'Qualquer que seja o resultado das eleições em novembro, no dia 20 de janeiro do próximo ano, Israel terá um amigo no Salão Oval da Casa Branca'.Tal previsão sobre o futuro presidente norte-americano partiu do senador democrata Joseph Lieberman, que, com esta frase, reconhece que o adversário George W. Bush se notabilizou como aliado ferrenho do Estado judeu. Lieberman busca também jogar luzes sobre as credenciais do "correligionário" e candidato John Kerry, mobilizado em se apresentar como um aliado importante de Israel.
Alguns líderes da comunidade judaica norte-americana chegaram a descrever a disputa eleitoral, no que se refere a relações entre Washington e Jerusalém, como um cenário "de resultado positivo garantido". Destacam, de um lado, a sólida aliança da administração Bush com o Estado judeu e com o primeiro-ministro Ariel Sharon. De outro, mencionam o índice de "100% de votos pró-Israel" de John Kerry nos seus quase vinte anos de atuação como senador.
O candidato democrata, no entanto, deslanchou uma ofensiva nos últimos meses para dissipar dúvidas sobre suas posições em relação ao conflito israelo-palestino. Em 2003, Kerry chegou a criticar o projeto da barreira de segurança que Israel constrói para se proteger de terroristas provenientes da Cisjordânia. Também despertou preocupações ao sugerir que poderia nomear como enviado especial ao Oriente Médio o ex-secretário de Estado James Baker, ou o ex-presidente Jimmy Carter, tidos como "críticos em relação a Israel".
Neste ano, o democrata se esforça para mostrar apoio intenso a Israel. Defende enfaticamente a construção da barreira de segurança, descrevendo-a como "uma resposta legítima ao terror". Kerry também sustenta que a paz no Oriente Médio será viável "apenas se a participação dos EUA no processo for ativa, constante e nos níveis mais elevados". Sobre enviados especiais à região em conflito, a lista dos democratas passou a priorizar nomes como o do ex-presidente Bill Clinton e de seus ex-assessores Samuel Berger e Dennis Ross. Indicações polêmicas, como James Baker e Jimmy Carter, foram deixadas de lado.
A campanha democrata também recorre ao envolvimento afetivo e pessoal de Kerry com o judaísmo. Se eleito, o democrata será o primeiro presidente norte-americano com uma herança judaica, pois seus avós paternos eram judeus tchecos que se converteram ao catolicismo pouco antes de emigrar para os EUA, no começo do século passado. Pelo menos dois parentes do senador morreram no Holocausto.
O vínculo se estabelece também no presente. Cameron Kerry, irmão de John, converteu-se ao judaísmo vinte anos atrás. Um dos conselheiros mais influentes do candidato democrata, ele viajou a Israel em julho, quando visitou a barreira de segurança e o instituto Yad Vashem, onde obteve documentos sobre os parentes que morreram na barbárie nazista. Cameron se reuniu com Ariel Sharon, na tentativa de afastar rumores de que seu irmão manteria uma "postura crítica" em relação ao premiê israelense.
O Partido Democrata, tradicional reduto de minorias étnicas e religiosas, se mobiliza para manter a tendência de receber a maioria do voto judaico norte-americano. A última vez que um republicano obteve mais votos do que um democrata, no universo comunitário, foi em 1920, quando Warren G. Harding conquistou 43%, contra 19% de James Cox, de acordo com o pesquisador Steven Windmueller. Já os estrategistas de George W. Bush avaliam que seu candidato deve superar a marca da eleição de 2000, quando os republicanos tiveram 19% do eleitorado judaico.
O candidato à reeleição sonha em repetir a performance de Ronald Reagan, que, ao derrotar Jimmy Carter em 1980, obteve 39% do voto judaico. George W. Bush, para atrair eleitores judeus, conta com sua atuação na guerra contra o terrorismo, com o apoio ao primeiro-ministro Ariel Sharon e com a rejeição ao presidente da Autoridade Nacional Palestina, Yasser Arafat. O deputado republicano Tom DeLay define o atual presidente norte-americano como o "maior amigo de Israel que o mundo já viu".
Num encontro com lideranças judaicas na Flórida, o vice-presidente Dick Cheney mencionou a questão iraquiana, tema central de uma campanha que, ao contrário das mais recentes eleições presidenciais, será profundamente marcada por temas de política externa, por conta do cenário pós-11 de setembro. Cheney declarou: "Acreditamos que a remoção de Saddam Hussein e o surgimento de um Iraque livre vão, no tempo certo, ajudar a criar condições mais favoráveis a uma paz duradoura entre israelenses e palestinos".
Os republicanos acusam o candidato rival de "vacilar" em suas posições sobre Israel e sugerem que uma eventual administração Kerry, de olho num processo de paz, poderá colocar mais pressão sobre o governo israelense. Os democratas respondem com o argumento de que Kerry, além de apoiar o isolamento e a rejeição a Yasser Arafat, não forçará o Estado judeu a fazer concessões "que comprometam a segurança do país".
Republicanos e democratas também divergem na estratégia que modela a guerra contra o terror. O presidente George W. Bush consagrou uma política externa baseada sobretudo no peso militar e econômico dos Estados Unidos e que recebeu, de seus críticos, o rótulo de "unilateral". John Kerry sustenta a idéia de que seu país deve buscar o caminho do "multilateralismo", enfatizando laços diplomáticos com aliados e com organizações como as Nações Unidas. Para os republicanos, essa via coloca em segundo plano as necessidades de segurança dos EUA.
A Guerra do Iraque representa peça fundamental no debate da política de Washington para o Oriente Médio. O senador John Kerry votou a favor da invasão, mas depois criticou os rumos da intervenção, citando a falta de planejamento do pós-guerra e a necessidade de maior envolvimento, na reconstrução, de outros países e das Nações Unidas. A liderança democrata, no entanto, não defende uma retirada unilateral e imediata das tropas norte-americanas, pois teme que a saída seja interpretada, em nível global, como uma vitória das forças terroristas e pró-Saddam Hussein. Sem muito alarde, os arquitetos da diplomacia democrata não rejeitam a idéia, defendida pela Casa Branca, de alinhar o Iraque à política externa de Washington e, a partir de Bagdá, buscar construir um cenário geopolítico no mundo árabe e muçulmano mais favorável aos Estados Unidos. Embora concorde com esse princípio, John Kerry discorda da tática republicana, defendendo maior participação internacional, de países aliados ou de organismos como a ONU, no cenário iraquiano.
Os Estados Unidos, em 2004, realizam sua primeira eleição presidencial depois dos atentados de 11 de setembro. Temas como combate ao terrorismo e Iraque ocupam espaço central nos debates da campanha. E a comunidade judaica norte-americana, atenta, avalia quais são os melhores caminhos para se enfrentar os desafios deste começo de século 21.
O jornalista Jaime Spitzcovsky é editor do site www.primapagina.com.br e articulista da Folha de S. Paulo. Foi editor internacional e correspondente do jornal em Moscou e em Pequim.