“Quando o reinado perverso da Grécia se levantou contra Teu povo Israel para fazê-los esquecer Tua Torá e forçá-los a transgredir os decretos de Tua vontade; e Tu, em Tua abundante misericórdia, Te ergueste por eles na hora de tribulação, Tu lutaste seu combate, Tu julgaste sua causa, Tu vingaste sua vingança, Tu entregaste os fortes nas mãos dos fracos...” (Trecho da benção de “Al Hanissim” recitada em Chanucá)
A festa de Chanucá celebra dois milagres ocorridos durante o 2º século antes da Era Comum. O primeiro deles, a vitória de um exército pequeno de judeus, em inferioridade numérica e de munição, conhecidos como os Macabeus, sobre o exército sírio-grego – a superpotência à época – que ocupava a Terra de Israel. A revolta dos Macabeus foi uma resposta à tirania sírio-grega, a seus decretos malévolos e à tentativa de forçar o Povo Judeu a abandonar o judaísmo.
O segundo milagre: o acendimento da Menorá com óleo de oliva era um importante componente do serviço diário no Templo Sagrado de Jerusalém. Quando os Macabeus o libertaram das mãos dos sírios-gregos, eles se depararam com apenas um pequeno jarro de óleo de oliva ritualmente puro, não profanado pelos opressores. O jarro continha óleo suficiente para apenas um dia e levaria oito dias para se produzir novo óleo de oliva ritualmente puro. Os judeus acenderam o jarro e testemunharam um milagre: o suprimento que daria para um só dia ardeu durante oito dias – o tempo suficiente para que se produzisse óleo de oliva novo, ritualmente puro.
Há mais de dois milênios o Povo Judeu celebra esses dois milagres de Chanucá. O mandamento básico dessa festividade de oito dias é o acender da Chanuquiá – a Menorá de oito braços – com óleo de oliva ou velas, em recordação ao milagre do óleo que ardeu durante oito dias. É importante observar, contudo, que a bênção recitada antes do acendimento da Chanuquiá, bem como as passagens adicionais recitadas durante os oito dias de Chanucá na Amidá (Shemonê Esrê) e no Bircat Hamazón (Bênção após as refeições), enfatizam o triunfo militar dos judeus sobre seus oponentes. A razão para tal é que a vitória militar dos Macabeus foi um milagre muito mais significativo do que o fenômeno sobrenatural do óleo que durou oito dias em vez de um.Na verdade, não fosse a vitória militar dos judeus, o milagre do azeite teria sido uma ocorrência sobrenatural, mas despida de grande importância, pois os judeus poderiam ter acendido a Menorá com óleo de oliva impuro, de acordo ao ritual. O milagre do azeite deu-lhes tempo suficiente para produzir azeite ritualmente puro. Assim, puderam dedicar novamente o Templo Sagrado e voltar a oficiar o serviço da Menorá sem ter que recorrer a práticas não ideais do uso de azeite impuro. Isso era, obviamente, uma demonstração de favorecimento Divino, mas, na ausência de uma vitória militar, será que teria garantido a perpetuação de uma festividade que vem sendo celebrada há mais de dois milênios?
O significado do milagre do azeite não foi tanto uma questão de pureza ritual, mas sim a mensagem Divina que transmitiu aos Macabeus, bem como àquela geração de judeus e a todas as que vieram a seguir: o óleo da pequena jarra ardeu durante oito dias – um número que, segundo o misticismo judaico, simboliza o sobrenatural – para lhes revelar que sua vitória militar tinha sido um milagre. Eles venceram não só porque lutaram com bravura e ímpeto, mas porque a Divina Providência havia decretado que eles triunfariam sobre seus opressores. Se D’us não tivesse lutado ao lado deles, provavelmente teriam perdido a guerra. Porque, afinal, eles eram apenas um grupo de guerreiros travando uma guerra contra uma superpotência. O resultado da guerra poderia ter sido drasticamente diferente: os judeus poderiam ter perdido, como ocorreu dois séculos depois contra Roma. Os sírio-gregos poderiam ter vencido os Macabeus, destruído o Templo e então massacrado milhões de judeus, como fizeram os romanos. O Povo Judeu venceu a Guerra por causa de seus valentes soldados, mas também por causa “das salvações, dos milagres e das maravilhas que Tu realizaste para nossos antepassados, nestes dias, naquela época”.
Definindo Milagres
Como o judaísmo define milagres? Na oração da Amidá (Shemonê Esrê), que recitamos todos os dias, agradecemos a D’us “por Teus milagres que estão conosco todos os dias, e por Tuas contínuas maravilhas e beneficências”. Já o Talmud nos ensina que o homem nunca deve confiar em milagres, pois estes raramente ocorrem. Como conciliar essas duas ideias? Serão os milagres eventos diários, comuns, ou ocorrências raras e incomuns? Depende de como definimos “milagre”.
A maioria das pessoas define os milagres como uma ocorrência sobrenatural. De fato, segundo o judaísmo, o milagre é um desvio das leis da natureza: D’us criou e continuamente sustenta o mundo por meio das leis da natureza, mas em ocasiões raras e muito especiais, Ele rompe algumas dessas leis em nosso benefício. Exemplificando: Poderia D’us mudar o curso da Terra e do Sol? É óbvio que sim.D’us criou o Universo todo e tudo o que contém. Para um Ser Infinito, criar e administrar um Universo finito não requer nenhum esforço. O Tanach relata que D’us o fez, uma vez: Ele adiou o pôr-do-sol, em uma sexta-feira, permitindo, assim, que os judeus continuassem a lutar contra seus inimigos sem ter que violar o Shabat. Portanto, está escrito no Livro de Yehoshua (Josué): “Então Yehoshua falou ao Eterno, no dia em que o Eterno deu os Emoreus (derrotados) diante dos Filhos de Israel, e disse aos olhos de Israel: “Sol, detém-te em Givon, e Lua, no Vale de Ayalon!” – e o sol se deteve, e a lua parou até que o povo se vingou de seus inimigos... E não houve dia semelhante a este, nem antes nem depois dele, em que o Eterno tivesse atendido à voz de um homem – porque o Eterno guerreava por Israel!” (Yehoshua 10: 12-14).
Essa passagem do Livro de Yeshoshua transmite a definição de milagre sobrenatural. D’us pode mudar a órbita dos corpos celestiais para atender os desejos de um ser humano. Um Ser Onipotente pode fazer qualquer coisa.A questão não é se D’us pode realizar milagres – Ele obviamente pode –, mas sim, por que Ele deveria fazê-lo. Quando os seres humanos oram pedindo um milagre, eles estão rogando, como na passagem citada de Yehoshua, que D’us atente para a voz do homem e Se desvie da forma como Ele rege Seu Universo – ou seja, que quebre uma de Suas leis que Ele próprio estabeleceu e implementa, continuamente.
D’us quebra, sim, Suas leis em ocasiões raras e extraordinárias. Os milagres lembram ao mundo que D’us é invisível, mas não ausente. Os milagres nos despertam para o fato de que existe muito mais no mundo do que o pouco que nossos cinco sentidos percebem. D’us também pode realizar milagres sobrenaturais em benefício de um ser humano extraordinário – alguém como Moshé e Yehoshua – ou se muitas pessoas pedirem Sua ajuda.Essa é a razão para a reza comunitária ser tão importante: quanto mais pessoas pedirem por milagres e maravilhas, maior a chance de que D’us atenda seu pedido.
Como essa definição de milagres se adequa ao conceito, mencionado na oração da Amidá, de que D’us realiza milagres todos os dias e o dia todo? Esses milagres são milagres ocultos – eventos inesperados e felizes: milagres que ocorrem sem que as leis da natureza sejam quebradas. Por exemplo: supondo-se que alguém necessite desesperadamente de 1.000 reais e não tenha a quem pedir. De repente, inesperadamente, alguém o contrata para realizar um trabalho por exatamente 1.000 reais – nem um centavo a mais nem a menos. Muitos podem dizer que é mera coincidência, ou pura sorte. O judaísmo chamaria isso de um milagre dentro da natureza.
A Divina Providência veio socorrer essa pessoa sem quebrar as leis da natureza. O dinheiro caiu do céu? Não. E se materializou do ar? Também não. A pessoa teve que trabalhar para ganhar a soma. Um emprego e um empregador: uma fonte humana. Contudo, trata-se de um evento inesperado e fortuito: um ser humano teve a oportunidade de ganhar a soma exata que ele necessitava, quando o necessitava. Quando esses eventos inesperados e felizes acontecem conosco – e se expandíssemos nossa consciência, perceberíamos que eles ocorrem com frequência –, eles nos lembram que D’us é um Ser presente que cuida de cada um de nós, o tempo todo. A isso nossos Sábios chamam de Divina Providência. A maioria de nós não percebe como a Divina Providência modela até os menores eventos de nossa vida. Como nos ensina o Talmud, não temos consciência da enormidade de milagres que D’us realiza para cada um de nós, a cada dia de nossa vida.
É importante enfatizar que mesmo quando D’us realiza um milagre aberto, quebrando as leis da natureza, Ele não as descarta inteiramente. Os melhores exemplos de milagres abertos foram as Dez Pragas que resultaram no êxodo dos judeus do Egito: a água virou sangue, granizo contendo fogo caiu dos céus, etc. No entanto, mesmo esses milagres permaneceram de alguma forma conectados às leis da natureza. As águas que viraram sangue – um líquido que se transformou em outro; a água não virou fogo. O granizo que caiu dos Céus continha fogo, mas caiu do céu, como cai o granizo; não foi da Terra para os Céus. D’us poderia certamente ter transformado as águas do Nilo em fogo, mas não era necessário quebrar as leis da natureza a tal ponto.
Mesmo o maior dos milagres não acarreta uma completa suspensão das leis da natureza. Há que haver uma explicação natural – ainda que altamente improvável – para explicar até mesmo os milagres abertos. Senão, a Divina Revelação seria tão grandiosa que negaria o mundo: o finito cessaria de existir dentro do Infinito, como uma vela acesa dentro do sol. D’us quebra as leis da natureza, mas Ele não as repele completamente. Se D’us anulasse totalmente as leis da natureza, a realidade como a conhecemos cessaria de existir – ou, no mínimo, deixaria de fazer sentido. D’us pode certamente suspender Suas leis e fazer qualquer coisa, mas Ele opta por não o fazer.
Os milagres de Chanucá
O milagre do óleo celebrado na festividade de Chanucá foi um milagre aberto. Talvez não tenha sido tão dramático como as águas do Egito que viraram sangue – mas não deixou de ser um fenômeno sobrenatural.Vencer um exército altamente superior, em uma guerra, pode ser algo altamente improvável, mas não é uma suspensão das leis da natureza. Como nos mostrou a história, o resultado de uma guerra pode variar. Nem sempre é o exército mais forte o vencedor de uma confrontação militar. Não fosse pelo milagre do óleo, os judeus poderiam ter atribuído a vitória a seu poderio e genialidade militar. O milagre, portanto, transmitiu aos judeus a lição de que a Divina Providência lhes dera a vitória. Um milagre aberto – o do óleo – ocorreu para lhes indicar que sua vitória também tinha sido um milagre, ainda que contido dentro das leis da natureza. Contudo, como mencionamos acima, as bênçãos e orações recitadas em Chanucá enfatizam o milagre do triunfo militar, não do óleo. Ironicamente, o milagre aberto teve significado menos impactante do que o oculto.
Há uma clara diferença entre os milagres ocorridos no Egito – quando Moshé liderava o Povo Judeu – e o milagre da vitória dos Macabeus sobre as forças sírio-gregas. No Egito, os milagres vieram dos Céus: não envolveram muita participação humana. Moshé, o maior de todos os profetas, que falou face a face com D’us, não teve que fazer esforços extraordinários para vencer o Faraó: tudo o que precisou fazer foi cumprir as instruções Divinas, como a confrontação com o Rei egípcio e o uso de seu cajado para fazer acontecerem as pragas. Já com os Macabeus, não houve Moshé algum. Eles tiverem que lutar para vencer. Eles foram à guerra sem que D’us lhes tivesse dito o que fazer e sem lhes garantir que eles prevaleceriam. Ademais, essa guerra durou vários anos. Não foi um conflito rápido, muito menos fácil, e certamente houve muitas baixas judias. Diferentemente das Dez Pragas que se abateram sobre o Egito, o milagre de Chanucá, a vitória dos Macabeus, não foi um milagre aberto, e, portanto, exigiu um enorme esforço humano. Não tivessem eles lutado tão intensamente por tanto tempo, não teriam vencido a guerra. Ao mesmo tempo, não fora pela interferência Divina, eles não teriam triunfado, apesar de seus enormes esforços.
A Parceria entre D’us e o Homem
A história e os milagres de Chanucá servem como manual de como o homem deve viver sua vida para que tenha sucesso em seus empreendimentos. Essa festa nos ensina que o sucesso depende tanto do empenho humano quanto da ajuda Divina. Algumas pessoas creem que já que a Providência guia o mundo – já que os milagres Divinos ocorrem por toda parte e a toda hora, como recitamos diariamente na Amidá – o homem não precisa fazer esforços na vida. “Que será, será”, diz a canção. Não precisamos trabalhar – D’us proverá, como fez para os judeus comandados por Moshé no deserto de Sinai. Não precisamos lutar em nossa própria defesa – D’us lutará contra nossos inimigos como fez contra os egípcios. Essa é uma linha de pensamento muito perigosa – é uma interpretação gravemente errônea do judaísmo –, que, em geral, leva à destituição e à derrota e, em última instância, ao desapontamento e à perda da fé. O nível da Providência Divina que cuida dos seres humanos sem a necessidade do empenho humano só se aplica a pessoas do calibre de Moshé ou de Rabi Shimon Bar Yochai. A maioria das pessoas, até mesmo os verdadeiramente justos, precisam esforçar-se para ter sucesso. Se isso foi válido para os Macabeus – eles tiveram que lutar durante longo tempo e empenhar-se para vencer – certamente é valido para nós.
Contudo, há quem creia que o sucesso e o fracasso dependem unicamente do empenho humano – do trabalho duro, do talento e da genialidade. O judaísmo condena essa filosofia de vida. Qualquer ser humano sensato deve perceber que por mais que tentemos controlar o mundo e os eventos de nossa vida, nós temos muito pouco controle do que quer que seja. O imprevisível sempre pode ocorrer. Sem a ajuda de D’us, até as iniciativas mais promissoras podem dar errado; até as situações mais favoráveis e simples podem tomar um rumo errado. O homem precisar esforçar-se muito, mas não pode esquecer-se de que, para ter sucesso, a ajuda e bênção Divinas são sempre indispensáveis. O mundo pode seguir um caminho um tanto previsível – ao que chamamos de leis da natureza – mas sempre há espaço para o inesperado – seja positivo seja negativo. O Rei Salomão, o mais sábio de todos os homens, ensinou que “O orgulho precede a queda” (Provérbios, 16:18). As pessoas orgulhosas, que acreditam que são donos de sua sorte e destino, com frequência sofrem reveses que lhes fazem recordar que há um único Mestre do Universo.
Um sábio, certa vez, deu o seguinte conselho de como viver a vida: “Trabalhe como se tudo dependesse de você e ore como se tudo dependesse de D’us”. Esse é o caminho defendido pelo judaísmo e que leva a uma vida de conteúdo e de sucesso. A Torá nos ensina que D’us espera que tenhamos uma vida plena de esforços, mas não podemos esquecer jamais da Origem de nossa vida e de tudo o que possuímos e conquistamos.
A festa de Chanucá nos ensina muitas lições valiosas. Uma das mais importantes – universais e atemporais – é que se queremos viver uma vida de milagres, não precisamos ser um Moshé nem esperar milagres como os ocorridos no Egito. Basta expandir nossa consciência, tornar-nos mais conscientes dos eventos inesperados e felizes ao nosso redor e apreciar a constante supervisão e bondade Divinas conosco.