O historiador carioca fabio koifman, em seu livro ‘quixote nas trevas’, conta a vida do embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas, chefe da representação brasileira na França, de 1922 até 1943. Durante o Holocausto, movido pelo que mais tarde chamaria de -sentimento de piedade cristã-, Souza Dantas desafiou o Terceiro Reich e as diretrizes da política externa ditada pelo presidente brasileiro Getúlio Vargas, para ajudar judeus e outras vítimas do nazismo.
Este fato, desconhecido até mesmo pela maioria de seus contemporâneos, foi o tema da tese de mestrado de Koifman, diretor de Pesquisas na Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro. Na edição 21 da revista Morashá, Fabio Koifman já havia delineado os planos de sua tese sobre a atuação do diplomata brasileiro, um trabalho que lhe consumiu vários anos de pesquisas, 55 entrevistas com 30 horas de duração e consultas a cerca de 8.000 documentos. Em três anos de pesquisa, Koifman descobriu que Dantas não se limitava "a dar vistos". Muitas vezes, o embaixador conseguia documentos de viagem através de seus amigos em outras representações diplomáticas, como os cônsules de Cádiz, na Espanha, e Casablanca, no Marrocos.Todas estas descobertas levaram, em 2003, o Instituto e Museu do Holocausto Yad Vashem, em Jerusalém, a oficialmente conceder a Souza Dantas o título de "Justo entre as Nações", por seu empenho pessoal na emissão de centenas de vistos durante os anos mais duros da repressão nazista na Europa.
A tese se transformou em um livro de leitura obrigatória. Nele é apresentada uma lista inédita, com os nomes de cerca de 800 pessoas, 425 dos quais judeus, salvos por Souza Dantas enquanto trabalhava na embaixada brasileira em Vichy. Entre eles, estão o ator e diretor teatral Zbigniew Ziembinski, que viveu no Brasil durante vários anos e contribuiu para engrandecer o teatro brasileiro, e o homem da noite e empresário Oscar Ornstein, durante longos anos RP do Hotel Copacabana Palace, um dos organizadores do primeiro festival Rock in Rio, em 1985, e um dos grandes divulgadores do Brasil no exterior. A pesquisa foi um verdadeiro quebra-cabeça, já que a humildade e o humanismo do Embaixador fizeram com que ele não deixasse muitos documentos. Isto dificultou a tarefa de Koifman. Pacientemente, o autor da tese pesquisou nomes em listas de passageiros dos navios que aportaram no Brasil e organizou uma lista com milhares de potenciais portadores de vistos concedidos pelo embaixador, para, em seguida, ser cruzada com outros documentos encontrados nos arquivos do Itamaraty.
Resgate de um herói
Afinal, quem foi Luiz Martins de Souza Dantas, esse homem que arriscou sua vida e carreira para livrar as vítimas das garras dos nazistas? Quem foi esse senhor "convenientemente esquecido" pela história deste país e que não figura em nenhum livro-texto de História do Brasil?
Nascido no Rio de Janeiro, em 1876, descendente de uma das mais ilustres famílias do império, Luiz Martins de Souza Dantas - após seguir uma apreciável carreira política, durante vários anos, dentro e fora do Brasil, é nomeado embaixador na França, cargo que ocupa de 1922 até 1943.
Diplomata à antiga, um bon-vivant, apreciador das artes, da música, da boa comida e de lindas mulheres, é descrito por todos os que o conheceram como uma alma nobre e generosa. Impecável anfitrião dos brasileiros em Paris, era também um grande filantropo, sempre disposto a ajudar todos os que passaram por sua vida.
Solteirão inveterado, foi somente aos 57 anos, em 1933, que Souza Dantas decide casar-se com a viúva Elise Mayer Stern, que apesar da origem judaica, era católica, à época de casamento. Elise, ela própria dona de uma vultosa fortuna, era irmã da milionária Florence Blumenthal e de Eugene Meyer, que, naquele mesmo 1933, adquirira o então falido The Washington Post, transformando-o em um dos mais importantes jornais dos Estados Unidos. Como narra Koifman em seu livro, apesar de professar o catolicismo e se ter casado na igreja, Elise sempre foi vista com certo desprezo no meio diplomático, entre opositores e mesmo amigos de Dantas, por considerarem-na judia.
Diplomata experiente, dotado de grande inteligência e perspicácia, Dantas circulava entre os mais altos e restritos círculos diplomáticos. Cedo, compreendeu a catástrofe que estava prestes a se abater sobre a humanidade com a ascensão do nazismo. Como costumava dizer, aquela "era uma época de trevas e barbáries".
Quando eclodiu a Segunda Guerra, o Itamaraty já havia baixado uma série de leis e circulares que dificultavam a entrada no Brasil de pessoas "de raça semítica". Não cabe aqui uma análise profunda sobre a política brasileira da era Vargas em relação aos judeus. Mas é preciso lembrar que após a Revolução de 30, o Brasil adotara uma nova atitude em sua política de imigração, que até então não impunha restrições a judeus nem a japoneses. E que nos meios governamental e intelectual brasileiro, os judeus eram considerados indesejáveis. Desde 1930, o Brasil regulamentara a entrada de imigrantes por um sistema de cartas de chamada e cotas por nacionalidade. Apesar desses entraves, os judeus continuaram a entrar no Brasil até 1937. Na década de 1930, havia 40 mil judeus no país e, em 1940, eram 55 mil.
Com a sensível piora de sua situação na Europa, a partir de 1937, tornou-se cada vez maior o número de judeus que precisava abandonar seus países de origem. A aquisição de vistos de saída do continente europeu passou a ser questão de vida ou morte, especialmente durante a guerra, mas a política de imigração brasileira indicava o fechamento das fronteiras deste país para todos "racialmente" apontados como judeus.
Souza Dantas, apesar dessas proibições, decidiu agir de acordo com sua consciência, conseguindo passaportes e assinando pessoalmente os vistos. Com a ajuda do embaixador, vários judeus que iriam ter destaque na vida brasileira, conseguiram escapar. É o caso do ator Louis Jouvet, do grande marchand Leo Castelli, bem como de Ziembiski e de Oscar Ornstein, já mencionados acima.
Apesar da preocupação de Sousa Dantas ter sido anterior à transferência da embaixada brasileira de Paris para a cidade de Vichy, localizada mais à sudeste, os primeiros vistos "irregulares" apenas começam a aparecer nessa época. Suas atitudes não eram vistas com bons olhos nos meios governamentais. Enviou também inúmeras cartas ao governo brasileiro criticando Hitler, que, em suas palavras, "agia com a truculência de costume", e reafirmando seu repúdio ao nazismo. Em novembro de 1940, o embaixador foi advertido pelo Itamaraty para dar um fim às suas "concessões", fato que continuou ignorando, usando o artifício de datar retroativamente os vistos, de forma a serem anteriores ao recebimento da instrução. Além disso, escapou por pouco de ser alvo de um inquérito administrativo, pessoalmente instaurado por Getúlio Vargas, em outubro de 1941, e das penalidades que certamente daí resultariam. O processo só não foi concluído porque, no ano seguinte, o Brasil cortaria relações com a Alemanha, quando, então, o presidente decidiu abafar o caso.
Segundo Koifman, mesmo com a redução no número de judeus que entravam no Brasil, durante o ano de 1940 chegaram oficialmente ao país 2.416 judeus, contra os 4.601 chegados no ano anterior. Em janeiro de 1941, o governo tenta coibir ainda mais a entrada de judeus, com a circular assinada por Oswaldo Aranha que suspendia "as concessões de vistos temporários e permanentes para o Brasil a israelitas e seus descendentes". Mesmo assim, calcula-se que entre 1938 e 1942 tenham entrado no país 9.155 de nossos irmãos. Um capítulo importante do livro "Quixote nas trevas" é o que descreve o inferno pelo qual passavam os refugiados que conseguiam sair da Europa. Embarcados em vapores em péssimas condições, alguns nunca conseguiram chegar a seu tão sonhado destino. Este foi o caso dos passageiros do vapor Alsina, que deveria partir da França em 15 de novembro de 1940, mas foi retido pelos ingleses. O governo francês colaboracionista de Vichy cortara as relações diplomáticas com a Grã-Bretanha. O navio ficou meses ancorado em Dakar e depois em Casablanca, onde vários passageiros, já sem recursos para se sustentar, foram confinados em campos de concentração. Os que finalmente conseguiram livrar-se e quiseram zarpar para o Brasil, tiveram problemas com os vistos, já então caducados. Segundo Koifman, "o vapor Alsina jamais completou aquela viagem para a América do Sul. A maioria dos passageiros que conseguiu chegar ao Brasil o fez a bordo de outros navios. Muitos tiveram sucesso de uma forma ou de outra, até a chegada do vapor Cabo de Buena Esperanza, em setembro de 1941, quando o desembarque se deu à revelia de Vargas..."
Em 12 de novembro de 1942, quando as tropas alemãs ultrapassaram a linha de demarcação e invadiram a parte ainda não ocupada do território francês, quebrando o armistício de 1940, Souza Dantas tentou mais uma vez, com sua costumeira bravura, enfrentar a Gestapo. Desde 1940, após a queda da França, a Embaixada brasileira, à exemplo de outras representações diplomáticas, despachavam de Vichy. Quando as tropas alemãs ocuparam também essa cidade, a Embaixada brasileira não ficou livre da violência nazista. Ainda mais que o Brasil rompera relações diplomáticas com a Alemanha a 28 de janeiro daquele mesmo ano e declarara guerra à Alemanha em agosto seguinte.
O embaixador, alertado de que um pelotão militar invadira o prédio da Embaixada, dirigiu-se imediatamente para lá, protestando, aos gritos, contra aquela "inominável violação dos mais elementares princípios do direito internacional". A reação da Gestapo foi apontar suas pistolas contra o velho embaixador e prender todos os brasileiros. Em 27 de novembro, o embaixador envia seu último telegrama de Vichy, informando que perdera "a faculdade de conceder vistos de saída do território francês...".
A Gestapo prendeu Dantas e demais membros da representação brasileira, confinando-os, em condições precárias, durante 14 meses, em Bad Godesberg, na Alemanha. Quando o diplomata voltou ao Brasil, em maio de 1944, fora planejada uma grande festa, com desfile em carro aberto, pela Avenida Rio Branco, e decretação de feriado nas escolas do Rio. Assessores de Getúlio Vargas, porém, desmobilizaram a festiva acolhida.
"O grande vilão da história é Getúlio", diz Koifman. Finalmente, no dia 21 de dezembro de 1944, Getúlio Vargas inscreve o nome de Souza Dantas no Livro do Mérito Nacional. Retornando no ano seguinte à Europa com a esposa, Souza Dantas se envolveu na criação da Maison de l´Amerique Latine, em Paris, e depois presidiu o Instituto Francês de Altos Estudos Brasileiros. Enquanto durou o Estado Novo no Brasil, Vargas tratou de manter Dantas afastado da vida pública e da evidência. Mas, com o fim da era Vargas, o embaixador sai do ostracismo diplomático. Em dezembro de 1945, passa a chefiar a delegação brasileira na ONU. Fez parte da Delegação do Brasil junto à Conferência de Paz, em Paris, como Delegado Plenipotenciário. Sua nomeação foi assinada pelo então presidente Gaspar Dutra.
No final de sua vida, já bastante doente, Souza Dantas esteve, pela última vez, no Brasil, entre julho de 1951 e o final de 1952. A esposa Elise, completamente senil, é levada por sua família de volta aos Estados Unidos, onde falece, em 1953. Sem o amparo financeiro dela e já muito doente, Souza Dantas, que morava no Hotel Ritz, de Paris, morre pobre e abandonado, em um humilde quarto do Grand Hotel, em 14 de abril de 1954. Seu corpo foi transportado de navio para o Brasil, onde foi enterrado um mês depois de sua morte, no cemitério do Caju, no Rio de Janeiro. Não deixou descendentes.
Vários textos sobre ele são então publicados, no Brasil, mas até o fim da década de 1990, somente em raras ocasiões seu nome só foi lembrado em nosso país.
Fabio Koifman nos dá, com seu livro, um presente inestimável: o retrato de um homem nobre e valente, destemido e honrado. Souza Dantas foi um "Justo", que muitos quiseram calar.
Mas agora ele falará para sempre através da lista de pessoas que salvou do Holocausto, encaminhando-os ao Brasil. O que o Itamaraty, à época de Vargas, conseguiu ocultar, nos é revelado e serve como testemunho para as próximas gerações. A tese de mestrado de Koifman rendeu os frutos merecidos, conseguindo transpor-nos às intrépidas aventuras do corajoso cavaleiro Souza Dantas. Além disso, serviu para a indicação do embaixador ao nobre título humanitário de "Justo entre as Nações", pelo Museu do Holocausto Yad Vashem, de Jerusalém. O Embaixador Souza Dantas é o segundo brasileiro a quem é conferida tal honraria. Antes dele, Araci de Carvalho Guimarães Rosa, esposa de outro conhecido escritor e diplomata, João Guimarães Rosa, e Oficial da Chancelaria brasileira em um consulado brasileiro na Alemanha, à época da guerra, recebeu essa deferência em razão de suas ações humanitárias na defesa de minorias, em particular a judaica, perseguidas durante a guerra.
O livro "Quixote nas trevas" entrega uma medalha póstuma a um homem que desafiou nazistas na Europa e políticos no Brasil, pondo em risco sua carreira e sua vida. Ele merece brilhar na Galeria Universal dos Heróis do Século XX.