'Eu me lembro de tudo'. Com esta resposta objetiva e curta, Ernesto Strauss, 81 anos, sintetiza as suas memórias da fatídica Kristallnacht . Ele tinha então 12 anos e vivia com seus pais e um irmão em Frankfurt. Seus tios-avós maternos e paternos também moravam na cidade. Segundo Strauss, a Kristallnacht foi um marco na vida dos judeus na Alemanha. Até então, apesar de todas as dificuldades e da perseguição crescente – ele mesmo deixou de freqüentar a escola pública por causa do anti-semitismo e da discriminação que sofria por parte dos professores e alunos – havia certa normalidade no dia-a-dia dos judeus.
“Eu me lembro de tudo”. Com esta resposta objetiva e curta, Ernesto Strauss, 81 anos, sintetiza as suas memórias da fatídica Kristallnacht . Ele tinha então 12 anos e vivia com seus pais e um irmão em Frankfurt. Seus tios-avós maternos e paternos também moravam na cidade. Segundo Strauss, a Kristallnacht foi um marco na vida dos judeus na Alemanha. Até então, apesar de todas as dificuldades e da perseguição crescente – ele mesmo deixou de freqüentar a escola pública por causa do anti-semitismo e da discriminação que sofria por parte dos professores e alunos – havia certa normalidade no dia-a-dia dos judeus.
Sobre aquele período, Strauss ainda lembra que, quando tinha sete anos, um de seus professores, do qual ele muito gostava, tornou-se membro do Partido Nacional Socialista e, a partir daí, começou a incitar cada vez mais os alunos contra os judeus. “Um dia, apanhei tanto de toda a classe que, ao chegar em casa, disse à minha mãe que não voltaria lá. Como morávamos longe da escola judaica, a solução foi estudar na sinagoga próxima de casa. Sozinho em uma sala, eu contava com a boa vontade de um moré para aprender. Mas, foi então que a “Noite dos Cristais” desabou sobre todos nós”.
“Poucos dias antes daquele 9 de novembro, nós já sentíamos no ar que algo estava por ocorrer, mas não sabíamos o que. Como acompanhávamos as notícias pela BBC, estávamos a par da morte do funcionário da Embaixada da Alemanha, em Paris. Conhecíamos o nosso governo e era claro para todos que as autoridades alemãs não perderiam a oportunidade de punir os judeus do país”, lembra Strauss. Ele ressalta, ainda, que, naquela época, não era permitido ouvir-se a Rádio BBC, menos ainda os judeus, por isso, cada vez que a família se reunia para acompanhar o noticiário, os adultos faziam a seguinte recomendação para as crianças: “Yeled, Sheket”, ou seja, “Menino, silêncio”. Mais do que silêncio na hora das notícias, era uma recomendação para que jamais contássemos aos amigos o que ocorria em casa, pois se os alemães soubessem, certamente haveria punições.
Ainda assim, podia-se falar em “vida judaica” na Alemanha. A maioria vivia próximo à sinagoga, inclusive a família de Strauss. A “ Noite dos Cristais” modificou tudo e tornou evidente que a situação iria piorar. “Naquela manhã de 9 de novembro, acordamos ouvindo muito barulho e sentindo um cheiro muito forte vindo da rua. Minha mãe me disse que fosse, com muito cuidado, até a casa dos meus avós, para ver o que estava acontecendo e como eles estavam. Assim, cautelosamente, saí do prédio onde morávamos e voltei duas horas depois, assustado com o que vira”.
Ainda hoje, Strauss lembra-se perfeitamente do que viu aos 12 anos de idade. As imagens lhe vêm à memória, vívida e claramente. Ele viu membros da Gestapo prendendo centenas de judeus, nas redondezas de sua casa. Viu homens, mulheres e velhos sendo espancados, sangrando, insultados, sem qualquer ajuda dos transeuntes. Pelo contrário. Viu lojas sendo saqueadas, móveis sendo atirados pelas janelas, sinagogas sendo incendiadas e dezenas de livros religiosos sendo rasgados, queimados e espalhados pelas ruas, como se fossem lixo.
Mais do que tudo, no entanto, ele se lembra do momento em que retornou à sua casa e viu dois homens da Gestapo, à paisana, batendo à porta do apartamento em que viviam, procurando pelo seu pai. “Eu vi o meu pai ser preso e levado ninguém sabia para onde, sem poder fazer nada. Fiquei apenas olhando e, em seguida, peguei a minha bicicleta, saí pelas ruas e fui até a sinagoga. Ao chegar lá, também fiquei muito assustado: havia dezenas de pessoas isoladas no pátio do edifício, elas não podiam sair nem reagir sob o risco de apanhar mais ainda. Deviam ficar quietas enquanto viam o fogo se espalhar, os vidros quebrarem, os gritos aumentarem... Depois, soubemos que o que aconteceu em Frankfurt tinha-se repetido em toda a Alemanha e, com violência muito maior nas cidades menores, onde o anti-semitismo era mais virulento. Estatísticas falam em cem mortos, algumas sinagogas destruídas... Na verdade, estes números foram muito mais altos...”.
Segundo Strauss, os sentimentos daquele dia são inesquecíveis e, acima de tudo, indescritíveis. Como traduzir em algumas palavras a extensão do medo que tomou conta daquelas Depoimento Uma noite inesquecível dezembro 2008 71 pessoas que se sentiam, até então e antes de qualquer coisa, alemães? Muitos haviam lutado na 1ª Guerra Mundial, eram heróis condecorados, descendentes de segunda e terceira geração de alemães? Como podiam, agora, ser tratados desta maneira? “Ao se estudar a Europa, é facilmente visível que o anti-semitismo faz parte da história do continente europeu e, portanto, não deveríamos surpreender-nos com o que estava acontecendo na Alemanha. Ainda assim, ninguém poderia imaginar...”.
Seu pai foi um dos muitos heróis de guerra presos pela Gestapo naquela noite trágica, entre os cerca de 30 mil judeus encarcerados entre 9 e 10 de novembro. Juntamente com centenas de pessoas, ele foi levado para um estádio onde estavam sendo colocados todos os detidos. Sua mãe, ansiosa por notícias, dirigiuse ao local e voltou totalmente ensangüentada, como muitas outras que haviam ido em busca de informações sobre os maridos e familiares presos.
“De lá, meu pai foi enviado para o campo de Buchenwald, onde ficou durante 30 dias. Ele foi solto porque o governo determinou que fossem soltos os que comprovadamente tinham sido condecorados, no passado, com a Grã-Cruz de Ferro. Quando foi libertado, meu pai estava em péssimas condições de saúde. Ele nos disse o que todos já intuíamos: não seria mais possível continuar na Alemanha. Quem quisesse viver, teria que partir o mais breve, antes que fosse tarde demais”.
E assim aconteceu com a família Strauss. Seu pai tinha um irmão que vivia em Londres (Inglaterra) e outro no Brasil. Em pouco mais de 30 dias, ele partiu para Londres e, de lá, para terras brasileiras, onde, graças ao bom relacionamento do seu tio com o senador Freitas Valle (parente de Oswaldo Aranha), seu pai obteve algo raro naquela época: um visto permanente de trabalho no País. Pouco tempo depois, sua mãe, Ernesto e seu irmão também aqui chegavam, para começar uma nova vida.
“Saímos de Frankfurt carregando apenas uma faca, uma colher e um garfo, cada um. Era somente isso que o governo permitia. Todos os bens tiveram que ser vendidos aos alemães a preços irrisórios. Mas, ainda assim, conseguimos partir e tivemos um destino muito melhor do que o de milhões de judeus que ficaram na Europa. Em 1941, conseguimos trazer minha avó materna para o Brasil..”. Infelizmente, dois tios morreram de tifo em Buchenwald, depois de serem presos na “Noite dos Cristais”, e seu sogro teve problemas de ouvido, decorrentes de uma forte infecção contraída no campo, que o acompanharam por toda a vida.