As capoeiras de frangos começavam a chegar com um mês de antecedência. As aves iriam crescer, engoradar, para serem sacrificadas todas de uma vez em Yom Kipur.

Para Kipur, os preparativos culinários começavam com a entrada dos frangos, que, liberados das capoeiras, se soltavam no quintal em algazarra de cacarejos. Nunca se sabia ao certo antecipadamente quantos iriam ser submetidos às “caparot”. Às vezes entrava na conta um casal de franguinhos, se uma filha casada estivesse gestante. Mais dois ou três galos, para parentes solteiros. E sempre o infalível “galo do seu Jacob”. Nós o esperávamos com ansiosa curiosidade, e só o traziam, propositalmente, no último instante, para causar o efeito de uma apoteose triunfal. Era uma ave enorme, arrogante, cabeça erguida coroada pela túmida crista vermelha que lhe dava imponência real, acentuada pelo manto da plumagem de brilhante matiz. Levado ao quintal, tomava logo um ar altaneiro, dando voltas para reconhecer o chão em que pisavam seus pés fortes de dedos grossos e esporões protrusos. Sentindo-se de pronto senhor do terreiro, inflava o peito, estremecia de júbilo e, de bico desmesuradamente aberto, mandava aos ares um cocoricó reboante. Os outros galos se acovardavam, escondiam-se pelos cantos. As galinhas, fascinadas, brigavam entre si, disputando-o, e ele, se por simpatia ou insistência de alguma a cortejava, nem sequer lhe arrastava as asas, a cobria de um salto, com certo desdém, e crivava-lhe de bicadas sadistas a cabeça indefesa. Largava-a com o mesmo impulso brusco com que a tomara e, de novo impávido, exibia seu canto de homérica ressonância.

Com tanta beleza e galhardia, “o galo do seu Jacob” merecia um pedestal que glorificasse a nobreza da sua estirpe. Seu destino porém era outro. Como qualquer galináceo seria sacrificado em benefício de alguém, à véspera de Yom Kipur. Agarrado à força, debater-se-ia algum tempo, até que mãos firmes conseguissem sujeitá-lo. O “shochet” o ergueria, admirando-o primeiro com fuga emoção, e logo, inexorável, o faria rodar três vezes sobre a cabeça daquele por quem o imolava – “Zê, capará zê...”. Piedosamente lhe esconderia a crista altiva entre as asas coloridas, despia-lhe o pescoço das plumas que o guarneciam e, na pele nua, passava num golpe certo e fundo a navalha afiada. Jogava-o, então, ainda estrebuchante, para baixo de uma enorme bacia emborcada, onde jaziam seus irmãos plebeus.

Vinha depois a depenagem de todas as galinhas, a seco, procedida durante longas horas. Já limpas, a maior parte das aves deveria ser frita, para melhor conservação, naquele tempo em que não se conheciam refrigeradores. Durante dias, na casa e no quintal, onde crepitavam as brasas dos fogareiros, o cheiro de frituras ensebava o ar. Agora eram as galinhas que seriam servidas na tarde de “tomar Taanit”, no jantar depois do Kipur e, nos seguintes, até quando não mais as suportávamos. Uma semana antes, haviam sido as “fijuelas”, cascalhos deliciosos de massa de pastel frita, próprios para quebrar o “Taanit”. Elas surgiam das panelas de azeite douradas, leves, salpicadas de bolhas de ar, enroladas como peças de fita larga, apetitosas, e mais apetitosas ainda depois de embebidas na calda perfumada com água de flor de laranja e polvilhadas de canela. Que suplício de Tântalo para nós, crianças, vê-las, tocá-las, mas como “era pecado comê-las antes do Kipur”, nem sequer prová-las.

Kipur era o grande acontecimento. Todos os homens vestiam-se a rigor. Nosso avô materno, David Benoliel, e outros senhores do mesmo nível sinagogal ou etário, envergavam sobrecasaca e cartola. As mulheres ostentavam um luxo exagerado e carregavam em si quanta jóia pudessem exibir, enfiadas em dedos e braços, penduradas nas orelhas e pescoços, emplacadas no peito. Kipur era um longo dia, marcado por emoções várias, mudáveis no correr das horas. Pela manhã, sorrisos serenos, olhares de beatitude. Os homens “meldavam”* alacremente, em altas vezes, muitas vezes emendando, corrigindo uns aos outros, em atmosfera fraternal. As mulheres, que não sabiam ler hebraico e na sinagoga representavam apenas figura de realce, conversavam sobre os mais diversos assuntos mundanos e só faziam silêncio à passagem do Sêfer. Então levantavam-se e integravam-se nos rituais com três gestos rápidos – mãos estendidas para a Torá, mãos cobrindo os olhos, mãos sobre os lábios, beijando-as. Nessa curta contrição, dezenas de rogos lhes borbulhavam na mente. O milagre de que aparecessem noivos para as filhas, estava em primeiro lugar.

Kipur era assim em Belém do Pará, um dia de esperanças, de repouso espiritual e em que, realmente, se purgavam os pecados com a fome agravada pelo calor sufocante, a partir do meio-dia. Mulheres desmaiavam, sobretudo algumas recém-casadas, em lua-de-mel. Como elas esperavam que acontecesse, o marido vinha correndo socorrê-las – “Rebi Shimon, minha vida, me vá a capará por ti” – e o desmaio passava imediatamente. Entre os homens, as fricções se repetiam cada vez mais amiúde. Uns, ofegantes, se derreavam na cadeira, apáticos, e se irritavam com os que oravam em tom estridente. Nosso avô, versado nas leis mosaicas e dominando o hebreu perfeitamente, parecia se embalar nas cantilenas dos sefaradim e usufruir bem-estar que o mantinha sempre de bom humor. Seu “meldar” era solene, cadenciado, e quando alguém ao seu lado lhe feria os ouvidos, perguntava-lhe, espirituosamente – “Você compreende o que está lendo? Não? E por que grita?” O Kol Nidrei, na sua voz harmoniosa, estremecia em vibrações místicas, emocionantes, e no silêncio em que era ouvido, tinha-se a sensação de que um coro vindo do além o acompanhava. Mesmo entre os mais velhos, poucos tinham sequer noção do que significavam os textos daqueles livros de folhas gastas, tão manuseadas por gerações e gerações. Era o tempo em que não se imprimiam novos livros judaicos, ou que, pelo menos em Belém do Pará, só existiam aqueles trazidos um século antes pelos imigrantes sefaradim. No entanto, entendendo ou não, todos liam, e à proporção que as horas passavam, o vozerio ia-se adensando num bruaá que enervava os pusilânimes. Surgiam protestos, rinhas, discussões que chegavam às vezes a situações sérias. Enquanto apaziguava-se os contendores, os serviços eram interrompidos e logo mais reatados com a mesma contrição, qual se nada de anormal houvesse acontecido. O momento em que soava o “shofar” era sagrado e de extrema solenidade. Sufocavam-se as desavenças em respeito e fé. A vaidade de nosso pai, Eliezer Levy, então, era abrigar sob seu grande talet – como em uma tenda – os seis filhos varões e ainda algum futuro genro.

Foi por expressar num vozeirão vibrante todo o seu ardor judaico, só extravasado uma vez por ano, que seu Jacob nosso convidado, tradicional, sofreu a humilhação de ser mandado calar-se, de maneira para ele ofensiva. Revidou de modo a mais exasperar o outro, resultando numa troca de murros em que ambos saíram levemente feridos.

Nessa noite, nossa mesa que era tão alegre à hora de se quebrar o “Taanit” com as saborosas “fijuelas”, e animada pelas narrativas dos acontecimentos do dia, manteve-se em silêncio em respeito à mágoa do seu Jacob. Sentado no primeiro lugar, junto à cabeceira, ao lado do nosso pai, seu rosto ainda arroxeado, ele se queixava e se maldizia, em soluços. Não tocou em comida e nem sequer provou um pedaço de galinha, que bem podia ser seu “famoso galo”. E nós todos também perdemos o apetite, constrangidos pelo seu amargor. Seu Jacob não era um membro da família, era um estranho, mas um velho e respeitável amigo. Era, em verdade, parte das comemorações do nosso Yom Kipur. Para ele, Kipur era um encontro com os pais, com a infância, seu lar paterno, seus antepassados. Era a remissão do pecado que sempre o torturava, de se haver desviado do rebanho. Talvez, com essa triste ocorrência, temíamos, ele cortasse para sempre o único vínculo que o atava ao seu povo.

No próximo ano, quando um dos meninos anunciou exultante – “O galo do seu Jacob!”, que animação! Nem que um rei estivesse entrando em nossa casa...n

Sultana Levy Rosenblatt
Virgínia, Estados Unidos