guerra na França
Durante a 2a Guerra, Charles, com 16, e a irmã Aida com 17, viviam com seus pais no pequeno apartamento de três quartos localizado no número 22 da Rue de Navarin, no 9e arrondissement de Paris.
A principal pergunta do Prof. Yair Auron, durante as longas horas em que entrevistou Charles e a irmã, sobre a vida da família durante a ocupação alemã, foi o que teria levado seus pais a esconder judeus em casa, apesar de saber o risco que corriam. Tivessem sido descobertos pelos nazistas, teriam sido fuzilados. Infelizmente, foram poucos os franceses ou cidadãos de outros países que ajudaram os judeus. Aida respondeu: “Vivíamos muito próximo. Logo compreendemos que os judeus seriam vítimas da brutalidade alemã. Sentíamos tristeza e pena deles. Tendo escapado da perseguição na Armênia, conhecíamos muito bem o genocídio...”.
Charles acrescentou : “Temos tanto em comum, nós armênios e, vocês, judeus, seja nos infortúnios, na felicidade, no trabalho, na música e nas artes, e na facilidade de aprender diferentes idiomas e de nos tornarmos importantes nos países que nos receberam... Crescemos juntos no bairro do Marais. Tínhamos, praticamente, uma vida em comum. Portanto, esconder judeus em nossa casa durante a 2ª Guerra, para nós era muito natural: eles eram nossos vizinhos e amigos. Estávamos prontos para protegê-los, como eles a nós. Tínhamos que tentar ajudá-los, assim como era natural que tentássemos ajudar os armênios que desertavam do exército alemão”.
Ele lembra ainda que o box de seu pai no mercado municipal ficava próximo aos de alguns judeus. “E os vendedores armênios, entre eles o meu pai, cuidaram dos negócios desses judeus após terem sido presos na trágica deportação em massa dos judeus de Paris, em julho de 1942.”
O lar dos Aznavourian, o pequeno apartamento da Rue de Navarin, tornou-se um esconderijo seguro não apenas para judeus como para desertores armênios, para comunistas e para membros da Resistência. A primeira pessoa que se escondeu com os Aznavourian foi um judeu romeno que fugira da Alemanha após ser condenado à morte por subversão. Chegara à Paris disfarçando-se de soldado alemão. Aida lembra que seus pais disseram a esse homem que “ele estava em casa, que se sentisse como um velho amigo que tinha que ficar um tempo conosco. Durante alguns dias, até dormiu na cama com o Charles”.
Certo dia, uma conhecida da família pediu-lhes que escondessem seu marido, Simon, judeu, que havia sido detido junto com outros judeus parisienses e enviado ao campo de Drancy, mas conseguira escapar. Esse campo era para onde os judeus franceses eram enviados antes de serem despachados pelos nazistas para o “Leste”, e para as câmaras de gás. Os Aznavourian aceitaram escondê-lo e, em seguida, um terceiro judeu passou a viver em seu pequeno apartamento.
A família também deu guarida a soldados armênios alistados à força no exército alemão e que preferiram desertar do que servir ao regime nazista. Charles e sua irmã eram encarregados de queimar os uniformes nazistas deles e se livrar das cinzas, bem longe de casa.
Seus pais tinham vários amigos armênios na cidade, entre os quais um casal, Mélinée e Missak Manouchian. Missak era um dos chefes da Resistência Francesa, mais especificamente do grupo conhecido como “L’Affiche Rouge” (O Cartaz Vermelho), o primeiro a executar ações da resistência armada contra os nazistas. Quando a Gestapo capturou Missak, os Aznavourian esconderam Mélinée durante vários meses, já que seus outros amigos se haviam recusado a abrigá-la.
Numa ocasião, eram 11 pessoas escondidas no pequeno apartamento no Marais. A família os ajudava a obter documentos de identidade falsos com a Resistência. Ainda que seus pais não pertencessem oficialmente à Resistência, eles colaboravam muito com a atividade underground. Sua mãe, por exemplo, ajudava o grupo que transportava armamento escondido em um carrinho de bebê.
A relação com Israel
Charles Aznavour sempre foi próximo de Israel. Apresentou-se no país pela primeira vez em 1948, logo após a criação do Estado Judeu. Desde então, lá esteve várias vezes, encantando o público israelense com sua voz inigualável e suas canções românticas, em vários idiomas.Em 2011, recebeu o Prêmio Scopus, outorgado pela Associação dos Amigos da Universidade Hebraica de Jerusalém por sua contribuição cultural.
Em 2013, antes de um show em Israel, encontrou-se com o então presidente Shimon Peres, a quem chamava de “meu bom amigo”. Um dos temas do encontro foi a paz. Ele fez outros shows no país, no ano seguinte e em 2017. Naquele mesmo ano, a Fundação Internacional Raoul Wallenberg concedeu à sua irmã e a ele a Medalha Raoul Wallenberg em reconhecimento pelos atos de sua família na salvação de judeus, durante a 2ª Guerra Mundial.
Apesar da sede da instituição ser em Nova York, o artista e sua irmã preferiram receber o prêmio em Jerusalém, que lhe foi entregue pelo presidente Reuven Rivlin. Este falou de seu amor pelas músicas de Aznavour, mencionando que a favorita era “La Bohéme”.
Há pouco tempo, Charles anunciou que faria uma turnê global em 2018, em comemoração ao seu 95o aniversário, e se apresentaria em Tel Aviv em junho de 2019 – o que infelizmente não se realizou. Entre esses planos também estava incluído o Brasil, no início de 2019.
Havia um ponto de atrito entre o artista e Israel: o fato do governo israelense não reconhecer, por pressão e ameaças turcas, o massacre dos armênios como sendo um genocídio. “Conhecemos a mesma dor e o mesmo sofrimento. Sem a aniquilação dos armênios entre 1915 e 1918, a dos judeus, durante o Holocausto, não teria sido possível, pois os alemães aprenderam com os que os antecederam... Às vésperas da invasão da Polônia, em conversa com seus comandantes que estavam preocupados com o uso de violência excessiva na operação, Hitler teria feito a seguinte declaração: “Alguém, por acaso, ainda fala sobre a aniquilação dos armênios?”.
Em seu livro, Matzilim Tzadikim Ve’Lohamim, o Prof. Yair Auron relata que os oficiais alemães envolvidos no comando das forças armadas durante a 1ª Guerra Mundial, e que assinaram as ordens em relação aos armênios, posteriormente serviram no alto escalão da liderança nazista e participaram na organização do processo para aniquilação dos judeus.
Uma vida de sucessos
A vida de Charles Aznavour foi longa e produtiva. Tinha uma família grande, tendo se casado três vezes, e deixou seis filhos e muitos netos. Artisticamente sua vida foi um sucesso, como dissemos acima: vendeu mais de 100 milhões de discos, escreveu mais de 1.000 canções, tendo lançado cerca de 100 álbuns solo, além de outros números em dueto com nomes consagrados como Plácido Domingo, Elton John, Liza Minnelli, Frank Sinatra e Sting. Muitas de suas canções de sucesso, entre as quais, “La Bohéme,” “Hier encore” e “She” tornaram-se hits internacionais nas vozes consagradas de Ray Charles, Sammy Davis Jr., Liza Minnelli e Elvis Costello, entre outros. Cantando em sete línguas, estrelou mais de 60 filmes, sendo conhecido principalmente por suas lindas canções de amor.
Mesmo em sua vida artística, a conexão de Aznavour com nosso povo sempre foi forte e em inúmeras ocasiões ele era identificado como judeu. Apareceu em vários filmes franceses vivendo personagens de origem judaica. Atuou no vencedor do Oscar, “The Tin Drum”, na pele de um gentil vendedor de brinquedos judeu. Sua versão da tradicional canção “Yidishe Mame” é um de seus imortais sucessos. Lançada em 2011, sua canção “J’ai Connu”, conta a realidade dos campos de concentração nazistas sob a ótica de um prisioneiro judeu. Diz a canção:
“Conheci as correntes
Conheci as chagas
Conheci o ódio, a sede e a fome
Conheci o medo, de um dia para o outro”...
BIBLIOGRAFIA
Artigo de Alan Riding Aznavour,
“The Last Chanteur”, publicado em 18 de outubro de 1998, The New York Times
Artigo de Dr. Yvette Alt Miller, “Charles Aznavour and His Family Saved Jews during the Holocaust”, publicado em 5 de novembro de 2017, www.aish.com
Artigo de Amy Spir, French Singer Charles Aznavour Dies at the Age of 94, publicado em 1 de outubro de 2018 , The Jerusalém Post
Artigo de Andy Levy-Ajzenkoft, Charles Aznavour Always Felt Connected to the Jewish Community, publicado em 1 de outubro de 2018 ,The Canadian Jewish News
Artigo de Fiachra Gibbons, “Legendary French singer Charles Aznavour dies aged 94”, publicado em 1 de outubro de 2018, The Times em Israel