A festa de Pessach comemora a transição do Povo Judeu da escravidão para a liberdade. Ano após ano, contamos no Seder de Pessach a história relatada pela Hagadá: Os egípcios escravizaram nossos antepassados, D’us interveio golpeando o Egito com as Dez Pragas e isso forçou o Faraó a libertar todos os judeus. Isso resume a história do nascimento do Povo Judeu, de forma bem sucinta.

Uma pergunta óbvia levantada pela história de Pessach é por que foi necessário que D’us punisse o Egito com dez pragas se certamente bastaria um único golpe vigoroso. Se as pragas serviram de castigo pela escravidão, a crueldade e o genocídio perpetrado pelos egípcios, por que razão D’us não acabou com o Egito com uma única praga, duradoura e mortal?

Uma interpretação mais fiel do relato da Torá sobre a história de Pessach revela que as Dez Pragas serviram a uma função mais básica: desacreditar os deuses egípcios de modo que “vocês saibam que Eu sou D’us”. Em outras palavras, o verdadeiro propósito das Dez Pragas não foi punir o Egito e libertar os judeus – já que uma única praga poderia dar conta disso –, mas ensinar uma lição fundamental aos Filhos de Israel, que estavam em vias de se tornar uma nação.

Sabemos que os egípcios adoravam a Natureza, e praticamente não há dúvidas de que os judeus também sofriam a influência dessas crenças. Uma das divindades mais reverenciadas no Egito era o Rio Nilo, pois era a fonte de subsistência do país. Os egípcios eram um povo culto e sofisticado e alguns deles eram poderosos feiticeiros – mas eram todos pagãos, não transcendentalistas. E, como pagãos, acreditavam que as coisas eram como deviam ser: no mundo apenas havia causa e efeito, sem lugar para anomalias. Reverenciavam a Natureza. Seus feiticeiros podiam manipulá-la, de alguma forma: a própria Torá relata que eles conseguiam fazer as águas virarem sangue. Mas eram politeístas que atribuíam poderes divinos aos fenômenos naturais, aos animais e aos seres humanos. O Faraó recusava-se a aceitar o monoteísmo e o conceito de um D’us que transcende o mundo físico.

Em contraste aos pagãos, os transcendentalistas apenas cultuam D’us. O judaísmo ensina que somente há um D’us Único, e que não há nada, absolutamente, além d’Ele. D’us é a única Realidade; a existência de cada um de nós e de cada coisa que existe é completamente dependente d’Ele. Assim sendo, de acordo com o judaísmo, as leis da Natureza são simples ferramentas nas mãos de D’us. Ele criou a Natureza e suas leis de modo a que seu funcionamento seja ordenado. Em uma analogia simplista: D’us emprega as leis da Natureza como um escritor se utiliza das leis da gramática. Elas são necessárias para manter a ordem, mas às vezes podem ser quebradas, particularmente quando o autor deseja chamar a atenção do leitor. D’us age de maneira semelhante: Ele geralmente governa o Seu mundo segundo as leis da Natureza, mas quando deseja acordar os seres humanos, propositalmente as quebra. Isso é o que o judaísmo define como milagre. O judaísmo ensina que o propósito dos milagres é nos fazer lembrar que há Alguém além do mundo físico e de seus fenômenos naturais.

A Cabalá nos ensina que D’us tem diferentes Nomes. Cada um deles representa uma diferente manifestação Divina no mundo. Dois de Seus Nomes aparecem com frequência na Torá. Um deles é Elo-him. O outro é o Tetragrama. Nossos Sábios comentam que o Nome Elo-him tem o mesmo valor numérico que a palavra hebraica HaTeva – a Natureza. Quando D’us Se manifesta por meio das leis da Natureza – pôr do Sol, nascer do Sol, por exemplo – Ele Se manifesta como Elo-him. Quando Ele viola as leis da Natureza – quando ocorre um milagre – Ele está agindo como o Tetragrama. Os egípcios eram pagãos, mas não eram descrentes: acreditavam em inúmeras divindades e também em Elo-him – um D’us iminente, mas não transcendente. Eles não acreditavam em um D’us transcendental, infinitamente além da Natureza.

Considerando o acima exposto, podemos entender a necessidade das Dez Pragas. Se D’us tivesse pretendido arrebentar o Egito, Ele, o Onipotente, teria aniquilado instantaneamente todos os egípcios. Se fosse sua intenção puni-los, Ele poderia tê-lo feito com uma única praga terrível e duradoura. A razão para as Dez Pragas foi que, enquanto escravos, os judeus tinham sido muito influenciados pelo Egito e seu povo; e, portanto, precisavam aprender que a Natureza é um mero pincel nas mãos do Artista Supremo. D’us virou as leis da Natureza de cabeça para baixo para mostrar aos judeus – e para ensinar à humanidade – que Ele não está limitado pelas próprias leis por Ele criadas. O judaísmo admite que D’us geralmente age segundo as leis da Natureza. De outra forma, o mundo seria caótico. Imaginem se a lei da gravidade parasse de existir ou fosse aplicada apenas de forma intermitente. Imaginem um mundo onde a órbita do sol fosse randômica e irregular. Mas o judaísmo também ensina que as leis da Natureza não são absolutas e imutáveis, pois são meras ferramentas Divinas, sempre sujeitas à vontade de D’us.

Não é coincidência o fato de as Dez Pragas terem visado àquilo que os egípcios endeusavam. O Nilo – divindade preferencial – vira sangue. O solo se reveste de animais peçonhentos. Dos céus cai um dilúvio de granizo que contém fogo. A luz do dia se transforma em total escuridão. À medida que as pragas se abatem sobre o Egito, seu povo percebe que a Natureza é subitamente transformada de uma divindade confiável em vilã caprichosa, imprevisível e perigosa. De repente, a Natureza, que eles adoravam, se virava contra eles, e, mais estranho ainda, não contra os judeus.

Compreender que a Natureza nada mais é do que uma ferramenta Divina foi de crucial importância para o Povo Judeu. Tirar os judeus do Egito não significaria a verdadeira liberdade se eles tivessem levado o Egito com eles. Eles teriam sido escravos em fuga, doutrinados por seus senhores e por uma cultura pagã. Remover os judeus do Egito não teria sido a verdadeira liberdade. Foi necessário também remover o Egito que havia dentro dos judeus. E para fazê-lo, os judeus tiveram que testemunhar a destruição dos deuses egípcios: tiveram que ver que o paganismo egípcio era um blefe e que a verdadeira Divindade no mundo não está limitada nem pela Natureza nem por nada mais.

Somente quando o paganismo do Egito foi realmente arrancado de seu coração, os Filhos de Israel puderam seguir para o Monte Sinai e ouvir a Voz de D’us e receber a Torá. E somente então eles entenderam – e puderam ensinar ao mundo – que a Natureza não deve ser cultuada, e que aquele que o faz está trocando os meios pelos fins. Os judeus tiveram que entender que o mundo e tudo que ele contém – mesmo as mais confiáveis leis da Natureza – são apenas a tela, a tinta e o pincel nas mãos de um Artista Infinito, Onipotente e Onipresente.

Uma das lições fundamentais das Dez Pragas é a que diz que quem adora as leis da Natureza – e não importa, realmente, se for um egípcio pagão ou cientista ateu – não é uma pessoa realmente livre, pois não deixa espaço para o inesperado – para uma intervenção Divina que viole as leis da Natureza.

Como mencionamos acima, e isso deve ser repetido tantas vezes quantas necessário for: o judaísmo não rejeita as leis da Natureza nem recomenda uma solução celestial para cada problema. Rejeita, sim, qualquer forma de panteísmo, inclusive a crença de que D’us é a Natureza e a Natureza é D’us.

O judaísmo ensina que é D’us e não a Natureza quem dita de que maneira o mundo funciona. A Torá ensina que D’us é tanto iminente quanto transcendental: Ele é encontrando na Natureza, que Ele criou e constantemente mantém, mas Ele também Se encontra infinitamente além da mesma.

A festa de Pessach celebra a passagem da escravidão para a liberdade. A formidável história que lemos durante o Seder nos ensina que o primeiro passo para a liberdade é uma visão e um entendimento mais precisos do funcionamento do mundo. Todos os que rejeitam o transcendental – que apenas creem no material e não no espiritual, e que não podem ou não querem reconhecer a falibilidade das leis da Natureza – ainda não alcançaram a verdadeira liberdade interna. Independentemente de que religião organizada a pessoa siga, essa pessoa apenas se torna verdadeiramente livre quando ela descobre que sua vida – e o mundo, em geral – não é ditada pelas inflexíveis e imperdoáveis leis da Natureza, mas por um D’us Infinito e transcendental, que, em Sua Infinita Sabedoria, dobra e flexiona as leis da Natureza segundo a Sua Vontade.

A divisão do Mar

Lemos na Hagadá de Pessach que, apesar das Dez Pragas enviadas sobre o Egito, nosso povo não ficou livre ao sair desse país. Conta-nos a Torá, no Livro Êxodo, que após a décima e última praga, o Faraó permitiu que os judeus deixassem aquele país, mas ele mudou de ideia e ordenou a seu exército que fosse atrás deles e os trouxesse de volta.

Os judeus adquiriram a liberdade física do Egito uma semana após o Êxodo, no episódio do Mar de Juncos, quando as águas dividiram-se, por milagre – permitindo que os judeus cruzassem o mar em terra seca, para depois retornar a seu estado anterior, afogando os egípcios.

São claras as diferenças entre as Dez Pragas que se abateram sobre o Egito e a divisão do Mar. Quando os Filhos de Israel estavam no Egito, Moshé e seu irmão Aaron, emissários de D’us, confrontaram o Faraó e seus feiticeiros e soltaram as pragas contra os egípcios, enquanto o restante dos judeus olhava passivamente o desenrolar dos milagres. No entanto, no episódio da divisão do Mar, todos os judeus foram colocados diante de um grande teste de fé. Eles tinham fugido do Egito, mas o exército desse país os tinha alcançado. Eles tinham sido pegos numa emboscada: diante deles estava o Mar de Juncos, profundo e intransponível, e atrás dele estavam poderosas forças armadas, prontas para capturá-los e matá-los.

A Torá nos conta que Moshé, diante de uma situação aparentemente impossível, clamou a D’us por ajuda. Mas em vez de responder com um milagre, como fizera no Egito, D’us o censura: “Por que clamas a Mim? Diz aos Filhos de Israel que sigam adiante!”.

Mas como poderiam avançar quando havia aquele mar colossal diante deles? Note-se que Moshé não faz essa pergunta e D’us tampouco lhe dá instruções. D’us apenas lhe diz para seguirem adiante, e assim eles o fizeram. Aqui segue o próximo passo para a verdadeira liberdade: esta é adquirida não apenas abraçando-se o transcendental, mas também quando se consegue seguir em frente, apesar dos contratempos aparentemente impossíveis de serem vencidos.
A liberdade é a crença de que se D’us dá uma ordem, Ele dará ao homem os meios para cumpri-la.

Quando D’us diz a Moshé para ordenar que os judeus sigam em frente, o profeta levanta seu cajado – o mesmo que ele usara no Egito para desencadear as pragas – mas nada acontece: o mar continuou como estava, assim como o exército egípcio. Não se viu salvação nem milagre algum. Finalmente, um homem de nome Nachshon ben Aminadav, líder da Tribo de Judá, se atira no mar. Foi avançando com dificuldade pela maré alta até que as águas chegaram à sua cintura, depois ao seu peito e aos seus ombros.

Finalmente, quando as águas chegaram às suas narinas, o Mar de Juncos se dividiu e os Filhos de Israel o seguiram.

O Midrash cita várias razões pelas quais o Povo Judeu mereceu que o Mar se dividisse. Segundo alguns de nossos Sábios, isso ocorreu pelo mérito da profunda fé e confiança inabalável de nossos antepassados em que D’us os protegeria. Em outras palavras, o Mar se dividiu porque os judeus tinham fé.

Qual a conexão entre fé em D’us e a divisão do Mar? O que foi discutido sobre a Natureza esclarece esse assunto. A Natureza – como os egípcios descobriram depois de muito sofrimento – está sujeita a mudanças radicais. É muito mais imprevisível do que pensa a maioria das pessoas. De fato, todas as coisas criadas, que vivem dentro dos limites do tempo, estão sujeitas à mudança. Até mesmo as rochas estão sujeitas ao desgaste. O homem, também, está sujeito a constantes mudanças. Como ensinou o Maharal de Praga, a única constante em nosso mundo em constante transformação é D’us.

O homem, no entanto, tem a oportunidade de copiar D’us. Nossa fé e confiança n’Ele, quando são reais e não meras palavras vazias, manifestam uma medida de Seu caráter imutável. Em outras palavras, quando verdadeiramente temos fé em D’us, de certa forma personificamos o Divino.

Quando o Povo Judeu se aproximou das águas com fé em D’us, as águas perceberam neles uma medida do Divino. Como um ser criado – no caso, o Mar de Juncos – não pode opor-se ao Criador, esse ser instintiva e espontaneamente recua perante o povo que personifica o Divino.

Ao compor o Salmo 114, o Rei David referia-se a isso. Vejamos: “Viu-os o Mar e fugiu...”. O Midrash pergunta: O que viu o Mar e de quem fugiu? E responde: Viu divindade refletida no braço estendido de Moshé, e fugiu de sua posição como um obstáculo no caminho de D’us.

Mas isso levanta uma pergunta óbvia: Por que o Mar esperou que Nachshon ben Aminadav se atirasse n’água, até que esta chegasse às suas narinas, para retroceder? A resposta é que o Mar estava esperando que o Povo Judeu expressasse sua fé por meio da ação. Acreditar em D’us – mesmo com fé e confiança genuínas – não era suficiente. O Mar exigia uma demonstração externa de sua fé. Era necessário que alguém a pusesse em prática.

A fé é uma qualidade da alma. Nós, judeus, somos chamados de “pessoas de fé, filhos de pessoas de fé”. A fé em D’us sempre existe dentro de nós, mesmo dentro daqueles que a neguem e tentem lutar contra ela. Mesmo quando alguém tenta negar sua fé, sua alma continua a crer. Mas D’us não se satisfaz com a fé interior oculta. A fé tem que ser exercida. Tem que levar à ação. Não basta crer: é preciso agir de acordo com suas crenças, especialmente quando estas estão dentro da essência da pessoa. D’us nos desafia a atiçar as chamas de nossa fé silenciosa para que ela possa desenvolver-se.

A fé que permanece oculta no coração de alguém é silenciosa. Não tem como impactar o mundo físico a não ser que seja expressa na prática. Foi por esta razão que as águas do Mar de Juncos aguardaram – aguardaram até que os judeus dessem expressão física à sua fé. Nachshon ben Aminadav, líder da tribo de Judá, ancestral do Rei David e do Mashiach, personificou a liderança: adentrou nas águas do Mar sem esperar por um milagre, expressando, assim, a fé que o povo tinha dentro de seu coração. Ao assim fazer, mesmo arriscando a vida, as águas se dividiram.

A fé está muito entrelaçada com a verdadeira liberdade. Chegam mesmo a ser sinônimos na medida em que dá ao homem a força e a determinação de agir apesar dos obstáculos – reais ou imaginários. Todo ser humano é capaz de atingir o nível de devoção expressa por Nachshon ben Aminadav, pois quando o homem decide realizar a Vontade de D’us – fazer o que é certo neste mundo – D’us lhe fornece a maneira de vencer os obstáculos.

Pessach – festa da liberdade – nos ensina que se um judeu está seriamente comprometido a andar pelos caminhos de D’us, da Torá, da justiça e da honradez, o Altíssimo lhe dará a força e a possibilidade de assim o fazer. Como no Mar de Juncos, os obstáculos recuarão, cedo ou tarde, permitindo-lhe uma passagem livre e desimpedida.

BIBLIOGRAFIA
It’s Only Natural - Rabbi Yanki Tauber
http://www.chabad.org/holidays/passover/pesach_cdo/aid/488310/jewish/Its-Only-Natural.htm
Split Your Sea - Rabbi Lazer Gurkow
http://www.chabad.org/holidays/passover/pesach_cdo/aid/355840/jewish/Split-Your-Sea.htm