No artigo anterior, relatei o crescimento e desenvolvimento da comunidade judaica cubana. Era uma comunidade pluralista, preparada para o florescimento cultural, impregnada, ao mesmo tempo, da semente religiosa e, de nenhuma maneira, indiferente à realidade político-social cubana que a rodeava.

Estava claro que esta comunidade cosmopolita começara a se apropriar de certos elementos do “cubano” – tais como o carnaval, as comidas, os bailes, os boleros, os jogos de baseball. “O cubano” e “o judaico”, duas plantas diferentes e distintas, terminaram por ser uma coisa só, ainda que não o fossem. Para alguns, pode ser que as evidências que aqui apresento sejam frágeis ou insuficientes. No entanto, para entender mais claramente este fenômeno, eu observava como vários de meus amigos judeus traziam pendurados no pescoço uma corrente com uma pequena Estrela de David coexistindo pacificamente com uma pedra de azeviche que se usa em Cuba contra o “mau-olhado”, o nosso Ayn Raá.

Lembranças

Se me dispusesse a buscar na memória uma lembrança de algum objeto emblemático nos lares onde vivi, em Havana, que me pudesse ter sinalizado o fato de que eu era uma cubana-judia, não diria que foi a mezuzáou a Bíblia, mas reconheço o que para mim representou aquela caixinha de metal, azul e branco, do Keren Kayemet (Fundo Nacional Agrário para a Fundação do Lar Nacional Judeu). Desde criança eu não sabia que era um cofrinho pertencente àquela associação, mas observava aquela estrela branca de seis pontas sobre o fundo azul claro, logo intuindo que aquela estrela era algo meu; assim como também minha era a espuma branca do mar azul da Ilha onde nasci.

Em 1950, pertenci a um grupo que surgiu em Cuba com a morte da heroína judia, a pára-quedista de origem húngara, Hannah Sénesz, um grupo fundado e dirigido pela senhora Frida Arber. Duas culturas equidistantes, como a cubana e a judaica, encontraram-se no entendimento de suas atividades. Por exemplo, o grupo sionista depositou uma coroa de flores diante da estátua do patriota cubano, José Martí. Nossa geração cresceu recitando de cor os versos livres desse patriota cubano. Respeitávamos a ética de sua mensagem histórica: liberdade para Cuba. Minha melhor amiga, Sofía Rozencwaig, me contou que quando deixou Cuba, na época em que era permitido levar apenas três mudas de roupas, ela conseguiu levar suas fotografias. Entre essas imagens havia uma minha, junto ao busto de José Martí, durante o ato organizado pelo grupo Hannah Sénesz em honra do nascimento deste patriota cubano.

Por outro lado, Sofía Rozencwaig e eu participamos ativamente nessa luta sem quartel, que era sempre a eleição para Rainha Esther. Esse concurso, organizado pelo Keren Kayemet L’Israel, não era regido pela beleza e simpatia das concorrentes, mas pelo “resultado” econômico. Vencia a candidata que mais dinheiro conseguisse aportar, e a quantia arrecadada era doada ao Estado de Israel.

Meus pais me deram uma educação privilegiada, com total liberdade para decidir, pensar e falar com quem tivesse vontade. Minha mãe foi, decididamente, uma mãe judia atípica. Ainda recordo suas frases: “Se a menina não quer comer, que não coma”. “Se a menina não quer ter aulas de piano, então não as terá”.

Minha mãe me contava os sucessos maravilhosos de Sara, minha avó materna, e sobre Zalman, seu pai, meu avô, que foi um famoso enxadrista e dirigente da comunidade judaica de Varsóvia. Meus bisavós deram à minha avó materna e suas irmãs oxigênio, espaço e autonomia para desenvolver uma mente crítica. Por que minha mãe não faria o mesmo comigo? Foi por isso que, se eu saía com algum rapaz, eu não precisava de acompanhantes, como era costume na época. Além disso, as amizades de meus pais, pluralísticas e ecléticas, iam completando minha educação. Minha mãe tampouco foi o tipo de mulher pertencente a associações judaicas ou de outra índole; apenas me recordo de ter trabalhado alguns anos no Froein Farain, organização feminina de auxílio às famílias judiascarentes.

Meu pai realizou todos os tipos de encomendas para ajudar os refugiados em Tiscórnia, ou para elaborar os estatutos legais da associação de diamantários que haviam chegado a Cuba. Tocava violino e tinha verdadeira paixão por ópera. De fato, deu-me o nome da protagonista da obra “Palhaços”, de Leoncavallo, tendo-o feito em homenagem à sua mãe. O nome de minha avó paterna era Neja. Nedda e Neha eram as versões independentes de um mesmo nome, pois, em hebraico, me chamo Nechama, que significa “consolação”.

Na realidade, eu ia adquirindo conhecimento sobre o judaísmo de maneira empírica. Por exemplo, em 1943, durante o Brit-miláde meu irmão, eu não estive presente. Tinha nove anos e fiquei esperando no portão de casa. De repente, chegaram dois senhores desconhecidos, trajados de cor escura, o que era inusitado no calor de Havana. Muito amáveis, conversaram comigo e me acompanharam até que todos saíssem para o portão, ao término da cerimônia. Posteriormente aprendi o significado de ser um schnorer1.

Meus pais não cumpriam as leis judaico-religiosas no tocante aos alimentos nem acendiam as velas em Chanucá. Eu nem tinha idéia do que significava Chanucá-guelt (dinheiro ou presentes dados às crianças durante os oito dias da festividade). E qual não seria minha surpresa, quando o chinês da lavanderia que veio deixar as roupas no apartamento ao lado do nosso, ao me ver no corredor, depositou na minha mão uma reluzente moeda de prata equivalente a dez pesos cubanos. E como eu não a aceitasse, pois não entendi por que ele fazia aquilo, ele, sorridente, ficou repetindo: “Chanucá-guelt, Chanucá-guelt”...

Durante minha infância e adolescência, poder-se-ia afirmar que eu conhecia melhor os rituais católicos do que os de minha própria religião. Isto pelo fato de ter cursado o primário no Colégio San Vicente. Ficava a três quadras de onde vivíamos, de modo que eu podia ir a pé até a escola. Sua diretora era amiga de meu pai e me aceitou com a condição, imposta por ele, de que me dispensassem das aulas de catecismo. Minhas melhores amigas no colégio, irmãs e católicas devotas, viviam angustiadas, pois, como me explicaram, acreditavam que no céu era proibida a entrada dos judeus, e discutiram com o padre da igreja próxima ao colégio minha conversão ao catolicismo. O único requisito era não contar nada disso aos meus pais. Mas, apesar de não dizer nada, o fato de ocultar algo já era como mentir e trair a confiança que haviam depositado em mim.

Lembro-me que antes de chegar à reunião pensava que a minha suposta salvação se convertera em uma condenação. Sem ter lido e, obviamente, sem sequer saber da existência de Elie Wiesel, estava totalmente de acordo com ele quando definiu o judaísmo. “Ser judeu significa, em primeiro lugar, assumir seu destino de judeu e, em segundo, escolhê-lo”. Naquela tarde, aos 11 anos de idade, em La Habana, Cuba, eu havia não apenas assumido meu destino, mas também o havia escolhido. Acredito que naquele dia D’us estava comigo e me iluminou para que eu fosse capaz de pensar por mim mesma e tomar a decisão certa. Deixei todos plantados na igreja. Cheguei em casa e não disse nada.

Quase um ano depois, e de modo casual, contei o incidente a meus pais. Ainda me recordo do silêncio que se instalou, firme, e o olhar que ambos trocaram entre si. Na semana seguinte àquela confissão, estávamos mudando de casa, bairro, escola. Dali em diante, eu não mais usaria uniforme de escola católica. Fui aprovada no exame de ingresso para o melhor colégio laico de Cuba: o Colégio Ruston.

A maioria dos professores judeus que, após fugir da Europa, conseguiram asilo na Ilha tinham doutorado. Mas, com a pressa da fuga, quem pôde levar consigo títulos ou diplomas de certificação? James D. Baker, então diretor do Colégio Ruston, contratou como professores do curso ginasial uma série de eruditos, como foi o caso de Boris Goldenberg, que era nosso professor de filosofia e lógica.

Minha educação no Ruston deu um giro de 180 graus. Em suas salas de aula ocorreu o íntimo descobrimento de alunos, judeus e não judeus, que, até hoje, continuam sendo meus melhores amigos.

O Ruston foi para mim o despertar de uma nova solidariedade com o meu “ser judia”, nutrido com a chegada, em fins de 1945 ou em princípios de 1946, de meus tios – e também de meus primos, Silvia e Simon. Eles tinham conseguido salvar-se, curiosamente, graças aos próprios nazistas, que, para castigá-los, não os deixaram em Varsóvia, como era o desejo de meus tios quando responderam o questionário a que foram submetidos. Enviaram-nos à Sibéria e, naquele frio gélido, conseguiram sobreviver.

A princípio me entendi com meus primos por meio da mímica, mas eles logo aprenderam o espanhol. Aquela foi uma época de ouro, transbordando de entusiasmo, leituras, música, praia – nadávamos no Cassino Desportivo. O mundo encantado e encantador da praia era um presente para os meus olhos, tato, olfato, porque no mar e na areia não apenas brincava, mas também sonhava e dava asas à imaginação... Os passeios na minha bicicleta por parques selváticos, um em cada esquina da rua onde ficava minha casa, eram paraísos abertos; os programas e as canções no rádio e o jogo de baseball eram meu credo de vida. O cinema começava a se converter no espaço magnético de uma paixão.

Regresso ao Colégio Ruston, pois foi lá que se deu o segundo descobrimento: meu amor pelos contos. Graças a uma professora do High School, Miss Bryon, li em inglês os contos de O’Henry, Saki, Maupassant e outros. Um desses relatos, Address Unknown (Endereço desconhecido), de Taylor Kressman, uma norte-americana proveniente do estado de Oregon, me abriu, de maneira inevitável, as portas à literatura e ao judaísmo.

Essa história epistolar entre dois ex-sócios de uma galeria de arte, Schulse e Eisenstein, foi para mim, aos 13 anos, o conto mais impressionante que tinha lido em minha vida. Além de ser perfeito, penso que o efeito tão profundo que essa história me causou teve a ver com o tipo de educação recebida pelos meus pais. Talvez não me tenham instruído acerca das genealogias bíblicas, que eventualmente aprendi, mas sim me ensinaram por que e para que funcionavam os fornos crematórios. Minha mãe, desde a minha mais tenra idade, teve o cuidado especial de me explicar a injustiça cometida contra Alfred Dreyfus; o significado do anti-semitismo em Varsóvia, externando-me sua dor por haver perdido praticamente todos os seus entes queridos no Holocausto.

Em 1960, o regime castrista confiscou todos os colégios de Cuba. O confisco do Ruston ocorreu no dia 1º de maio de 1961. Graças às contribuições financeiras dos pais dos alunos, em 1959 o Colégio conseguira construir o novo edifício Ruston no Country Club. Fidel Castro rebatizou o Ruston como “Colégio Karl Marx” e, para surpresa e indignação de muitos dos doadores, anunciou que ele havia ordenado a sua construção, pois era a sua “doação pessoal ao país”2. Quando o regime passou a ser dono do imóvel, duas alas do edifício foram destruídas e outras convertidas em espaços para armazenamento de armas. As outras duas alas restantes foram mantidas intactas e, durante 40 anos, o colégio se converteu em um centro de doutrinação marxista, bem como de hospedagem para jovens provenientes do interior do país, pois Fidel confiscou também as casas particulares adjacentes. Em época mais recente, o Colégio Ruston ficou em poder das Forças Armadas e foi utilizado como um centro militar de inteligência, onde é estritamente proibida a entrada e a fotografia do edifício.

Epílogo
 
A expulsão dos judeus da Espanha, promulgada em 31 de março de 1492 e que teve que ser cumprida antes de 3 de julho desse ano, foi considerada uma “verdadeira tragédia”. Como não era permitido aos judeus terem ofícios como a advocacia ou a medicina, esses alfaiates, sapateiros, prateiros, mercadores, vendedores ou pessoas com alguma riqueza, tiveram que vender seus bens a preços de pechincha, obtendo em troca de sua casa, que, supostamente, ninguém queria comprar, uma mula. Em troca de um vinhedo, obtinham um pedaço de tecido ou um lenço, porque não podiam adquirir nem ouro nem prata. Sim, foi uma verdadeira tragédia para os idosos, adultos, jovens e crianças, que, com muita dificuldade, iam a pé ou em carretas, pelas estradas, buscando portos por onde pudessem escapar: “Uns caindo, outros se levantando, uns morrendo, outros nascendo, outros adoecendo”3. “Em sua viagem, eram roubados de diversas maneiras…”4.

As analogias, tanto no tempo como no espaço, são perturbadoras, porque as tragédias verdadeiras sempre nascem de uma raiz comum: o ódio. O regime que chegou ao poder em 1959, em Cuba, impôs, durante os primeiros anos, com uma celeridade assombrosa, aqueles banhos de sangue que acabaram com a vida de centenas de cubanos, no paredão. Na verdade, eram assassinatos disfarçados de uma falsa roupagem judicial, pois também se fuzilava sem qualquer julgamento.

Os temidos “Comitês de Defesa da Revolução”, nascidos em 1959, estavam localizados em cada esquina, em cada quadra, em cada edifício5. Vendedores de bilhetes, engraxates e cabeleireiros foram obrigados publicamente, pelo ego autoritário de Fidel Castro, a espionar e delatar os suspeitos de serem desafetos do novo regime. Foi o início das detenções, das turbas vociferantes em “atos de repúdio”, das intervenções de vandalismo, das ameaças, dos espancamentos, do culto à personalidade, das casas permanentemente sitiadas, dos maus-tratos, vexações e confinamento em solitária para os presos políticos e seus familiares, o extermínio dos adversários e um interminável rol de furores ideológicos. Mas a classificação de “verme” a qualquer um que não estivesse de acordo com as idéias “oficiais” teve para os judeus cubanos uma clara ressonância com a “escória” himmleriana ou hitlerista.

Sim, o regime castro-comunista de Cuba havia escolhido o caminho do ódio. Os cubanos, judeus ou não, não se atreviam a divergir, condenados inexoravelmente a repetir a história da fuga da Espanha. E assim foi. Muitos cubanos fugiram como puderam, deixando a mesa posta e abandonados os demais bens. Outros o fizeram de igual modo sem se despedir de ninguém. Aqueles que manifestaram seu desejo de partir, viram-se obrigados a inventariar seus pertences e, pobre deles se no dia da partida “algo’ faltava nessa lista... porque a partida era prontamente cancelada.

No que tange ao número de judeus que deixaram Cuba, seja qual for essa cifra, os que ficaram talvez se aproximem a uns 1.900 em Havana e uns 400 nas províncias. Estes tiveram que pôr, falando simbolicamente, uma máscara para se adaptar ao novo regime. Da mesma forma que um católico, ao batizar seu filho, já não lhe atribuía um nome do santo do dia para não prejudicá-lo na escola com a obtenção de certos privilégios, o judeu que permaneceu em Cuba também teve que ocultar sua religião6. Nomes como Igor, Vladimiro, Raísa e Waleska proliferaram porque o novo regime cubano encontrou um aliado poderoso nos soviéticos, que, naquela época, proporcionavam a ajuda econômica necessária para realizar a conversão forçada ao comunismo do povo cubano.

E, assim como ocorreu na Espanha, essa “Ilha em peso”7 chamada Cuba converte-se em um cárcere gigantesco, em um maquinário dispensador de morte. Qualquer um podia se preso, por menor que fosse o motivo: ter cabelo comprido ou apresentar certa “Conduta Imprópria”8.

O regime de terror havia sido iniciado. Alguns exemplos? A Constituição de Cuba de 1940 foi abolida e começou-se a governar através de decretos. Temos o caso da Lei 151, promulgada em 1959, pelo Ministério de Recuperação de Bens Malversados, que retira os bens dos herdeiros dos fuzilados e de qualquer político – ainda antes do ano de 1959. A Lei 162 suprime pensões às viúvas dos fuzilados. O Artigo 216 do Código Penal considera delito não apenas a intenção de saída do país, mas também o fato de acumular material que poderia ser usado para esse fim. Isto já se considera delito consumado, pelo que se aplicam cinco anos de prisão. Exemplos específicos para os judeus?

Em 1961, o tema do Holocausto deixou de ser ensinado, como era feito anteriormente, nas escolas cubanas. Do mesmo modo como sucedeu na França anti-semita, na época de Dreyfus, onde Zola e outros foram caricaturados de maneira ignóbil, na Cuba dos irmãos Castro ocorreu o mesmo com Menachem Begin, caricaturado como um cão em cuja coleira estava pendurada uma suástica. Em 1988, o livro libelo de Mahmud Abbas (nom de guerre: Abu Mazen), “A outra cara: A verdade das relações secretas entre o nazismo e o sionismo”, foi publicado com um prólogo de Imad Jada, o embaixador da OLP em Cuba.

Outra circunstância não menos decisiva da cumplicidade de que o regime castrista mantinha com as doutrinas dos supostos países “não alinhados” – que, em verdade, estavam solidários com a causa palestina – foi o decisivo voto outorgado por Cuba à infame Resolução 3379 dos árabes na ONU, quando, em 1991, equipararam o “sionismo com o racismo”. Mas a união com os países árabes na Cuba castrista foi ainda mais adiante, pois na Assembléia das Nações Unidas, a Resolução 3379 foi proposta por três países. Dois eram árabes e o outro foi Cuba. El Granma, periódico que junto com a Juventud Rebelde circula em Cuba, alardeou a notícia na primeira página. Para os judeus que viviam na Ilha, tal notícia deve ter sido o mesmo que viver uma temporada no inferno. Seu judaísmo deve ter-se encolhido ainda mais como uma matéria que, de medo, se auto-negava.

Não esqueçamos, tampouco, que um Fidel Castro entusiasta esteve muito de acordo com a invasão soviética à Checoslováquia e à Hungria e, contudo, Cuba foi o único país do Conselho de Segurança das Nações Unidas que recusou o uso de força contra Saddam Hussein e que exigiu que essa Organização primeiro condenasse Israel pela morte de um palestino no local do Templo de Jerusalém e que, ademais, como pré-condição para qualquer negociação sobre a crise do Golfo, exigisse uma retirada imediata de Israel dos territórios administrados.
Com semelhantes pronunciamentos, nada mais natural que ocorresse o inevitável para as poucas famílias judias que ainda restavam em Cuba.

Durante a década de 1990, as sinagogas estavam sofrendo um franco estado de avançada deterioração; os açougues casher já não existiam, pois não puderam sobreviver à falta de carne. Igual destino tiveram as frutas e verduras vendidas na popular, mas já desaparecida “Praça dos Polacos”. As lojas dos judeus nas outrora freqüentadas ruas de Havana tinham encerrado seu ciclo de vida.

Não obstante, apesar de estarem em ruínas, as sinagogas ainda servem como uma espécie de abrigo onde se serve comida às famílias pobres, cujos maridos, casados com mulheres não-judias, têm seus filhos, que, em sua maioria, não estão circuncidados.

Nunca esquecerei o que uma conhecida judia mexicana me contou, durante sua visita a Cuba, em fins da década de 1990. Uma 6ª feira à noite, os freqüentadores do shul (sinagoga) estavam tão emocionados com sua visita, que, para festejá-la nesse Oneg Shabat, abriram em sua honra uma lata de “Spam” (presunto americano condimentado). Para explicar tão equívoca situação, eu recorro ao título de um filme mexicano, “Somos aquilo que temos”9.

É assim que, neste interregno turbulento de 52 anos, continua sendo esta tirania castrista – atualmente, um fracasso colossal, ameaçando perpetuar-se como monarquia – enquanto a presença judaica em Cuba se converteu em uma pequena bola que gira ao sabor do vento. Ainda que essa bola se encontre diminuída, deteriorada e adulterada – uma espécie de nova mescla da mistura do melhor e do pior que houve em seu início – reelabora por sua conta e risco alguns preceitos e credos para sua própria sobrevivência.

Quantos judeus restam em Cuba? Difícil defini-lo. Ainda que a prudência aconselhe a matizar a seguinte cifra, poder-se-ia considerar, aproximadamente, que, se em 1959 a população judaica era estimada em 10-12 mil pessoas, hoje em dia manipulam-se os números para aumentá-los. Por quê? Para assim obter mais ajuda10. Não obstante, se considerarmos as novas conversões11 e os óbitos, talvez hoje em dia sejam 500 ou 600. Os números existem, mas não são confiáveis.

É fácil reconhecer nesta diminuta presença judaica, que sobrevive em uma ilha congelada por semelhante ditadura totalitária, que a religião seja representada como uma sombra caricaturesca. Para outros mais familiarizados com a degradação da existência humana, esta presença judaica incerta, arbitrária, incluso simplificada, mutilada e mistificada é “o que há”. Ainda que pareça pouco diante de tudo que se perdeu, tal presença continua sendo melhor do que nada.

Ter observado a trajetória dessa presença, transplantada de outros países, mas que se arraigou, cresceu e se formou em solo cubano, significa uma maneira de entender seu passado e presente para nos obrigar a refletir, com o olhar crítico, para seu futuro inacabado e inacabável.

O exílio cubano dispersou judeus pelos Estados Unidos, Venezuela, México, Porto Rico, Espanha, Inglaterra, Suécia e por muitos outros países do mundo.

Nestes séculos de desterro, signo constante de nossa história, que D’us, ao ter dado força aos que partiram, continue outorgando força aos que permanecem.

1  Mendigo ou pedinte que chega, sem convite, a qualquer casamento, Bar mitzvá – festa dos treze anos que assinala a chegada à vida adulta dos meninos – e é tratado com o devido respeito.
2  Imagino que reação semelhante a essa tenha tido
meu tio Anatol Zuchowicz, em Cuba, quando, sentado diante da TV, assistiu um programa no qual a Lumar - a fábrica de zíperes, construída por ele, meu pai e outros sócios, com maquinário importado dos EUA, foi apresentada pelo programa como sendo uma nova “conquista” da “Revolução”! A que autoridade poderia
ele ter-se dirigido para denunciar tamanha mentira? Mentir passou a ser um vício constante na conduta dos irmãos Castro.
3  Testemunho de Jerónimo de Zurita registrado nos Anais da Coroa de Aragão e de Andrés Bernáldez registrado na História dos Reis Católicos. Crônica inédita do século XV, editada por Miguel Lafuente, que aparece reproduzida no Tomo I, de Cuba: economía y sociedad, Leví Marrero.
4  ibid.
5  Em 1960, minha mãe e sua vizinha, que se encontraram duas noites seguidas, foram advertidas pelo porteiro do edifício que o Chefe do Comitê de Defesa da Revolução estava averigüando se elas não seriam conspiradoras. O porteiro as aconselhou a não se verem mais, porque corriam o perigo de serem acusadas e presas, como começou a acontecer com muitos cubanos, sem motivo justificado.
6  Não foi possível um estudo específico a respeito, já que a princípio era permitido aos judeus trazer alimento religioso especial, como as caixas de matzá (pão ázimo), desde que a pessoa fosse reconhecida como judia.
7  Título do poema profético escrito em 1942 pelo grande poeta, dramaturgo, ensaísta e novelista Virgilio Piñera (1912-1979). Cito um único verso. “Ninguém pode sair, a vida do engodo, e por cima a nata da raiva”.
8  Título do filme de Néstor Almendros e Orlando Jiménez Leal, que obteve o Grande Prêmio do XII Festival Internacional dos Direitos Humanos de Estrasburgo, 1984.
9  Somos lo que hay, (2010, México), filme de Jorge Michel Grau.
10 Esta afirmação a baseio na pesquisa de Nancy Obejas, que ouvi durante o Colóquio do Centro Cultural Cuba, celebrado em Nova York, em 4 de junho de 2005, ao qual também fui convidada. Minha conferência se intitulou: “Memórias compartilhadas. Minha história mexicana como escritora cubana”
11 Não duvido que as conversões em Cuba sejam feitas de boa fé, mas há que se levar em consideração que o Consulado de Israel permaneceu aberto em Cuba, permitindo uma saída do país, através de Israel

Nota da redação:
O ensaio La Presencia Hebrea En Cuba foi resultado de uma extensa e primorosa pesquisa realizada por Nedda G. de Anhalt. Em virtude de nossa limitação de espaço, o ensaio foi publicado em duas edições.
Em sua versão original, o texto, escrito em espanhol especialmente para Morashá, continha um grande número de ricas notas de rodapé e uma extensa bibliografia, que nos vimos forçados a editar. A versão completa será publicada em nosso site, após a publicação desta segunda parte do artigo. Contamos com a compreensão dos leitores e, em especial da autora.
 
As ilustrações desse artigo foram gentilmente cedida pela  autora, Nedda G. de Anhalt, pela  fotógrafa Noga Bondy, que esteve no inicio de 2011 em Cuba, pelo Rabino Yossi Alpern em 1986.

Nedda G. de Anhalt é escritora, crítica literária e de cinema e colabora com jornais e revistas do país e do exterior. Nasceu em Havana, mas se naturalizou mexicana. Formada em Direito Civil pela Universidade da Havana, e em Literatura pelo Sarah Lawrence College de Nova York, obteve seu Mestrado em Estudos Latino-americanos na Universidade das Américas, no México. Com mais de 20 títulos publicados, alguns dos quais foram traduzidos ao alemão, inglês, italiano, hebraico, esperanto e turco. Em 2006 ganhou o Prêmio Internacional de Poesia Eugenio Florit, e em 2009, o Prêmio APEIM do México.

Bibliografia:

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Bejarano, Margalit, La Comunidad Hebrea de Cuba. La memoria y la historia, Instituto Abraham Harman de Judaísmo Contemporáneo, Universidad Hebrea de Jerusalén, 1996
Baker, James D. Ruston, From Dreams to Reality, Baker Education Institute, USA, 2007.
Cedillo Juan Alberto. Los nazis en México, Ed. Random House, México, 2010
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Encinosa, Enrique G. Escambray: La Guerra Olvidada, Un libro histórico que narra la heróica lucha de los combatientes anticastristas en Cuba (1960-1966), Ed. Sibi, Florida, 1988.
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