No ano de 1492, os judeus da Espanha que, no decorrer dos séculos, haviam adquirido mais poder econômico e político do que qualquer outra comunidade judaica medieval, foram sumariamente expulsos do país. O Édito de 31 de março, outorgado pelos reis Fernando de Aragão e Isabel de Castela, tornara o judaísmo ilegal em seus domínios e, num prazo de quatro meses, os judeus tiveram que escolher entre o exílio ou o batismo.

O Édito foi um choque. Os judeus acreditavam serem transitórias, como tantas outras, as perseguições e discriminações das quais tinham sido vítima a partir do final do século 14. Havia judeus vivendo na Península Ibérica desde a queda do Segundo Templo, e, durante os séculos, haviam sobrevivido a invasões, guerras, pogroms, ao domínio islâmico e cristão. Viveram épocas de ouro e de discriminações. Estavam convencidos de que sua proeminência em todas as esferas da vida econômica, além da presença na Corte de judeus que atuavam como administradores e conselheiros dos reis, serviriam de proteção contra a hostilidade da Igreja e do povo. Ademais, acreditavam que os Reis Católicos, nome pelo qual ficaram conhecidos Fernando de Aragão e Isabel de Castela, os protegeriam. Afinal, até 1491 e mesmo no início de 1492, depois da captura de Granada, os reis ainda nomeavam judeus para importantes postos na Corte e haviam também renovado os contratos com os judeus que arrecadavam impostos. O choque sobre a decisão dos Reis Católicos não era fruto de ilusões sem fundamento...

No entanto, a expulsão foi o desfecho de um processo lento e progressivo de mais de dois séculos. Quando a Reconquista chegou praticamente ao fim, a atitude dos monarcas em relação aos judeus se transformou. Não sendo mais necessários para administrar as terras reconquistadas, os judeus passaram a ser vistos apenas como uma vultuosa fonte de renda para a Coroa.

Não há dúvida de que no século 14 o poder da Igreja Católica crescera em demasia e, consequentemente, a situação dos judeus na Europa tornava-se cada vez mais difícil. Após a Igreja determinar que as heresias cristãs deviam ser vistas não apenas com um flagrante desafio às doutrinas católicas, mas também como um desafio à própria estrutura da Igreja Romana, e que deveriam ser eliminadas nem que fosse pela força, era inevitável a pergunta sobre o que fazer com a presença judaica na Europa.

A partir do Concílio de Latrão, em 1215, a Igreja passa a exigir dos governantes ações mais severas em relação à população judaica. No entanto, por muito tempo, as mesmas não foram acatadas pelos reis cristãos da Península Ibérica ainda dividida entre vários reinos autônomos.

A atitude benevolente dos monarcas com os judeus era guiada por interesses próprios. Em Castela e Aragão, por exemplo, o benefício que os reis obtinham através dos exorbitantes impostos pagos pelos judeus superavam qualquer inclinação, decorrente de convicções próprias ou pressões da Igreja ou do povo, de tomarem medidas mais drásticas.

Porém, quaisquer que fossem as atitudes da Coroa, entre as massas os sentimentos antijudaicos eram cada vez mais fortes. Ataques verbais e físicos contra judeus se repetiam, também, com frequência muito maior. Já estava impregnada no imaginário popular a figura do judeu como um ser maligno – a “encarnação do diabo”, ou, no mínimo, seus parceiros no mal, que “visavam a ruína” do Cristianismo. Para as massas, o judeu era o culpado por todo infortúnio e desastre.

Vale ressaltar, porém, que apesar do clima antijudaico, para os judeus a vida na Península Ibérica era melhor do que em outras partes da Europa, ainda que crescesse a conscientização de insegurança.

Não há como entender a expulsão de 1492 sem examinar os acontecimentos de 1391, de 1412 e 1413.

O primeiro desastre – o ano de 1391

O ano de 1391 foi determinante na história dos judeus na Península Ibérica. Frades franciscanos e dominicanos, apoiados pelo papado, percorriam a Península e davam sermões inflamatórios cujo intuito era a conversão dos judeus.
A instabilidade política e as pregações do Arquidiácono de Ecija, Ferrant Martinez, que vivia em Sevilha, armaram o palco para a ampla violência antijudaica que ocorreu em 1391. Agitador antissemita sem escrúpulos, Martinez iniciara, no final da década de 1370, uma violenta campanha contra os judeus. Em suas pregações, costumava “alertar” a população de Sevilha para a “iniquidade” desse povo, encorajando a violência contra seus membros.

Em 1390, Martinez aproveitou a morte do Arcebispo de Sevilha e do Rei de Castela, que deixara como herdeiro ao trono um filho menor de idade, para intensificar seus ataques. Para a maioria dos historiadores, Martinez foi o principal instigador dos pogroms que, no ano seguinte, varreram a Península. No dia 4 de junho de 1391, os judeus de Sevilha foram atacados. Os pogroms espalharam-se rapidamente de uma cidade a outra, nos reinos de Aragão e Catalunha e nas Ilhas Baleares. Massas ensandecidas impulsionadas por um grande fervor religioso avançavam sobre os bairros judaicos obrigando os judeus a optar entre a cruz e a morte. Milhares escolheram a morte, mas tantos outros aceitaram batismo, sendo poupados, sem exceção. Famosas comunidades judaicas foram destruídas, como a de Gerona, sinagogas foram tomadas e transformadas em igrejas.

Em Castela, como vimos acima, não havia um monarca forte, e a devastação foi terrível; poucas comunidades foram poupadas. Apenas nos Reinos de Navarra e Portugal, governados por reis poderosos, as comunidades judaicas ficaram em segurança.

Estimativas do total da população judaica, em 1391, variam amplamente, mas calcula-se que 300 mil judeus viviam na época em terras ibéricas. Após um ano de distúrbios, quando a ordem foi restaurada, um terço da comunidade havia sido assassinada; um terço havia sobrevivido como judeus praticantes, conseguindo se esconder ou fugir para terras muçulmanas, e cerca de 100 mil haviam-se convertido.

Após a devastação, os judeus tentaram reerguer suas comunidades. A de Aragão foi salva da total destruição, graças ao Rabi Hasdai Crescas, uma das principais autoridades rabínicas de seu tempo, que liderou o judaísmo espanhol durante um de seus períodos mais críticos. As aljamas foram reconstruídas e a normalidade restabelecida. Mas, para os judeus se reerguerem era necessário mais do que a reabilitação física nas juderías arruinadas. Os pogroms de 1391 haviam reduzido seus números, sua riqueza e seu moral.

O judaísmo espanhol conseguiu sobreviver nos Reinos Cristãos durante um século após a catástrofe de 1391, principalmente, por causa da determinação dos monarcas de Castela e Aragão em proteger as comunidades judaicas, e o reconhecimento por parte de cristãos, que viviam em pequenos centros urbanos, de que a presença de uma comunidade judaica lhes era favorável.

O segundo desastre – os anos de 1412 e 1413

Os vinte anos que se seguiram após os eventos de 1391 foram de uma relativa calmaria na intensidade da perseguição. Para a grande maioria, era um indício de que havia um futuro em terras ibéricas para os judeus. Mas muitos haviam perdido a esperança e procuraram deixar a Península estabelecendo-se em volta da bacia do Mediterrâneo. (Os governos passaram a restringir a emigração judaica – não queriam “perder” seus judeus, “apenas” convertê-los.)

A Igreja Católica, por intermédio das suas campanhas contra os judeus, colocava um número cada vez maior de obstáculos na interação entre eles e os cristãos. Queria isolar a população judaica cada vez mais, querendo “preservar” os cristãosde toda “contaminação” judaica.

Nos anos de 1412 e 1413, as comunidades judaicas de Castela e Aragão sofreram novos desastres.O primeiro ocorreu em 2 de janeiro de 1412, quando, no Reino de Castela, foi imposta, pelas Cortes de Valladolid, uma lista de restrições que passaram a regulamentar as relações entre cristãos e judeus, visando minar a economia destes últimos, suprimindo suas liberdades e reduzindo-os à condição de párias. Entre outros, os judeus foram despejados de seus bairros para separá-los dos cristãos, proibidos de coletar impostos para os governantes, que era parte significativa da origem da riqueza judaica.

Os instigadores das novas leis foram o pregador Vincent Ferrer e Pablo Garcia de Santa Maria – um apóstata judeu que Ferrer convertera e que se tornara bispo de Burgos e Castela. Em decorrência da união de Castela e Leon sob um monarca, embora os reinos permanecessem separados, as leis de Valladolid eram válidas tanto em Castela quanto em Leon. Também em Aragão, Fernando I procurou estabelecer ordenações parecidas com as castelhanas contra os judeus. As novas restrições foram um grande golpe para os judeus ainda que continuassem a ser ignoradas pelas classes governantes pelo tempo que lhes conviesse. Na mesma época, com a aproximação entre o Antipapa Benedito XIII – reconhecido como Papa na Espanha, e Fernando I de Aragão, surgiu uma aliança política entre a Igreja e a Coroa contra os judeus. A “guerra contra os judeus” tornou-se uma política oficial desses dois poderes.

Em 1412, Benedito XIII, com o apoio de Fernando I, ordenou que as comunidades de Aragão e Catalunha enviassem delegados para Tortosa, para que fossem debatidas em sua presença as alegações de Gerónimo de Santa Fé, um apostata judeu de nome Joshua Lorki, que dizia poder provar em fontes judaicas a autenticidade do messianismo de Jesus.

A Disputa de Tortosa, que teve início em 1413 e durou 20 meses, foi a mais longa e importante das disputas cristãs-judaicas impostas aos judeus durante a Idade Média. Essa Disputa de Tortosa, dirigida por Benedito XIII, adquire maior relevância não apenas pelo tempo que durou, mas também pelo número de autoridades eclesiásticas envolvidas: compareceram mais de 60 cardeais, bispos e outras personalidades religiosas e laicas. As fontes judaicas mencionam cerca de 20 participantes do lado judeu, sendo suas personalidades mais proeminentes os Rabis Zerahiah ha-Levi, Astruc ha-Levi, Joseph Albo e Mattathias ha-Yizhari.

A disputa não foi um debate, mas uma exibição pública, e o método utilizado não privilegiou a discussão, mas a instrução. Os judeus tinham que apenas responder aos questionamentos de Jerônimo de Santa Fé, sendo-lhes proibida a oportunidade de réplica. A disputa foi um ataque verbal cristão contra os judeus, acompanhado de pressão psicológica – a ponto de intimidação e ameaças, a fim de obrigá-los a aceitar os argumentos de seus adversários. Como afirmara Benedito XIII na abertura da disputa: “Eu não vos fiz vir aqui para provar qual de nossas religiões é a verdadeira, pois para mim é perfeitamente claro que a minha é verdadeira e que a vossa está ultrapassada”. Para os cristãos era indispensável que os judeus reconhecessem falhas na própria interpretação do Talmud, no que diz respeito ao Messias.

Os motivos que levaram a instituir a disputa são vários. As autoridades eclesiásticas queriam desmoralizar o Judaísmo, em um grande espetáculo público, e despertar o entusiasmo popular pelo Cristianismo como única religião válida, e então efetuar uma conversão em massa dos judeus.

Quanto ao desfecho da Disputa em Tortosa, historiadores concordam que a derrota judaica não foi plena. Mesmo diante das dificuldades e da grande pressão que sofreram, os judeus se comportaram com coragem, fazendo uso de argumentos dignos e sensatos. A contestação judaica aos argumentos cristãos produziu as melhores respostas oferecidas dentre todas as disputas judaico-cristãs na Idade Média.

Para a população judaica, as consequências foram bastante negativas. Enquanto os rabinos eram obrigados a enfrentar as alegações cristãs em Tortosa, os frades andavam pelas comunidades judaicas desprovidas de líderes, e, como consequência, muitos se desesperaram e se converteram. No entanto, a intenção de Benedito XIII, em tornar o Cristianismo um símbolo de identificação para todos os habitantes da Península Ibérica não se realizou.

A onda de antissemitismo, resultante da disputa em Tortosa acabou perdendo força. Quando Afonso V de Aragão assumiu o poder, tanto ele quanto João II de Castela e Leon, estavam mais interessados em assuntos seculares do que em fanatismo religioso. Ambos queriam a sobrevivência das comunidades judaicas para beneficiar seus reinos. Entre 1419 e 1422, João II, Afonso V e o Papa Martin V aboliram todos os éditos antijudaicos desde 1391, juntamente com algumas das restrições socioeconômicas. Outras restrições caíram em desuso. Algumas sinagogas e o uso do Talmud foram restituídos aos judeus.

No reino de Castela-Leon, onde viviam a maioria dos judeus espanhóis, sua população judaica conseguiu uma recuperação melhor. Ainda restavam comunidades nas principais cidades (Sevilha, Toledo, Burgos), mas os judeus estavam, então, mais dispersos por várias cidades menores.

No entanto, prejuízos irreparáveis tinham sido feito às comunidades, pelos eventos de 1391, 1412 e 1413 não tinham volta. O judaísmo espanhol jamais voltaria à condição que desfrutava antes de 1391. Mas, apesar de todas as depredações, ainda restavam vários judeus de posses nas grandes cidades, com conexões na Corte e no governo, que atuavam como líderes comunitários. Contudo, eles já não gozavam do semi-monopólio das profissões intelectuais, e os cargos que antes possuíam, agora tinham que dividir com cristãos e conversos – sendo que havia agora muitos milhares destes últimos.

Os conversos

A enchente de conversos do Judaísmo resultante da violência e insistente pressão exercida sobre os judeus, durante décadas, foi um verdadeiro desastre para as comunidades judaicas, e um aparente triunfo para a Igreja. Mas para o Cristianismo, foi um cálice de veneno.

Estima-se que até meados de 1415 outros 50 mil judeus se converteram, juntando-se aos 100 mil que já o haviam feito durante os pogroms de 1391.
Como resultado dessas conversões, a população judaica ficou dividida em três grupos: os que haviam permanecido judeus, os que se haviam convertido e viviam como cristãos; e os criptojudeus, que repudiavam os batismos forçados e, no segredo de seus lares, permaneciam judeus. Segundo a lei judaica, os conversos ainda eram judeus, pois as conversões forçadas não têm validade, já que um homem só pode ser responsabilizado pelas atitudes que toma por livre e espontânea vontade.

Precisa ser ressaltado que nem todos os cristãos-novos, como eram também chamados, haviam sido forçados a se converter. Alguns o haviam feito por livre vontade por acreditar na fé cristã, outros por quererem fugir da legislação discriminatória de humilhações às quais os judeus estavam submetidos e poder, assim, alcançar ambições profissionais ou comerciais. Alguns dos cristãos-novos demonstravam grande zelo por sua nova religião, e, voltando-se contra seus irmãos, foram veículo de grande sofrimento.

É difícil para os historiadores estimar o número de conversos que eram criptojudeus. O criptojudaísmo foge ao olho do historiador e escapa de todos os registros escritos. Sabemos, porém, que os conversos mantinham estreitos laços familiares e comerciais, e se casavam apenas entre si. Havia os que, no maior sigilo, frequentavam sinagogas, evitavam alimentos proibidos, jejuavam, mantinham as festas e guardavam, na medida do possível, o Shabat.

Apesar de todas as promessas da Igreja, para os novos cristãos durou pouco a ilusão de viver em paz. Logo descobriram que não podiam fugir ao antagonismo antissemita da população, que os via com uma hostilidade ainda maior do que a que existia em relação aos judeus, e se referia a eles de forma pejorativa. Chamavam-nos de marranos (porcos).

Os conversos e suas famílias tendiam a estar entre as pessoas mais cultas dos Reinos Cristãos e, apesar do preconceito que as cercava, muitas famílias de conversos prosperaram, tornando-se das mais ricas. Ao aceitar o batismo, os recém-convertidos não estavam mais sujeitos às leis que restringiam a vida dos judeus. Nos anos seguintes, vários deles galgariam posições de destaque na administração real, na burocracia civil e até mesmo na Igreja, chegando a casar seus filhos com membro da nobreza.

A rápida ascensão dos conversos provocava inveja e ressentimento, exacerbando o antagonismo cristão. Os conversos acabaram por se transformar em um problema social além de religioso. A judeufobia, o antijudaísmo religioso das massas, fundiu-se com um novo tipo de antissemitismo – o racial. Depois de 1391, o conceito de limpieza de la sangre (pureza de sangue) tornou-se incorporado na vida espanhola nos séculos seguintes. Para um cristão provar sua “pureza de sangue” devia provar que não havia nenhum judeu em sua linhagem. A política de limpieza de la sangre será adotada primeiramente, em 1449, em Toledo, onde um conflito anti-conversos conseguiu bani-los e a seus descendentes da maioria dos cargos oficiais. O objetivo do estatuto de exclusão foi impedir uma maior inserção de cristãos-novos na vida econômica e social, pois essa mistura contrariava os interesses dos cristãos-velhos.

A crescente hostilidade dos cristãos-velhos e o conceito de “limpeza do sangue” – que levaram a um isolamento dos cristãos-novos, foram fatores que levaram um grande número de conversos, assim como seus filhos e netos – nascidos nominalmente no seio do Cristianismo – a traçar o caminho de volta às suas raízes.

Ao longo do século 15 a questão dos conversos começou a preocupar os governantes e a Igreja. Num primeiro momento, as conversões em massa de judeus haviam sido vistas pelas autoridades eclesiásticas como uma vitória do Cristianismo. Elas partiam do pressuposto que, com o passar do tempo, mesmo os que haviam sido convertidos à força se tornariam cristãos sinceros. Mas, no decorrer do século, a Igreja passou a ver o grande contingente de cristãos-novos como um “um perigo oculto”, passando a querer eliminar todos aqueles cuja lealdade a seu credo não fosse confiável.

Como vimos acima, os primeiros motins contra conversos irromperam em Toledo. Em junho de 1449, os que viviam na Ciudad Real, no Reino de Castela, reagiram após terem sido atacados por cristãos-velhos, tendo a luta durado 15 dias. Os ataques se repetiram em 1464, 1467 e 1474, sendo que esse último pogrom foi particularmente grave. A intranquilidade popular causada pela hostilidade dos cristãos-velhos contra os conversos preocupava cada vez mais os governantes.

O ideólogo do antissemitismo que se abateu contra judeus e conversos espanhóis foi um franciscano, frei Alonso de Espina, o superior da Casa de Estudos de Salamanca, que os odiava igualmente e defendia a completa extirpação do judaísmo da Espanha por expulsão ou extermínio. Em seu devido tempo, todas as sugestões de frei Alonso foram adotadas pelos governantes ibéricos.

Os Reis Católicos e a Inquisição

A história dos judeus na Espanha vai dar sua guinada final em outubro de 1469, quando Isabel de Castela se casa com o príncipe Fernando de Aragão. Em 1474, Isabel ascendeu ao trono de Castela e, cinco anos depois, Fernando se tornou rei de Aragão. De 1479 em diante eles governaram o que era, de fato, um único reino unificado. Isabel e Fernando gradualmente restauraram a ordem e impuseram sua autoridade sobre toda a Espanha. Num primeiro momento, os reis não eram hostis aos judeus, pelo contrário.

Havia inúmeros judeus e conversos que foram nomeados para ocupar cargos importantes na administração do Reino. Entre outros, havia duas figuras de destaque: Rabi Isaac ben Judah Abravanel – que se refugiou em Castela após a morte do rei D. Afonso V, rei de Portugal, e Don Abraham Senior, de Segóvia, Rabino Chefe da comunidade judaica e Coletor-Chefe de impostos reais, em Castela. Os dois eram encarregados de administrar as receitas e fornecer abastecimentos ao exército real. Outros estadistas cristãos-novos prestavam serviços à Coroa e dentro da casa real, Isabel conseguiu conceber o Príncipe Juan devido ao tratamento médico que recebeu de seu médico judeu, Lorenzo Badoc. Havia também administradores e intelectuais judeus também na corte de Aragão e a serviço de vários nobres e clérigos.

Ademais, em várias ocasiões, Fernando e Isabel intervieram pessoalmente para impedir distúrbios antijudaicos e punir os que haviam fomentado a violência. Para conter os excessos dos nobres e das autoridades municipais em sua tentativa de restringir os direitos dos judeus, Fernando havia deixado claro que não deviam ser prejudicados. Em 1477, ao defender os judeus de Trujillo, Isabel declarou, “Todos os judeus do meu reino são meus e estão sob minha proteção, e cabe a mim defender e protegê-los, e manter seus direitos”. São inúmeras as provas de que, até a véspera da expulsão, os governantes de Aragão e Castela consideravam os judeus como súditos leais e merecedores de proteção. A confiança judaica em seu apoio não se baseava, de fato, como alguns estudiosos alegam, em ilusões fantasiosas.

Mas, Fernando e Isabel eram antes de mais nada monarcas católicos e levavam a sério suas responsabilidades religiosas em relação à Igreja. Não foi apenas por razões políticas que eles receberam do Papa Alexander VI o título de los Reyes Católicos.

Os constantes relatórios sobre as alegadas atividades judaizantes realizadas por conversos alarmavam os Reis, principalmente Isabel. E, uma vez consolidada sua posição política, os Reis Católicos decidiram agir para resolver a questão dos conversos, de acordo com as diretrizes propostas pelos mais extremos fanáticos católicos: extirpar a “heresia” dos conversos e tomar severas medidas contra os judeus para impedi-los de influenciar a população cristã.

Em 1447, Isabel e Fernando foram convencidos pelo prior dominicano de Sevilha, Alonso de Hojeda, de estabelecer a Inquisição em suas terras. O dominicano alegava de que os conversos se reuniam secretamente para praticar seus “ritos antigos”, e essa ameaça só poderia ser adequadamente combatida se fosse instalado na Espanha um Tribunal da Inquisição, sob controle real. Ao contrário dos antigos Tribunais do Santo instituídos no século 13, a Inquisição espanhola não seria um instrumento do Papado. Prestaria contas diretamente a Fernando e Isabel. Como nos domínios dos monarcas espanhóis a Igreja e o Estado atuavam em conjunto, a Inquisição espanhola funcionaria como um instrumento da Igreja, mas também de política real.

Em novembro de 1478, uma Bula do Papa Sisto IV autorizou a criação de uma Inquisição única na Espanha. Concedeu aos monarcas espanhóis o inédito direito de nomear e demitir os inquisidores. Em setembro de 1480, dois dominicanos foram nomeados inquisidores.

O primeiro auto-de-fé se realizou em fevereiro de 1481, e seis conversos foram queimados vivos na estaca. Só em Sevilha, no início de novembro, as chamas ganharam mais 288 vítimas, enquanto 79 foram condenadas à prisão perpétua. Segundo os registros, entre 1481 e 1488, houve 750 autos-de-fé apenas em Sevilha. A Inquisição tomou nova dimensão quando Torquemada foi nomeado Inquisidor Geral. Todos os tribunais da Inquisição, em toda a Espanha cristã, achavam-se sob sua jurisdição. Nos quinze anos seguintes, até sua morte em 1498, ele teve um poder que rivalizava com o dos Reis Católicos. Sob Torquemada, o trabalho da Inquisição prosseguiu com renovada e diabólica energia. Na década seguinte, a Inquisição se ramificou, cobrindo quase todo o país em fins do século. Talvez uns 30 mil conversos tenham sido queimados vivos em todo o reino. Milhares de pessoas ficaram aleijadas ou enlouqueceram por causas das torturas, arruinadas porque seus bens haviam sido confiscados. Desde o momento de sua instalação, a Inquisição cobiçava a riqueza dos conversos e dos judeus. Nada podia deter as atrocidades, cuja relação ocuparia centenas de milhares de páginas. A certa altura, os dignitários de Barcelona escreveram ao Rei Fernando: “Estamos todos arrasados com as notícias que recebemos das execuções e atos que dizem estar tendo lugar em Castela”. Em Castela, havia protestos contra o renascimento de uma instituição bárbara, criada originalmente em um clima mais primitivo espiritual. Mas os críticos foram silenciados.

Desde o início, a Inquisição espanhola moveu-se com brutalidade em seu uso de confissões secretas extorquidas sob tortura, que era considerada “a melhor maneira de capturar o maior número de judeus secretos”. Em sua metodologia e técnicas de intimidação e tortura, não difere da Inquisição Papal, mas foi certamente na Espanha que atingiu novas dimensões de intolerância, cinismo, perversidade e terror. Todo tipo de tortura que a depravada imaginação dos inquisidores idealizava acabava sendo sancionado. Há registros de que um inquisidor falou aos colegas: “Devemos lembrar que o objetivo principal do julgamento e execução não é salvar a alma do acusado, mas alcançar o bem público e impor medo aos demais”.

O Édito de Expulsão de 1492

O ódio da Inquisição não era apenas em relação aos conversos. Era maior o ódio aos judeus praticantes, porque, em teoria, ficavam fora de sua jurisdição legal oficial. Os inquisidores eram autorizados a tratar de hereges, isto é, cristãos que se haviamdesviado da ortodoxia da fé cristã, ou seja, cristãos-novos acusados de judaizar, e, supostamente, não tinham poder sobre membros de outras religiões. Mas, como a Inquisição considerava o judaísmo um inimigo mortal da fé cristã, encontrava meios de implicar, arrastar e destruir os judeus praticantes. A verdade é que todos os que ocuparam cargos importantes no Tribunal do Santo Ofício tinham como objetivo se livrar dos judeus e, no final, conseguiram destruir o judaísmo na Espanha.

Para conseguir seu objetivo final a Inquisição foi em frente em um crescendo de histeria, paranoia e terror. Ironicamente, o horror dessa primeira década, fez com que um número ainda maior de conversos voltassem a procurar suas raízes judaicas. A religião e a tradição, que eram vistas como crime pelos cristãos, novamente se tornaram fonte de honra e orgulho. De fato, os judeus cada vez mais queriam se arriscar mesmo à fogueira do auto-de-fé de modo a permanecerem fieis ao D’us de Israel.

A Inquisição embarcou em sua própria e constante propaganda antissemita, usando técnicas que iriam ser adotadas cerca de quatro séculos e meio mais tarde, na Alemanha nazista, por Josef Goebbels. Reiteravam-se e repetiam-se acusações revoltantes, com o conhecimento de que acabariam por ser aceitas, pois “uma mentira muitas vezes repetida se torna uma verdade”. Utilizando-se do antissemitismo que ela própria dera um jeito de provocar na população, a Inquisição pediu à Coroa medidas apropriadas. A proposta de expulsar todos os judeus da Espanha veio diretamente da Inquisição.

O Rei Fernando reconheceu que a perseguição dos judeus e conversos teria inevitavelmente repercussões econômicas adversas para o país. Nem ele nem a Rainha Isabel, porém, puderam resistir à combinada pressão da Inquisição e do sentimento popular. Numa carta a seus mais influentes nobres e cortesãos, o Rei escreveu: “O Santo Ofício da Inquisição, vendo que alguns cristãos são postos em perigo pelo contato e comunicação com os judeus, estipulou que eles sejam expulsos de todos os nossos reinos e territórios, e convenceu-nos a dar nosso apoio e concordância a isso... fazemo-lo com grande dano para nós, buscando e preferindo a salvação de nossas almas acima do nosso proveito...”.

Em janeiro de 1483, para apaziguar a Inquisição na Andaluzia, os monarcas anunciaram que todos os judeus da região deveriam ser expulsos. Em maio de 1486, todos os judeus foram enxotados de grandes partes de Aragão. Mas a expulsão geral teve de ser adiada porque a Coroa precisava do dinheiro, expertise e outras formas de apoio dos judeus e conversos para a campanha em andamento contra os muçulmanos do Reino de Granada.

Em 1478, a batalha com o Reino de Granada foi retomada e, na década seguinte, Castela perseguiu, incessantemente, a ofensiva contra o último reino muçulmano na Península Ibérica.

Torquemada aceitou o adiamento pela Coroa da expulsão de todos os judeus da Espanha até que o Reino muçulmano de Granada fosse final e definitivamente conquistado. Mas, nesse meio tempo, passou a preparar o terreno.

Assim surgiu uma acusação de libelo de sangue, conhecida como El Niño de la Guardia. Um converso, Benito Garcia, foi levado perante a Inquisição e acusado de participar da crucificação de uma criança cristã na véspera de Pessach. Submetido à tortura, ele “confessou” o nome de vários conversos e judeus supostamente envolvidos num complô para derrubar o Cristianismo, a Inquisição e matar todos os cristãos. Ainda que nenhuma criança estivesse desaparecida em La Guardia, nem houvesse fundamento na patológica acusação de assassinato ritual, os judeus, uma vez mais, se viram vítimas dessa calúnia medieval. Torquemada indicou uma comissão especial investigadora que, como se previa, “julgou culpados” os acusados. Em novembro de 1491, duas semanas antes da queda de Granada, cinco judeus e seis conversos foram mandados para a fogueira em Ávila.

O intuito de Torquemada era atiçar ainda mais o povo contra os judeus e conversos, e assim preparar os ânimos para o decreto de expulsão, que seria divulgado apenas três meses após o veredicto.

Em 2 de janeiro de 1492, quando o estandarte espanhol foi alçado na torre de Alhambra, palácio-fortaleza em Granada, a sorte dos judeus estava selada. Logo após a queda de Granada, começaram a circular rumores na corte de que um decreto de expulsão para todos os judeus estava para ser decretado. As datas específicas para a formulação, promulgação e anúncio público do decreto continuam alvo de discussão, mas provavelmente foram assinados em fim de janeiro e promulgados no final de março.

Nesse ínterim, Rabi Abrabanel e Rabi Seneor tentaram influenciar os Reis Católicos a revogar o decreto. Na introdução a seu comentário sobre os Profetas, Rabi Abrabanel recorda ter-se reunido três vezes com o Rei, implorando, incessantemente, mas em vão, por seu povo. Apesar de necessitar do apoio dos poderosos cortesãos judeus e conversos, Fernando manteve-se firme, enquanto Isabel o estimulava a manter sua decisão de remover todos os judeus da Espanha.

Rabi Abrabanel é bastante sucinto em sua descrição de seu dramático encontro com o casal real, mas Rabi Moshé Capsali, Rabino Chefe de Istambul no século 15, e cronistas que se basearam nos relatos de Capsali, revelam detalhes da última defesa dos Mestres sefaraditas: “Naquele dia, Don Isaac Abravanel recebeu permissão para falar e defender seu povo. E lá se pôs, como um leão, em sabedoria e força, e, na mais eloquente linguagem, dirigiu-se ao Rei e à Rainha. Don Abram Seneor, também, dirigiu-se aos monarcas, mas vendo que era em vão, eles acabaram concordando em não seguir adiante com o assunto...”.

Apesar de assinado em 31 de março, o Édito da Expulsão foi promulgado somente entre 29 de abril e 1º de maio. A razão dada no documento para a expulsão foi evitar que os judeus infligissem mais injúrias à religião cristã. O Édito enumera, em um estilo que denota ter sido redigido pelos inquisidores, os passos tomados durante os 12 anos anteriores para “evitar que os judeus influenciassem os conversos e para purificar a fé cristã”. Os judeus estavam estarrecidos; eles teriam apenas quatro meses de tempo para deixar a Espanha, onde seus ancestrais tinham vivido durante milênios. Ademais teriam que deixar bens e propriedades e lhes foi proibido levarem consigo ouro, prata ou pedras preciosas. As sinagogas (algumas das quais foram convertidas em igrejas), cemitérios e a propriedade das aljamas foram confiscadas. A pedido dos judeus, a data fatídica de 31 de julho foi adiada para 2 de agosto por causa de Tishá B’av.

Imediatamente após ter sido publicado o Édito, o clero começou uma ampla campanha de conversão. Houve um número significativo de judeus que claramente não tinham condições de enfrentar o exílio e se batizaram. Entre esses, dois dos mais importantes membros da comunidade judaica espanhola, Don Abraham Seneor e seu genro, Rabi Meir Melamed, que foram batizados em uma grande cerimônia, em junho de 1492. Ambos eram favoritos da Rainha Isabel e é possível que eles ou suas famílias tenham sido ameaçados, até se submeterem. Outro líder da comunidade, Rabi Don Isaac Abravanel, recusou-se a se converter e optou pelo exílio, mas teve que renunciar a seus direitos de restituição das grandes somas que emprestara ao governo.

O número de judeus que se converteram para evitar o exílio e aqueles que partiram é puramente especulativo. Entre os que partiram, a grande maioria foi para Portugal. O número destes últimos é estimado entre 100 mil e 120 mil. É possível que mais uns 50 mil tenham-se exilado em vários outros destinos partindo direto da Espanha em 1492, para as terras mediterrâneas, alguns para a África Ocidental, poucos para a Holanda.

A História dos judeus na Península Ibérica chegara ao fim. Uma comunidade judaica famosa, tanto por sua sabedoria e conhecimentos quanto por sua importância econômica e política foi abrupta e cruelmente desarraigada. Mas, sua extraordinária civilização não desapareceu, pois, os judeus expulsos levaram seus conhecimentos, sua sabedoria e tradições para outras terras. Mas isto é um outro capítulo da História dos Judeus Sefaraditas...

BIBLIOGRAFIA:
Cohen, Malcolm, A Short History of the Jews in Spain, eBook Kindle
Gerber, Jane S., The Jews of Spain, eBook Kindle
Lowney, Christopher, A Vanished World: Medieval Spain’s Golden Age of Enlightenment, eBook Kindle