Um dos mais importantes artistas de todos os tempos, o grande mestre do barroco holandês viveu e trabalhou durante duas décadas em sua residência no bairro judeu de Amsterdã, de onde saíram seus melhores trabalhos.

Rembrandt e sua obra ocupam o centro das atenções do mundo das artes, neste ano de 2006 que marca o quarto centenário de seu nascimento. Ao redor do mundo realizam-se exposições, sobretudo na Holanda, terra natal do grande pintor. Em Amsterdã, no antigo bairro judaico, Vlooienburg, há várias mostras programadas. Quatro destas serão no Rembrandthuis, o Museu da Casa de Rembrandt, residência do artista de 1639 até 1658, que, em 1911 foi transformada em museu. E, a poucas quadras dali, o Museu Histórico Judaico também participará, com a exposição "The Jewish Rembrandt", em novembro deste ano.

Desde o século 19, a relação entre Rembrandt e os judeus tem sido alvo de estudo. Os historiadores são unânimes em afirmar que foi pela mão do mestre holandês que se percebeu uma visível mudança na forma como os judeus eram retratados nas artes plásticas. Há quem chegue a considerá-lo um "artista judaico", apontando o fato de ter vivido no bairro judeu e de um terço de suas obras retratarem personagens ou temas bíblicos - fato pouco comum na Holanda protestante do século 17, pois os temas religiosos não tinham apelo para os protestantes holandeses.

Um artista extraordinário

Rembrandt Harmenszoon van Rijn nasceu em 15 de julho de 1606, na cidade holandesa de Leyden e morreu em Amsterdã, em 1669. Na época, a Holanda protestante, finalmente livre do domínio da Espanha católica, tornara-se potência econômica e oásis de tolerância e abrigo para os perseguidos. A prosperidade comercial, aliada ao respeito à individualidade, incentivara a criatividade dos artistas, desencadeando um período extraordinário: a Época de Ouro da pintura holandesa (1584-1702). A arte deixara também de ser exclusividade dos nobres e da Igreja, passando a ser artigo de consumo da burguesia comercial; e Amsterdã se torna o maior mercado de arte não-estatal da Europa.

Nesse período, de extraordinária produção artística, resplandece o gênio de Rembrandt. Pintor, desenhista e gravador, tecnicamente brilhante, foi um dos grandes mestres do barroco. Além de dominar a técnica do chiaroscuro - a arte de jogar com contrastes de luz e escuridão, o mestre atingiu uma nova percepção, a profunda compreensão da natureza humana. "Não há, na história da pintura, artista que tenha penetrado tão profundamente, com tanta dúvida e angústia, no problema das relações entre o homem e seu mundo", escreveu o historiador de arte, Pierre Cabanne.Ninguém antes dele fez as coisas "comuns" da humanidade parecerem tão profundamente humanas, sérias e interessantes.

Calcula-se que tenha criado mais de 600 pinturas, estimando-se que tenha feito acima de 300 gravuras e de 1.400 desenhos. Alguns de seus quadros são um registro vívido da Amsterdã de sua época. Seus desenhos, a maior parte dos quais não assinados, são notáveis pela soltura dos traços, ao passo que os retratos e auto-retratos evidenciam profunda sensibilidade às sutis nuanças das emoções humanas.

Rembrandt e os judeus

Em 1631, o pintor radicou-se em Amsterdã, logo se tornando conhecido e próspero. Em pouco tempo se alçou à posição de principal retratista da Holanda. Em 1639, já casado, comprou uma ampla casa no número 4 da rua Breestraaat, na ilhota de Vlooienburg, entre os vários canais da cidade. Na época, o bairro era o centro do mercado de arte e da vida judaica, pois grande parte de seus habitantes, elementos cultos e de posses, pertenciam à "Nação Portuguesa".

Todas as casas vizinhas à mansão de Rembrandt eram ocupadas ou de propriedade de ricos comerciantes sefaraditas, como Daniel Pinto, os irmãos Rodrigues, Isaac de Pinto, Baruch Osorio, entre outros. A poucas quadras da residência do artista vivia o rabino Menasseh ben Israel, a mais importante personalidade judaica da cidade e, provavelmente, uma das mais famosas na Europa da época. Rembrandt manteve, durante anos, profunda amizade com o rabino, inclusive tendo ilustrado, com quatro de suas gravuras, um de seus tratados, Piedra Gloriosa. É famoso em todo o mundo o portrait do rabino executado por Rembrandt. O fato de viver, durante quase duas décadas, no coração da vida judaica foi, sem sombra de dúvida, fundamental para moldar sua visão sobre os judeus. Vale lembrar que em nenhum outro país da Europa Rembrandt teria tido permissão de viver no bairro judaico. Segundo alguns teóricos, ao conviver tão de perto com o judaísmo, o pintor, protestante que estudara a Bíblia a fundo, identificou-se com a cultura e religião judaica. Para outros, essa convivência próxima e diária mudou a percepção do artista quanto aos judeus, permitindo-lhe construir uma imagem calcada em sua experiência pessoal e não nos estereótipos carregados dos preconceitos vigentes na Europa do século 17.

Ele não apenas morava em Vlooienburg - interagia com os vizinhos, construindo laços de amizade e profissionais. E, graças a isso, o mundo pôde vislumbrar através dos seus olhos a crônica da vida judaica na Holanda. Conta-se, por exemplo, que o comerciante de diamantes, Alphonso Lopez, costumava receber o artista em sua casa, para que ele pudesse apreciar e estudar sua coleção de obras de arte, que incluía quadros de Rafael e Tintoretto, entre outros.

Muitos de seus trabalhos foram financiados e adquiridos por patronos e clientes judeus, principalmente de origem sefaradita, grandes admiradores das artes plásticas, em geral, e os maiores colecionadores da época, na cidade. Entre eles, contavam-se Samuel D'Orta, Caspar Duente, a família d'Acosta Curiel e Ephraim Bueno, famoso médico e pensador, também retratado por suas mãos.

Para os historiadores da arte, a relação de Rembrandt com os judeus pode ser analisada através de suas obras. Apesar de, no início da carreira, tê-los representado, em alguns de seus quadros, segundo os estereótipos negativos costumeiros, não há como negar que Rembrandt mudou sua forma de retratá-los. O artista descartou as velhas imagens de judeus, comuns na arte ocidental - associadas a demônios, ganância, maldade e traços muitas vezes animalescos. Os judeus de Rembrandt apresentam feições delicadas e transmitem profundas emoções, extraídas das várias situações da vida humana.

Suas obras são mais do que um documento histórico do período - permitem-nos perceber, a partir da temática dos seus quadros, a cultura holandesa e as relações entre as duas comunidades. Ao retratar os Homens da Nação, Rembrandt não se presta tão somente a captá-los como em um instantâneo fotográfico; o seu olhar adiciona e soma a riqueza resultante do seu convívio entre esse povo.

Abraham Bredius, uma das grandes autoridades em Rembrandt, relacionou, no conjunto da obra do pintor, aproximadamente duzentos retratos de homens, excetuando-se os que ele fez de si mesmo e de familiares: dentre esses, trinta e sete judeus. Entre as obras do Museu Casa de Rembrandt, constam os portraits de dois líderes comunitários judeus, com chapéus pretos de abas largas, barba curta, típicos membros da aristocracia de Amsterdã no período. Estes trabalhos comprovam a diferença entre a vida judaica local e no restante da Europa.

Quando retratava cenas inspiradas nos textos bíblicos, Rembrandt tinha sempre a preocupação de reproduzir de maneira correta a simbologia judaica. A inclusão do alfabeto hebraico, por exemplo, em qualquer um de seus trabalhos, era sempre acompanhada por minuciosos estudos, visando a perfeita reprodução das letras. Rembrandt não era o único artista holandês do século 17 a tratar temas judaicos, mas o que o diferenciava era o cuidado que tinha ao retratar fatos, situações e personagens ligados ao povo dos "Homens da Nação". Em sua tela "Moisés quebrando as Tábuas da Lei", diferentemente do que se costumava ver em outras reproduções artísticas, Rembrandt mostra Moisés carregando duas Tábuas e não um pedaço de rocha simulando a divisão em duas estelas.

A coleção de obras com temática judaica inclui vários óleos, entre os quais os mais famosos são dois com o mesmo nome: "A noiva judia". O primeiro, de 1665, representa um casal que alguns acreditavam ser o poeta sefardita Miguel de Barrios (1625-1701) e sua esposa, no entanto não há provas definitivas disso. O outro óleo, Rembrandt pintou em 1684. Outros quadros famosos são: "O médico judeu Ephraim Bueno", de 1647; "Retrato de um judeu" e "Velho com gorro vermelho de pele, em uma poltrona", ambos de 1654. O Livro de Esther inspirou obras como "O Triunfo de Mordechai", de 1641, e "Haman e o rei Achashverosh no banquete de Esther", de 1660. Entre as gravuras e desenhos podemos destacar os retratos de Menasseh ben Israel (1636) e de Ephraim Bueno (1647), "Abraham e Isaac", 1645, "Uma sílfide ou A grande noiva judia", de 1635. Este último retrata uma noiva que tem nas mãos a ketubá, contrato judaico de casamento. Vemos ainda a famosa gravura "Judeus na sinagoga", de 1648, em que retrata membros da comunidade asquenazi de Amsterdã.

Bibliografia

Cabanne, Pierre ,Rembrandt, Ed. Profils de l'art chêne,1991

Bockemuhl, Michael, Rembrandt, Ed. Taschen

Artigo de Ivy Judensnaider Knijnik, "Rembrandt e os judeus em Amsterdã: algumas considerações entre arte e ciência", Revista Digital Art, abril de 2005

http://www.rembrandthuis.nl, Museu Casa de Rembrandt