Neste começo de ano, o mundo árabe foi sacudido por uma surpreendente onda de protestos contra regimes famosos pelo autoritarismo e ineficiência.
Se a turbulência surpreendeu ao atingir, com velocidade meteórica, países tão distantes quanto Marrocos e Iêmen, ao derrubar um presidente egípcio no poder havia 30 anos e ao mergulhar a Líbia no caos, ela não foi exatamente inesperada para um observador internacional mais atento. Afinal, o mundo árabe representa um bastião de conservadorismo nos planos político, social e econômico, enquanto reformas trepidantes redesenham o cenário de países em amplitude praticamente global.
Ou seja, a pergunta persistente era: até quando o mundo árabe suportaria o modelo de regimes políticos ditatoriais e ineficientes, donos de economias primárias e distantes de modelos de expansão de consumo e de priorização, por exemplo, de sistemas inovadores e tecnológicos? Até quando países como Egito, Síria, Arábia Saudita, Jordânia, Tunísia ou Marrocos iriam assistir, como que congelados no tempo, às profundas mudanças estruturais que, nas últimas décadas, sacodem nações como China, Índia, Brasil, Malásia, Indonésia ou Filipinas?
Um fenômeno avassalador e inexorável muda estruturalmente a sociedade contemporânea, ignorando fronteiras e culturas: a urbanização. Pelo menos desde o século XVIII, com o advento da Revolução Industrial, a crescente concentração populacional em cidades vem imprimindo aos mais diversos cantos do planeta novas características, que podem se enraizar com menor ou maior velocidade, de acordo com a trajetória histórica e cultural de onde ela aporta.
Desponta como inegável o fato de que o avanço global da urbanização propicia mais espaços para exercício de cidadania, mais facilidades para educação e para o fluxo da informação, mais facilidades para organização e mobilização política, mais espaço para a mudança tecnológica no cotidiano da população. A Inglaterra foi a primeira a contar com a maioria de seus habitantes nas urbes. Recentemente, as Nações Unidas anunciaram que, pela primeira vez na história, em escala planetária, o número de pessoas nas cidades havia alcançado o número nas zonas rurais.
Sociedades urbanas, portanto, passam ser o padrão. Diversos estudiosos se debruçaram a estudar as conseqüências desse fenômeno, desafio gigantesco do ponto de vista urbanístico, de infraestrutura, de meio ambiente. Também começaram a enxergar o impacto político sobre a sociedade humana, tão habituada a popular, através de sua extensa história, as zonas rurais.
Exemplo dessas conseqüências pôde ser claramente identificado num dos mais relevantes episódios do final do século 20, a desintegração da União Soviética. Quando os bolcheviques chegaram ao poder, em 1917, capturaram um país essencialmente agrário e, sobretudo sob o tacão stalinista, impuseram uma acelerada industrialização e urbanização. Pai da Perestroika, Mikhail Gorbatchev chegou ao poder em 1985, sob o signo de ser o primeiro chefe do Kremlin nascido depois da Revolução Russa e a simbolizar um país mais urbano, mais industrializado e com uma população cujas demandas por liberdade e melhor padrão de vida ultrapassavam qualquer possibilidade oferecida pelo fracassado modelo inaugurado por Vladimir Lênin.
A urbanização soviética criou uma sociedade mais sofisticada do ponto de vista de suas reivindicações, de suas aspirações e mesmo de sua capacidade de se mobilizar contra o status quo, num movimento que contou com a ajuda decisiva de Mikhail Gorbatchev, ao deslanchar reformas conhecidas como Perestroika e glasnost. Outros fatores contribuíram para a débâcle da URSS em 1991, como a ineficiência econômica estrutural do sistema e o avanço interno do nacionalismo nas repúblicas que formavam o país, mas a urbanização ocupa lugar de destaque na análise desse processo histórico.
A constatação deve tirar o sono dos dirigentes comunistas chineses. Ao contrário de Mikhail Gorbatchev, que abriu a política e manteve a economia engessada, Deng Xiaoping abriu o caminho, em 1978, para ousadas reformas econômicas, injetando capitalismo no país mais populoso do planeta, sem, no entanto, fazer qualquer alteração cardinal no sistema que concentra o poder nas mãos do Partido Comunista.
Porém, os mandarins chineses sabem que, em algum momento, as reformas econômicas, responsáveis por um crescimento anual médio na casa dos 9% nas últimas três décadas, terão de ser acompanhadas por um degelo político significativo. E o relógio a indicar a aproximação desse momento pode ser o impressionante movimento migratório em curso na China, uma urbanização sem precedentes na história da humanidade.
Em meados dos anos 1990, nada menos do que 80% dos chineses viviam no campo. Agora, esse índice se aproxima a passos largos dos 50%, e estima-se que, em três ou quatro anos, finalmente a maioria dos chineses já viva em centros urbanos, e não mais no campo, como no cenário de sua milenar história. Para se ter uma idéia da amplitude dessa migração, que muda a face do país, basta dizer que em trinta anos, cerca de 400 milhões de chineses, “dois Brasis”, trocaram a zona rural pelas cidades, atraídos pela possibilidade de melhores condições de vida.
E é nesse pano de fundo cada vez mais urbano também que se desenrola a revolução tecnológica. Expansão da internet, criação de redes sociais como Facebook e Twitter, lubrificam ações políticas, de informação e educacionais. Não se trata de, em países com grandes déficits democráticos ou de escolaridade, esperar mudanças profundas de curto prazo, mas naturalmente há uma clara ruptura com o cenário anterior.
Nenhuma sociedade hoje passa incólume a esses fenômenos globais, notadamente urbanização e revolução tecnológica, que têm conseqüências multidimensionais, como mudanças políticas, econômicas ou sociais. Países tão diversos como Coréia do Sul, México, Vietnã, África do Sul experimentam reformas há décadas, cada um à sua maneira.
Nesse cenário de mudanças impetuosas do começo do século 21, os regimes do mundo árabe seduziam potências ocidentais ao se apresentarem como garantidores da estabilidade, do fornecimento de petróleo e de freio à expansão do fundamentalismo religioso. Mas o jogo de conveniências se apóia em estruturas frágeis para o cenário contemporâneo: até quando seria possível manter as crescentes massas urbanas do mundo árabe longe das benesses da democracia e do crescimento econômico baseado na expansão do consumo e na criação de novas classes médias? O modelo estava fadado ao fracasso.
O diagnóstico, entretanto, não permite uma visão rósea sobre o estabelecimento de modelos democráticos no curto prazo em sociedades sem tradição nessa área. Democracias são construídas ao longo de processos e não por passe de mágicas ou por decretos. Tampouco existe qualquer garantia de que a caminhada para a criação de um regime político mais sensível à cidadania seja linear e não sofra perigosos ou extensos retrocessos.
O caso da Rússia é exemplar. Comparado com o período Yeltsin, o atual regime apresenta menos credenciais democráticas. Mas, por outro lado, seguramente os russos desfrutam hoje de um grau de liberdade incomparável com os anos de chumbo do período soviético. E dentro de dez ou vinte anos? As chances de mais democracia em Moscou parecem bem vigorosas.
Naturalmente, são abissais as diferenças entre o processo russo e o que ocorre no mundo árabe. Mas, como tendência histórica, parece inquestionável o fato de que, nos dois casos, a pressão por mais liberdades civis e mais prosperidade tende a crescer.
No curto prazo, a instabilidade no mundo árabe é um fator extremamente preocupante para Israel. Países como Egito e Jordânia, parceiros de acordos de paz, experimentam alto grau de incerteza política e social. Ventos sopram na direção de mais economia de mercado e mais pluralismo, mas certamente fundamentalistas religiosos e populistas alimentados pelo nacionalismo tentarão se aproveitar das águas revoltas para expandir sua atuação.
Nesse ponto, vale ressaltar um ponto importante. O ex-presidente egípcio, Hosni Mubarak, manipulava habilmente o quadro social e político de seu país, tolerando a Irmandade Muçulmana, embora a organização seja oficialmente banida. Os fundamentalistas eram usados como principal depositário da insatisfação contra o regime, já que a sociedade civil laica egípcia, fruto da repressão governamental, é bastante frágil. Assim, Mubarak buscava cultivar os extremistas religiosos como única eventual alternativa de poder, apresentando-se ao mesmo tempo como responsável pela manutenção do regime atual e angariando apoio externo.
A fórmula que rondava o mundo árabe nas últimas décadas, exemplificada pela estratégia mubarakiana, era a da opção pelo regime autoritário e ineficiente ou pelo regime fundamentalismo religioso. Trata-se de uma equação deletéria. O cenário global caminha, ainda que não de maneira linear, para um ambiente cada vez menos favorável para sistemas economicamente ineficientes. Portanto, a estabilidade oferecida pelo regime de Hosni Mubarak apresentava prazo de validade.
Se, no curto prazo, é inquestionável o aumento do temor sobre os rumos do mundo árabe, assombrado por ameaças como regimes fundamentalistas, guerras civis e, até mesmo, novas tentativas de autoritarismo, também é possível enxergar uma oportunidade de proporções históricas, no médio e longo prazo.
“Acreditamos que a maior garantia de paz é haver democracia em nossos vizinhos”, declarou em fevereiro, numa vista à Espanha, o presidente de Israel, Shimon Peres. “Estamos felizes ao testemunhar essa revolução democrática que está ocorrendo no mundo árabe”, acrescentou.
Em outros momentos, o veterano líder israelense não deixou de mencionar as ameaças de curto prazo.
“Estamos muito preocupados com a possibilidade de haver uma mudança de governo ou uma mudança no sistema eleitoral sem introduzir mudanças visando as razões que trouxeram essa explosão”, declarou Peres, referindo-se aos eventos no Egito, para depois exortar investidores estrangeiros a ajudarem a trazer tecnologia, desenvolvimento e abertura ao cenário egípcio. Uma exortação que deverá se intensificar pelo planeta ao longo do século 21.
O Jornalista Jaime Spitzcovsky, foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.