O que vem à mente quando se ouve falar da 2ª Guerra Mundial? Um nome com certeza: Anne Frank. Mas existem outras tantas vítimas do Holocausto com nomes e histórias que ainda precisamos desvendar. Nada sabemos, por exemplo, dos sobreviventes de Theresienstadt. O episódio protagonizado pelas meninas do Quarto 28 é, certamente, um excelente exemplo de resistência cultural.
Perto de Praga, uma elite intelectual é usada como forma de propaganda nazista para mostrar ao mundo que os judeus têm uma bela cidade administrada com autonomia cultural, política e social. Ricos judeus são “convidados” a ir para essa cidade judaica, abrindo mão de seus bens em favor do governo alemão. Mas na realidade, aquilo não passava de uma encenação, sendo uma cidade de lojas sem mercadorias, uma escola sem alunos e até um banco sem clientes. No entanto, apesar das agruras, medo e sofrimento, lá também floresceram talentos artísticos.
Entre 1942-1944 sessenta moças judias habitaram o “Quarto 28” do gueto de Theresienstadt. Todas tinham personalidades diferentes e contrastantes, mas entenderam que precisariam conviver e se aceitar para sobreviver às adversidades. Esta é uma história sobre a perda da infância, mas também a reconquista da juventude por meio da amizade mantida viva por um punhado de jovens, através do amor e empenho das cuidadoras e professoras, da esperança num futuro melhor e do temor de um desfecho trágico . Atualmente, são poucas as sobreviventes do Quarto 28.
Theresienstadt – Fortaleza nazista
A invasão alemã da Tchecoslováquia, em 1939, fechou o cerco aos judeus que ainda viviam no país. Iniciou-se uma perseguição com a deportação para guetos e campos. Theresienstadt era uma fortaleza construída, em 1780, pelo Imperador Josef II. Localizada a 60 km de Praga, lá foi estabelecido um gueto e um “campo de concentração para casos especiais”, pois abrigaria artistas famosos, conhecidos cientistas, músicos virtuosos e outros judeus de talento.
O campo de Theresienstadt tem a forma geométrica de uma estrela de várias pontas. Sua topografia de altos bastiões, fortes muralhas, alinhamento de ruas e casas e uma praça central com Igreja, fizeram do local um espaço fácil de ser transformado em gueto isolado e campo modelo. Judeus proeminentes de renome internacional foram “convidados” pelo 3º Reich para habitar em uma cidade aprazível sob a proteção do Führer. Ali teriam alojamento, alimentação e cuidados médicos, desde que assinassem um termo cedendo todos seus bens ao Reich, que, dessa forma, guardava para si a quantia de 400 milhões de marcos.
Gradualmente, iam chegando judeus a Theresienstadt, todos carregados de malas, preparados para uma jornada sem fim. Famílias inteiras exibem logo seus contratos com o governo, pensando serem garantia de proteção e bem-estar indefinidos. Mas, em pouco tempo, os SS se apoderavam de suas bagagens, pilhando todo objeto de valor. Homens respeitáveis, mulheres finamente vestidas e crianças delicadas são despojados de seus pertences e obrigados a dormir no chão. Após noites de brutal aprendizado, judeus saem das casas esgotados e sujos, com as pupilas dilatadas de espanto. Imediatamente, os membros das famílias são separados para começar a trabalhar para a indústria alemã.
Uma vez instaurado o Reichprotektorat (Protetorado Boêmia-Morávia), medidas antissemitas se tornam cada vez mais opressivas, especialmente quando Adolf Eichmann decide purificar racialmente o Protetorado. Após exaustivas reuniões entre Goebbels, Heydrich e Eichmann, Theresienstadt foi escolhido como local de trânsito para os judeus do Protetorado.
Em 1935, Theresienstadt já tinha 7.000 habitantes, metade deles soldados. Após retirar a população local, o lugar serviria como gueto. Certa vez, em 1941, Reinhard Heydrich afirmou: “Em Theresienstadt poderemos acomodar entre 50.000 e 60.000 judeus. De lá, serão enviados para o Leste. Após sua evacuação completa, o local será colonizado por alemães de acordo com um planejamento impecável, transformando-se num núcleo de vida alemã”.
Desde 1941 chegam comboios repletos de pessoas. Os números são assustadores: dos 139.654 prisioneiros, 33.430 morrerão ali, enquanto outros 86.934 serão deportados para o Leste (principalmente Auschwitz-Birkenau), e destes, 83.500 serão assassinados. Numa casa que abrigava 20 soldados, serão colocadas entre 100 e 400 pessoas. Os prisioneiros proeminentes poderão morar em casas com suas famílias; mas a grande maioria será colocada em quartos mistos para homens e mulheres. A disparidade não foi apenas social e cultural, mas também religiosa. Fora dos judeus, há quase 2.000 prisioneiros cristãos, 1.130 católicos e 830 protestantes.
Com o passar do tempo, a superlotação de Theresienstadt gerou penúria e doenças graves. O total de calorias na alimentação era insuficiente. Trabalhadores e crianças recebiam rações complementares, enquanto idosos tinham porções menores, tendo que rondar as latas de lixo espalhadas pelo campo.
O quarto 28
O campo de Theresienstadt era amplo. Entre 1942-1944, moças com 12-14 anos moraram no assim-chamado Quarto 28, no “Abrigo para Meninas L410”. Elas faziam parte das 75.666 pessoas que habitavam o gueto. Foram estigmatizadas por serem “meninas judias”, sendo todas perseguidas, roubadas e deportadas para Theresienstadt. Lá, seus caminhos se cruzariam.
O “Quarto 28” era um espaço de 30 m² que abrigava, em média, 30 meninas. Todas dormiam em beliches ou treliches estreitos, comiam alimentos racionados e, à noite, ouviam histórias lidas em voz alta por uma das cuidadoras. E quando as luzes eram apagadas, conversavam entre si, compartilhando suas experiências, pensamentos, preocupações e medos.
Às vezes, algumas moças eram subitamente retiradas de seu convívio, e obrigadas a seguir em um dos temidos transportes em direção ao Leste. Então, novas meninas chegavam ao “Quarto 28”, ajeitavam-se como podiam naquela situação, dando origem a novas amizades. E, um dia, esse convívio seria também abalado pelos “transportes”. Assim, o grupo se formava novamente, fortalecido pelo desenrolar dos acontecimentos.
Tomamos conhecimento da história das meninas do “Quarto 28” através da obra de Hannelore Brenner, “Die Mädchen von Zimmer 28: Freundschaft, Hoffnung und Überleben in Theresienstadt”. Algumas dessas meninas eram: Hana Epstein (Holubicka), Eva Fischlová (Fiska), Ruth Gutmann, Irena Grünfeld, Marta Kende, Anna Lindt (Lenka), Hana Lissau, Ola Löwy (Olile), Zdenka Löwy, Ruth Meisl, Helena Mendl, Maria Mühlstein, Bohumila Polacék (Milka), Ruth Popper (Poppinka), Ruth Schächter (Zajícek), Pavla Seiner, Alice Sitting (Didi), Erika Stránská, Jirinka Steiner e Emma Taub (Muska).
Diários pessoais, álbuns de fotos, cadernos com desenhos e cartas avulsas nos aproximam do mundo dessas meninas. Há um sentimento de tristeza de saber que suas esperanças e sonhos nunca foram realizados. Na imaginação da Ana Flaschová (Flaska), que sobreviveu à 2ª Guerra, suas companheiras de quarto continuam sendo as crianças de outrora, adoráveis, criativas e talentosas; algumas calmas e pensativas e outras mais ativas e temperamentais. Flaska se pergunta como teria sido o futuro de suas amigas: Lenka, que escrevia poemas maravilhosos; Fiska, que inventava esquetes espirituosos e que tanto gostava de fazer teatro; Maria, com sua linda voz; Helena e Erika, duas desenhistas e pintoras talentosas. Qual teria sido a sorte de Muska, Olile, Zdenka, Pavla, Hana, Poppinka e Zajicek, esta última a mais nova das meninas, tão carente e necessitada de proteção?
Para Flaska, “o caderno de recordações é mais do que uma lembrança, é uma missão. A missão de manter viva a lembrança das meninas assassinadas é a sua responsabilidade pessoal”. Ao folhear o álbum, consegue visualizar as meninas e ouvir suas vozes. É como se clamassem para não serem esquecidas.
As meninas do “Quarto 28” formavam uma comunidade baseada na lealdade e na amizade. Uma célula quase embrionária que fundou uma organização chamada, em hebraico, “Ma’agal” (Círculo); uma comunidade que compôs um hino e criou uma flâmula com um círculo e, dentro dele, duas mãos entrelaçadas: um símbolo da perfeição, talvez o ideal que todas almejavam. “Ma’agal” era uma célula humana unida pela mesma esperança e anseio: a derrota da Alemanha e o fim da guerra. Em Theresienstadt, aquelas meninas do “Quarto 28”, que faziam parte de “Ma’agal”, fizeram um juramento de fidelidade eterna. Nas palavras de Flaska: “Sob o velho campanário, na cidade antiga de Praga, esperamos nos encontrar num dos primeiros domingos após a guerra”. Essa era a promessa feita quando acontecia uma despedida. Uma promessa reforçada com uma frase que, dita por elas, deve ter soado como um encantamento e uma senha secreta:
“Você acredita em mim,
eu acredito em você.
Você sabe o que eu sei.
Venha o que vier,
Você não me trairá,
Assim como não trairei você”.
Este era o pacto de lealdade selado pelas meninas do “Quarto 28”, enquanto ondas devastadoras de “transportes” para o Leste continuavam atingindo milhares de judeus.
A rotina das crianças
Em Theresienstadt, o cotidiano era pesado. Às 7:00h da manhã todos acordavam com os gritos de “Levantem-se, crianças!”, seguindo logo para a fila do banheiro, frio e feio. Em cada andar havia duas privadas para 120 meninas. Pela manhã era obrigatório arejar a roupa de cama e os cobertores. As meninas colocavam as roupas sobre as janelas, mesas ou estrados das camas. Imediatamente, eram divididas as tarefas do dia: preparar o almoço, fazer a faxina ou ajudar as pessoas idosas. Os nazistas proibiam as crianças de estudar, mas permitiam que tivessem aulas de desenho e pintura. À tarde, longe dos olhares dos nazistas, elas tinham aulas de matemática, história e geografia.
No final da tarde, os alojamentos mergulhavam em um silêncio sepulcral, enquanto belas vozes ecoavam do porão. Eram as canções das aulas do coral de Raphael Schächte, que atraíam as meninas do “Quarto 28”.
À noite, enquanto as crianças estavam deitadas em seus beliches, uma única palavra iluminava as intermináveis conversas: liberdade. Aquilo começava com um sussurro e gradualmente se transformava num verdadeiro desejo de um fim para aquela guerra.
Arte no gueto
O trabalho da educadora Friedl Dicker-Brandeis no “Quarto 28” é fundamental para entendermos a “resistência cultural” em condições desumanizadoras. Constantemente, Friedl estimulava as crianças do gueto a encontrar a beleza no presente, a não esquecer o passado e a não deixar de imaginar um futuro promissor.
Na década de 1920, a arte-educadora estudou na Bauhaus com artistas célebres como Paul Klee, Vassily Kandinsky e outros nomes relevantes da arte europeia. A escola Bauhaus tinha como fundamento filosófico a teoria da “empatia estética” (Einfuhlung), que resgata uma visão estética sustentada na união entre o interno e o externo, da forma criada não como mera representação objetiva da aparência, mas como exteriorização da relação do ser humano com o mundo externo.
Baseada na teoria da empatia estética - segundo Liz Elsby - “Friedl encorajava seus alunos a abordar um sujeito ou um objeto não como se fossem uma câmara fotográfica que apenas registra a imagem externa, mas a buscar a sua essência, a percebê-lo por dentro e por fora, a ir além da aparência e procurar identificar-se empaticamente com esse sujeito ou objeto, buscando acessar e se identificar com suas experiências internas”.
Na prática, a metodologia de Friedl Dicker-Brandeis consistia em exercícios para favorecer o fluir criativo, e estava composta de diversos exercícios rítmicos, de trabalhos de respiração e relaxamento, de movimento corporal, de exploração dos elementos da linguagem visual para possibilitar tanto o desenvolvimento da espontaneidade criativa como também das diferentes habilidades artísticas. Ela incluía o ensino dos elementos da arte nas experiências emocionais e sensoriais de seus alunos no aqui-e-agora, o que dava às crianças a experiência de estarem vivas, no sentido mais profundo e humano do termo.
Em dezembro de 1942, Friedl Brandeis e seu marido Pavel foram enviados a Theresienstadt. Ela tinha direito de levar uma mala com alguns quilos. Enquanto a maioria dos deportados levava roupas, valores, lembranças pessoais como álbuns de fotos e objetos, em geral, Friedl optou por levar o mínimo de roupas e encheu a mala de materiais de arte para dar aulas de desenho.
Contrariamente a outros artistas do gueto, que procuravam documentar o sofrimento em que viviam, Friedl Brandeis estimulava a imaginação e a percepção da beleza e harmonia do mundo. Ela ajudou as crianças de Theresienstadt a expressarem seus medos e esperanças de sobreviver. Em suas próprias palavras: “Quando um espírito encontra sua própria força e se afirma sem medo do ridículo, irrompe uma nova primavera de criatividade – é exatamente isso que estamos buscando em nossas aulas de desenho... Vamos incentivar a criança a expressar o que ela tem a dizer”.
Em outubro de 1944, aos 46 anos, Friedl Dicker-Brandeis foi deportada para Auschwitz no transporte No. 167. Três dias depois era assassinada nas câmaras de gás. Na sua despedida, entregou a Willy Groag duas malas com 3 mil desenhos que ficariam em Theresienstadt até o final da guerra. A maioria das 660 crianças desenhistas não sobreviveu.
Brundibár no campo
Brundibár (O resmungão) é uma ópera para crianças, de 40 minutos. Composta em 1938 por Hans Krása, com letra de Adolf Hoffmeister, estreou em Praga interpretada por crianças de um orfanato judaico. Em julho de 1943, a partitura de Brundibár foi contrabandeada para Theresienstadt, onde Krása a orquestrou com os instrumentistas disponíveis naquele momento.
Os nazistas logo perceberam o potencial propagandístico dessa iniciativa artística, organizando uma nova encenação da ópera para o filme “Theresienstadt - Eine Dokumentarfilm aus den Jüdische Siedlungsgebiet”, dirigido pelo cineasta Kurt Gerron. Esta mesma produção teatral de Brundibár foi repetida quando a Cruz Vermelha inspecionou Terezin, em 23 de setembro de 1944. Esta seria a última das 55 apresentações no gueto.
A trama de Brundibár é simples: Aninka e Pepícek são duas crianças cuja mãe está doente. Para a sarar, o médico lhes receitou leite e os filhos vão procurar leite ao mercado da cidade, porém não têm dinheiro para comprá-lo. Três comerciantes ofertam seus produtos: um sorveteiro, um padeiro e um leiteiro. As crianças tratam de obter o leite com cada um deles. Primeiramente, elas incluem o leiteiro numa canção, mas ele lhes informa que somente com dinheiro poderão comprar o leite. De repente, eles vêm Brundibár, um tocador de realejo resmungão, tocando numa rua lotada de pessoas, e decidem incluí-lo na música, mas, também, sem grande sucesso. Esta atitude não agrada em nada nem a Brundibár nem ao público, que começam a expulsar as crianças. Três animais (um pássaro, um gato e um cachorro) chegam até o lugar para ajudar Aninka e Pepícek, e assim todos iniciam uma empreitada para recrutar outras crianças e colaborar com o plano deles.
Dos numerosos depoimentos sobre a ópera, há um que me tocou sobremaneira. Nele, a menina Handa Pollak afirmava: “Brundibár era o nosso pequeno segredo contra Hitler. Nós lutávamos contra Brundibár, o tocador de realejo, mas Brundibár não era Brundibár - era Hitler. E os comerciantes que negavam leite, pão ou sorvete às crianças não eram só lojistas, eram os SS – as pessoas más. E, no final, vencíamos. Isto significava tudo para nós”.
A ópera infantil Brundibár era, para os judeus, uma luz na escuridão, um ato de resistência, um símbolo da esperança e da fé na vitória sobre os alemães.
A visita da Cruz Vermelha
Assistir ao filme “O Führer oferece uma cidade aos judeus” nos coloca diante da singularidade do que foi Theresienstadt, então Tchecoslováquia. É possível que essa mesma surpresa tenham sentido os membros da Cruz Vermelha Internacional na rápida visita de inspeção às condições dos prisioneiros, realizada em 23 de junho de 1944. Na ocasião, encontraram uma urbe de judeus; um lugar onde corriam notas de dinheiro impressas com a efígie de Moisés e as Tábuas da Lei.
Naquele dia, os membros da Cruz Vermelha ouviram um Réquiem de Verdi cantado pelo coral de Theresienstadt. Os grupos de teatro representavam duas peças de Shakespeare, e nos programas de ópera apresentava-se a ópera Carmem, Tosca e Flauta Mágica; além de Brundibár, ópera composta por um autor do gueto.
Pelos documentários sobre Theresienstadt, vemos que as orquestras, conjuntos de jazz e de música clássica impressionaram muito aos visitantes. Os esportes eram também praticados, sobretudo o voleibol e futebol. Havia instalações sanitárias, 400 médicos (professores célebres), as pessoas, sempre bem vestidas, consultavam obras numa rica e agradável biblioteca. Tudo reflete harmonia e tranquilidade.
Theresienstadt é tida como uma sociedade comunista, dirigida por um sociólogo judeu, de alto valor, de nome Paul Eppstein (1901-1944). Ele preside o Ältestenrat ou Judenrat, um Conselho de Anciãos da comunidade. Além dele, 150 policiais checos fazem a guarda do gueto e 12 oficiais nazistas comandam o lager instalado na fortaleza.
A equipe pedagógica do campo era qualificada e o jardim de infância (criado para essa visita da Cruz Vermelha), adequado e moderno. A escola estava bem equipada e um cartaz indicava que as crianças estavam de férias. O relatório da Cruz Vermelha ainda observou que uma cozinha especializada preparava os alimentos dos pequenos.
Ao se iniciar a visita, os membros da inspeção ouvem o Dr. Paul Eppstein dizer: “Vocês irão visitar uma cidade normal de província”. Discurso à parte, Eppstein será acusado de colaborar com as organizações clandestinas da resistência ao Reich, sendo preso pela Gestapo e assassinado em 27 de setembro de 1944, na própria fortaleza.
O “melhor” documentário do campo de Theresienstadt é a obra de um prisioneiro alemão, o ator e cineasta Kurt Gerron (1897-1944), deportado com sua mulher para Auschwitz-Birkenau. Hitler muito se serviu desse filme para retrucar aos aliados o quanto eram felizes os judeus sob a tutela do Reich.
Desde que Eichmann anunciara a visita da Cruz Vermelha a Theresienstadt, a transformação do campo foi acelerada, fazendo surgir jardins decorados com plantas, balanços de crianças, um coreto para música, calçadas lavadas, e casas recentemente pintadas. Cada um dos figurantes do filme ganha roupas novas, sendo instruído sobre como devia comportar-se, ciente dos riscos de uma eventual desobediência.
Em 23/06/1944 os ilustres convidados tiraram fotos, recebendo um álbum de belas aquarelas de “uma cidade normal de província”. O Dr. Maurice Rossel, médico suíço da Cruz Vermelha, registrou em seu relatório sobre a visita: “Gostaríamos de dizer que ficamos muito surpresos ao encontrar no gueto uma cidade que vive uma vida praticamente normal”. Pouco tempo depois, com ar de ingenuidade, o médico confessa haver sido enganado; pois jamais duvidou de nada, não recebeu bilhete nenhum de prisioneiro sobre qualquer anormalidade no lugar e, muito menos, suspeitou de tudo ser previamente montado para visitantes ocasionais.
O “Quarto 28” e o Brasil
O elo entre o “Quarto 28” e o Brasil se concretizou através da família de Erika Stránská, uma das meninas de Theresienstadt. No verão de 2012, a escritora Hannelore Brenner recebeu um e-mail do Brasil, da jovem Adriana Zolko, cuja avó era Mônika Stránská Zolko, meia-irmã da Erika Stránská. O e-mail dizia o seguinte: “Olá, escrevo-lhe porque minha avó era a irmã menor de uma das meninas que viveu no Quarto 28, Erika Stránská. Minha avó se escondeu durante a guerra, ao término da qual veio para o Brasil. E aqui estamos até hoje. Sou Adriana e vivo em São Paulo”.
Foi assim, via e-mail, que tudo começou. Monika tinha belas lembranças de Erika, sua irmã mais velha. Falava dela com orgulho: “Erika brincava muito comigo, pois passava muito tempo conosco. A mãe de Mônika, naquela época, tinha 23 anos, adorava crianças e cuidou de Erika como se fosse sua filha”. Em 1939, a mãe da Erika, Therese Stránská, juntamente com sua cunhada, decidiu fugir para a Inglaterra, deixando Erika aos cuidados dos avós paternos e de seu ex-marido e pai de Erika, George Stránská. George estava separado de Therese e se casou novamente com Valerie Stettina. Em novembro de 1937 nasceu sua filha Mônika. Quando Therese deixou sua filha Erika em Praga, tinha certeza que estava em boas mãos, cercada do carinho da família de seu pai. E, realmente foi assim, até começarem os transportes em 1941.
Erika Stránská foi levada a Theresienstadt em setembro de 1941. A dor e a tristeza pelo destino da irmã mais velha acompanham Monika Zolko por toda a vida. Erika morou no “Quarto 28” até 1944. Em 16 de maio, subiu em um vagão e partiu rumo a Auschwitz quando faltavam seis dias para completar seu 14° aniversário. Nesse dia Erika havia morrido.
Palavras finais
No decorrer da 2a Guerra, milhares de judeus perderam a pátria, a dignidade e as vidas. Suas histórias são muito semelhantes àquelas que já conhecemos e, ao mesmo tempo são tão diferentes e únicas quanto seus nomes e atividades que desenvolviam.
Foram 60 meninas que conviveram durante dois anos, mas delas apenas 15 sobreviveram. Suas histórias, mescladas com fatos históricos e anotações de diários; seus desenhos, peças de teatro, aulas de pintura secretas e poesias escritas em álbuns de recordações, nos convidam a uma caminhada no campo de Theresienstadt.
Theresienstadt, uma cidade de faz-de-conta, idealizada pelos nazistas para desviar a atenção da imprensa e da Cruz Vermelha Internacional do que realmente acontecia. Uma história feita de tristeza, de amizade, compaixão e, sobretudo, de esperança...
Bibliografia
Brenner, Hannelore., “As meninas do Quarto 28: Amizade, esperança e sobrevivência em Theresienstadt. Texto Editores, um grupo da Editora Leya. São Paulo 2014, 414 págs.
Elsby, Liz, Coping through art - Friedl Dicker-Brandeis and the children of Theresienstadt. The International School for Holocaust Studies, 2013.
Kramer, Edith. On Friedl. In Wix, Linney. Through a narrow window: Friedl Dicker-Brandeis and her Terezin students. University of New Mexico Press, 2010, pp. 1-3.
Makarova, E. Friedl Dicker-Brandeis. Los Angeles: Tallfellow/Every Picture Press, 2001.
Wix, Linney, Aesthetic Empathy in Teaching Art to Children: The Work of Friedl Dicker-Brandeis in Terezin. Art Therapy: Journal of the American Art Therapy Association 26(4) pp. 152-158.
Wix, Linney. Through a narrow window: Friedl Dicker-Brandeis and her Terezin students. University of New Mexico Press. México 2010.
Prof. Reuven Faingold é historiador e educador, PHD em História e História Judaica pela Universidade Hebraica de Jerusalém. É também sócio fundador da Sociedade Genealógica Judaica do Brasil e, desde 1984, membro do Congresso Mundial de Ciências Judaicas de Jerusalém.