Encontrado no Arquivo dos Tribunais Federais, em Buenos Aires, o passaporte usado em 1950 por Ricardo Klement, codinome de Adolf Eichmann, para entrar na Argentina.
A Argentina tornou-se um poderoso aliado de Hitler, hospedando criminosos nazistas após a 2ª Guerra Mundial (1939-1945). Adolf Eichmann, o burocrata responsável pela "Solução Final do Povo Judeu", encontrou abrigo na rua Garibaldi, no bairro de San Fernando, na cidade de Buenos Aires.
Sob o nome falso de Ricardo Klement, foi descoberto pelo Serviço de Inteligência de Israel, o Mossad, e conduzido sem delongas a Jerusalém. Processado e incriminado, Eichmann foi enforcado, seu corpo queimado e suas cinzas jogadas no Mar Mediterrâneo.
Eichmann vira Klement
Encerrada a 2ª Guerra, Adolf Eichmann (1906-1962) fugiu da Europa em 1º de junho de 1950, usando um documento emitido pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha. Calcula-se que desde 1945, umas 500 mil pessoas obtiveram ajuda da Cruz Vermelha para reconstituir seus documentos, refazer suas identidades e procurar novos destinos. Um deles era Ricardo Klement, codinome adotado por Eichmann, natural de Tirol do Sul, na Itália, na condição de apólide, isto é, privado de cidadania, um sinônimo de apátrida. Com este documento recebeu autorização dos serviços de imigração do Consulado Geral da República Argentina para embarcar no navio "Anna C", rumo a Buenos Aires.
O passaporte de Eichmann foi encontrado no Arquivo dos Tribunais Federais, em Buenos Aires, pela juíza Maria Romilda Servini de Cubría, e entregue para sua guarda a Mario Feferbaum e Graciela Jinich, presidente e diretora do Museu do Holocausto, respectivamente. A juíza federal considera o passaporte do nazista um material de "inegable significado histórico para la Humanidad", e, portanto, nomeia o Museu do Holocausto de Buenos Aires depositário do falso passaporte de Eichmann.
O passaporte possui uma cor amarelada e está dobrado em quatro partes, em satisfatório estado de conservação. Na foto, aparece um homem quase careca, com óculos redondos, camisa, terno e gravata borboleta. Na descrição está escrito que o portador do passaporte possui "cabelo castanho, olhos claros e nariz regular". Ao lado da foto, com tinta vermelha, reparamos a impressão digital de um dos polegares.
O documento de Adolf Eichmann traz o nome de Ricardo Klement, profissão "técnico", nascido em Bolzano, na Itália, de pai desconhecido, e registra apenas o sobrenome de sua mãe. Com carimbo consular, é assinado pelo vice-cônsul Pedro Solari Capurro, que o corroborou. O nazista Eichmann consegue ingressar na Argentina graças a uma permissão de "libre desembarco" da Direção Geral de Imigração, nº 64.739. Nas observações do texto foi registrado em espanhol: "con documentación deficiente". O passaporte tem data de 14 de julho de 1950, do "año del Libertador General San Martín".
Onde estava guardado o passaporte de Eichmann? Como veremos a seguir, o documento ficou arquivado no Fórum, junto a um processo iniciado por Veronika Catalina Liebel de Eichmann, após a captura do seu esposo em Buenos Aires.
Os papéis foram resgatados a partir de uma requisição feita pela estudante Maria Galván, da Universidade San Martín (Mendoza), que os solicitou para sua tese de mestrado. O processo ao qual fazemos menção, iniciado em 1960, é um expediente que correu na Primeira Vara Criminal e Federal, no 1º Distrito da Capital Federal, presidida pela juíza Servini de Cubría, e antecedida pelo Juiz Leopoldo Isurralde. Trata-se de um processo litigioso movido pela esposa de Eichmann pelo seqüestro de seu marido. Atualmente, o passaporte do carrasco está guardado a sete chaves no Museu do Holocausto, em Buenos Aires.
Eichmann na Argentina
Durante a 2ª Guerra Mundial, a Argentina foi uma das nações que mais apoiou o regime nacional-socialista de Adolf Hitler, na América do Sul. Apesar disso, durante os seis anos de guerra, o país se declarou neutro no confronto entre os Aliados (EUA, França, Reino Unido, Canadá, China e Brasil) e o Eixo (Alemanha, Itália e Japão). Porém, é preciso enfatizar que a atuação da Argentina foi de fato mascarada, pois ela foi conivente com a causa nazista. É sabido que a Argentina foi o último país a decretar o fim de suas ligações com o Terceiro Reich. Somente em 1944 anunciou o rompimento das relações diplomáticas com o Estado alemão. Ainda assim, durante vários anos após o final da guerra, o governo argentino continuou a servir a Hitler e seus comparsas, criando operações estratégicas para a entrada de nazistas em seu território. Enquanto o conflito acontecia, a Argentina estava imersa em conturbada situação política. O ápice desse tumulto foi o golpe militar encabeçado pelo oficial Arturo Rawson, no dia 4 de junho de 1943, que tirou Ramón Castillo do poder.
Esta manobra foi feita com auxílio do general Pedro Pablo Ramirez e da ordem fascista, Grupo de Oficiais Unidos (GOU). Rawson chegou a se sentar na poltrona de presidente, mas seu cargo logo foi ocupado por Ramirez, um de seus aliados no golpe. A partir daí, a Argentina iniciou um processo de combate contra qualquer manifestação considerada comunista, como uma forma de apoio às idéias do Führer, que, como mais tarde seria descoberto, incluía a expansão do território nazista na América Latina, anexando inclusive os países à Alemanha. A sinistra manobra também envolvia a conquista do Brasil.
Até 1944, o governo argentino auxiliou as forças alemãs no cenário de guerra, através de operações secretas. Comprometido em adotar uma posição militar neutra, o governo populista de Ramirez movimentou-se nos bastidores do conflito global. Assim, o país conseguiu desempenhar um papel tático crucial no teatro da guerra e prover aos nazistas os suprimentos necessários para a manutenção de sua indústria armamentista. Esses suprimentos eram enviados para a Europa através de embarcações camufladas, para não despertar a atenção das forças aliadas. As operações foram encerradas quando o general Edelmiro Farrell assumiu a presidência, em fevereiro de 1944. Sua primeira atitude no governo foi retomar as relações diplomáticas com os Estados Unidos e bloquear a ajuda pirata a Hitler. Enquanto a Argentina trocava de chefe de Estado, o coronel Juan D. Perón (1895-1974) arquitetava planos para chegar à Casa Rosada, sede do governo.
Seu primeiro cargo no governo Ramirez havia sido o de secretário do Ministério da Guerra. Astuto e ambicioso, Perón comandou sua escalada ao poder, galgando os cargos de ministro do Trabalho, ministro da Guerra e vice-presidente da República. Em 24 de fevereiro de 1946 foi eleito, pela primeira vez, presidente da Argentina, sendo reeleito em 1951. Sua longa permanência no comando foi definitiva para pôr em prática seus planos de transformar a Argentina em refúgio dos nazistas, na esteira da 2ª Guerra.
A operação para resgatar nazistas, ao término do conflito, teve início com o trabalho de dois argentinos, ambos com dupla nacionalidade e ligados a Perón. Um foi Carlos Fuldner (1910-1992), ex-capitão do comando nazista na Alemanha, e o segundo foi Charles Lesca (1887-1948), filho de franceses nascido na Argentina, amigo de Perón desde 1930.
Em 1945, Fuldner viajou à Espanha para programar suas operações pró-nazistas e depois voltou a Buenos Aires. Três anos mais tarde partiu para Madri como agente especial de Perón, cabendo-lhe a tarefa de montar escritórios de resgate de criminosos na capital espanhola e nas cidades de Gênova e Berna. Um de seus maiores trunfos foi dar passagem clandestina para a Argentina a ex-nazistas, com o apoio do Vaticano.
Lesca, por sua vez, foi pioneiro ao organizar, em Madri, a primeira rota de fuga de nazistas para a Argentina. Na Casa Rosada o esquema era controlado pelo chefe do serviço secreto, Rodolfo Freude, secretário particular de Perón. Este plano ganhou força no final de 1946, quando o Vaticano entrou na operação para ajudar os fascistas a se refugiarem no país. O Vaticano foi o responsável pela tarefa de providenciar passaportes com nomes falsos aos fugitivos.
A partir de 1947, os EUA cessaram sua caça aos nazistas. Com a Guerra Fria em andamento, os países ocidentais abandonaram a perseguição aos criminosos que havia se refugiado no leste europeu. Dentre os nazistas mais influentes do Terceiro Reich, ninguém esteve tão ligado à elaboração e execução da Solução Final para o Povo Judeu como Adolf Eichmann.
Nem mesmo Herman Goering, a quem Hitler confiara a "Questão Judaica" (Judenfrage), se ocupou tão ativamente da mesma, deixando para si apenas a confiscação de bens dos judeus deportados. Acabou suicidando-se na prisão durante o Julgamento de Nuremberg.
Esse tribunal militar julgou também Ernest Kaltenbrunner, superior de Eichmann e substituto de Reinhard Heydrich, diretor do RSHA (Escritório Central de Segurança do Reich). Mas, o depoimento de Kaltenbrunner não forneceu informações esclarecedoras, ainda que seu departamento (4º Departamento da Gestapo) estivesse encarregado de executar aquelas ações que conduziriam ao extermínio da maior parte dos judeus da Europa.
Muitos foram os dirigentes e funcionários nazistas que ocuparam altos cargos no RSHA, o escritório encarregado pelo assassinato dos judeus, porém quase todos preenchiam funções secundárias na Solução Final. Apenas Eichmann tomava as decisões na execução tática e nos pormenores da liquidação dos judeus. Portanto, seu trabalho não teria sucesso se não conhecesse o desenvolvimento estratégico de seus próprios passos.
O plano de extermínio dos judeus empreendido pelo Terceiro Reich é conhecido em seus mínimos detalhes. O que ainda hoje está sujeito a fortes especulações teóricas é a origem das iniciativas básicas, das decisões finais e de seus desdobramentos. Os vários documentos desvendam um detalhado plano de ação a ser seguido, mas não permitem descobrir a seqüência no complexo conjunto de responsabilidades que cabia aos homens de Hitler. A rigor, o Führer imagina e decide as ordens (sem nada assinar), e seus subordinados as executam.
O Mossad descobre Adolf Eichmann
O Mossad sabia perfeitamente que Eichmann havia adotado uma falsa identidade. Esta estratégia era bastante comum entre os nazistas fugitivos. A falsa identidade permitiu ao ex-chefe de Assuntos Judaicos do Terceiro Reich passar alguns anos tranqüilos, na Argentina. Primeiramente, ele se instalou na pequena província de Tucumán, trabalhando na Capri, uma empresa de engenharia que costumava empregar nazistas.
Em 1952, por meio de contatos secretos, Eichmann consegue trazer sua família à Argentina. Oito anos depois, trabalhava na empresa automotiva alemã Mercedes Benz e morava numa modesta casa na rua Garibaldi, no bairro operário de San Fernando.
O plano para a captura de Eichmann começou por volta de 1957 e o Mossad demorou mais de dois anos para determinar se Ricardo Klement era, de fato, o nazista Adolf Eichmann. Em 25 de maio de 1960, a Argentina completava 150 anos de sua independência da Espanha. Em 1º de maio, chega a Buenos Aires uma delegação israelense para as comemorações. Naquela hora, prestigiar as comemorações era um ótimo pretexto para iniciar a operação Átila, cujo objetivo principal era caçar Eichmann.
A equipe israelense responsável por sua captura foi liderada por Rafi Eitan (hoje com 82 anos) e coordenada por Peter Malkin (1928-2005). A vigilância da casa do nazista era permanente. Finalmente, em 11 de maio de 1960, as 20h00, após Eichmann ter descido de um ônibus na volta do trabalho, os homens do Mossad o seqüestraram.
A operação não foi fácil. O Mossad alugou uma casa para manter Eichmann escondido até o dia do embarque. A equipe foi acrescida de um médico, uma cozinheira e até um fotógrafo, este último encarregado de documentar tudo o que era feito na Argentina. Após manter o nazista em cativeiro durante nove dias, ele foi sedado e vestido como mais um integrante da tripulação da empresa aérea israelense El Al. Finalmente, foi transportado ao aeroporto e colocado no avião que seguiu rumo a Tel Aviv.
A primeira pessoa a denunciar o seqüestro foi sua mulher, Veronika Liebel Eichmann (1909-1997), que admitiu oficialmente que Klement era Eichmann. Esta denúncia, feita em 12 de julho de 1960 diante das autoridades argentinas, informava o seguinte:
"El 21 de mayo de 1935 contraje matrimonio con Otto Adolf Eichmann, como surge de la partida que acompaño. El 28 de julio de 1952 ingresé al país en el que ya se encontraba mi esposo desde 1950; quien ingresó con pasaporte extendido por la Cruz Roja Internacional. Mi esposo trabajó y se desempeñó en la vida de relación bajo el nombre de Ricardo Klement conforme al pasaporte de referencia. Comprendo también que con esta presentación y la manifestación que efectúo despejo cualquier duda sobre si Ricardo Klement era o no Adolfo Eichmann y que en consecuencia lo identifico. Lo hago segura de que por su parte él no niega su nombre y afrontará su responsabilidad como yo asumo la mía trayendo a la Justicia el conocimiento de los hechos".
O documento assinado pela mulher de Eichmann é claro: admitia que Ricardo Klement era efetivamente Adolf Eichmann, o homem tão procurado por Israel. Os agentes do Mossad que participaram da captura revelaram, anos depois, que Eichmann jamais negou ser quem realmente era. O espião Hermann Arndt relatou que quando Eichmann foi colocado na camionete, disse a ele: "No objete nada, no se defienda, no hace falta. Pero si Usted hace algo mal, lo matamos". Ao escutar estas palavras, Adolf Eichmann ficou calado e ele, então, gritou: "No me escucha? Puede oírme? En que idioma habla? Le hablo em español, en alemán, y no tengo respuesta". Naquele momento, o agente do Mossad pensou que o nazista havia tido um ataque ao coração, mas de repente Arndt escutou em alemão, "Estou resignado a meu destino".
Ao saber que seu marido fora retirado do país de forma irregular, Veronika Liebel Eichmann, longe de estar resignada, parecia decidida a aproveitar o conflito que se gerava entre Argentina e Israel. Ela afirmou que seu marido havia sido seqüestrado na rua Cabildo, à altura da avenida General Paz, depois de ter descido do ônibus que o transportava desde o estabelecimento onde trabalhava. Ela citava constantemente, el agravio inmerecido cometido contra la soberanía nacional", manifestando, também, a idéia que "conforme al derecho, Eichmann solo puede ser juzgado en el lugar en el que habría cometido los hechos por los que debe responder, o bien por el tribunal internacional que ha juzgado casos similares luego de la victoria de los Ejércitos Aliados".
O juiz argentino, Leopoldo Isurralde, decidiu arquivar o dossiê Eichmann até o final de 1962. Para efetuar o dito arquivamento declarou que os esforços para localizar as pessoas que, de uma forma ou outra, estariam envolvidas no seqüestro, tinham sido em vão. Por que uma afirmação como essa por parte da justiça argentina?
Durante anos, o governo de Israel afirmou que a operação de captura a Eichmann havia sido realizada por "voluntários". Em 1959, o presidente Arturo Frondizi (1908-1995) se desentendeu com o governo de Ben-Gurion. A Argentina argumentava que os nazistas cometeram crimes políticos que já estavam prescritos. Falar em "voluntários" era um bom pretexto para abafar a repercussão mundial surgida após as queixas do governo argentino. Somente em 2005, o Estado judeu reconheceu oficialmente que a operação Átila foi feita por uma unidade especial do Mossad. As relações diplomáticas entre Argentina e Israel sofreram um desgaste, mas gradativamente foram-se normalizando.
Considerações finais
Após décadas de omissão no caso dos nazistas, o governo argentino finalmente decidiu ir a público e pedir perdão por ter colaborado com os criminosos de guerra. Em 14 de junho de 2000, o então presidente Fernando de la Rua foi a Washington (EUA), para pagar "uma antiga dívida da Argentina com a História".
Em seu discurso na presença do então presidente Bill Clinton, o chefe do governo argentino declarou: "Quero pedir perdão, em nome de meu país, pelos criminosos nazistas que entraram na Argentina e se esconderam entre nós. Hoje, diante de todo o mundo, desejo expressar meu mais sincero pesar e dizer que lamento muito isso ter acontecido".
Assim, a Argentina encerrava seu acerto de contas com a história judaica.