Dilúvio e inundação são temas presentes na mente do brasileiro, em razão das chuvas que castigaram São Paulo e o sul do Brasil, nos primeiros meses do ano, e a tragédia que assolou o Rio de Janeiro. Entretanto, estas e outras questões ecológicas foram, há muito, contempladas na Torá.
Dilúvio e inundação são temas presentes na mente do brasileiro, em razão das chuvas que castigaram São Paulo e o sul do Brasil, nos primeiros meses do ano, e a tragédia que assolou o Rio de Janeiro. Entretanto, estas e outras questões ecológicas foram, há muito, contempladas na Torá.
Portanto, posso afirmar, maravilhada, que não há nada de novo sob o sol nesta habitação global chamada planeta Terra. A propósito, a palavra ecologia pode ser traduzida por ciência da habitação. Tomo de empréstimo estas salomônicas palavras: através das passagens bíblicas constato o pioneirismo das questões ambientais minuciosamente previstas na Torá, o maior tesouro do Povo Judeu, por isto conhecido como o Povo do Livro. Costumo inclusive declarar que o glossário da Ecologia está na própria Torá. Aliás, a palavra Torá advém do hebraico horaá, que significa instrução, e or, luz, ou seja, a luz que ilumina.
Há inúmeras festas, no calendário hebraico, ligadas ao meio ambiente: Shavuot, Sucot e Tu Bishvat. Oportuno ressaltar que o Rebe Menachem Mendel Schneerson, Rebe de Lubavitch, compara o homem à árvore do campo, ressaltando nela alguns aspectos básicos: raízes, tronco, galhos e folhas; e frutos. Através das raízes, a árvore retira o alimento que lhe possibilita suportar os ventos. Os galhos e troncos representam o crescimento e a aparência, enquanto os frutos contêm as sementes que fornecem as espécies com o potencial para o futuro. De forma análoga, o Rebe explica que as raízes de um homem representam sua qualidade espiritual, elo de ligação com D’us, sua verdadeira fonte de nutrição. O tronco, galhos e as folhas podem ser equiparados aos atos gerados pelo estudo da Torá, que permite ao homem crescer e se desenvolver. Já os frutos representam a perpetuação de atitudes dignas em relação aos familiares e à comunidade.
A festa de Shavuot tem vários nomes: “Festa das Semanas”, pois Shavuot em hebraico significa semanas; “Festa da Colheita”, pois em Israel é celebrada na época da safra do trigo; ou “Dia das Primícias”, por marcar o início da colheita das frutas. A tradição recomenda que se coma uma refeição de leite, produto da “terra que emana leite e mel”. Nesta festa, as sinagogas e casas judaicas são decoradas com galhos de árvores e flores. Em Shavuot, há 3.322 anos, diante de todo o Povo Judeu, D’us lhes outorgou a Torá na qual constam pioneiros mandamentos ecológicos.
Conforme orienta a filosofia judaica, existem dois tipos de leis. A lei que cria a vida – a Torá, e a lei criada pela vida, ou seja, a lei humana. Pois, enquanto as Leis Divinas são eternas, as humanas têm caráter temporário e geográfico.
No início do livro Gênese, após alertar Noah sobre o Dilúvio que faria cair sobre a Terra, D’us lhe ordena: “Faz para ti uma arca”, e o instrui de levar para a Arca toda espécie de animal. Esse episódio é uma demonstração da responsabilidade do homem em relação ao meio ambiente, e à conservação da Terra. O Criador determina que sete casais de cada espécie de animais puros e dois casais de cada espécie de animais impuros fossem levados para a Arca antes do Dilúvio. Dois cuidados podem ser percebidos: um, com a preservação das espécies animais; e outro, com a diversidade biológica, já que tanto os animais puros – casher – e impuros – não casher – deveriam ser salvos obrigatoriamente das águas do Dilúvio e conseqüente inundação.
O Rebe de Lubavitch faz distinção quanto às características que diferenciam o animal puro do impuro. Ensina que os dois aspectos que separam as espécies animais – ruminantes e com casco fendido – são metáforas da conduta que deve ser adotada pelo homem. Tal qual o animal necessita ruminar antes de digerir por completo o alimento, o homem precisa meditar e raciocinar antes de agir, não devendo fazê-lo sob impulso ou emoção. Quanto ao aspecto do casco fendido, oRebe afirma que o homem deve ter sua conduta dividida em dois sentidos: emocional e racional – lado esquerdo e direito. Integrá-los de modo a obter o equilíbrio é o objetivo da conduta correta. Em se tratando de animais puros e impuros, a porção semanal da Torá, parashá Shemini, cuja leitura é feita antes de Shavuot, contém a listagem dos animais puros e impuros, ou seja, os animais adequados ou não ao consumo alimentar (Levítico, 11: 1-47).
É impressionante que esteja nesta parashá tão especial.
De forma clara e definida, a Torá traz uma relação expressa dos animais que podem ou não ser ingeridos. Essa relação continua em vigor até hoje, não tendo nunca sido alterada, pois jamais foi encontrado algum outro animal com ambas as características. Desafio mesmo algum biólogo a provar o contrário. Também, não poderia deixar de ser de outra forma, pois as Leis divinas são eternas. Vale notar que o consumo da comida, adequada, a cashrut, juntamente com o principio da shemitá, pelo qual de sete em sete anos a terra descansa e não pode ser cultivada, e qualquer um pode colher o que quiser das árvores; juntamente com o Shabat, quando o Povo Judeu descansa no sétimo dia, e o ritual do abate dos animais sem causar dor e sofrimento, denominado de shechitá, são exemplos das restrições expressas na Torá ao domínio absoluto da natureza pelo homem, conforme determinado por D’us (Levítico, 25:4 e Deuteronômio, 15:1-2).
Voltando a Noah, é na referida Arca que aparecem os primeiros registros sobre a destinação do lixo, já que um andar inteiro era reservado para seu depósito, a fim de evitar a poluição das águas. A Arca tinha três andares. O terceiro andar inferior destinava-se ao depósito de lixo, o intermediário para alojamento dos animais e o superior para o homem (Gênese, 6).
Cumpre notar que existem outros mandamentos que tratam do cuidado com o lixo, no livro Deuteronômio, onde D’us expressamente ensina que os dejetos devem ser obrigatoriamente cobertos (Capítulo 23: 13-15).
É importante destacar que, ainda dentre os acontecimentos marcantes no episódio da Arca de Noah, ocorre um histórico marco divisor quanto ao uso dos recursos naturais pelo homem, bem como em relação ao seu comportamento: o Criador lhe ordena a construção da Arca utilizando, pela primeira vez, a madeira (Gênese, 6:14). Após o dilúvio, D'us permite ao homem, até então vegetariano, comer carne de animal, desde que respeite certas limitações: a proibição de retirar e comer de membro do animal vivo ou de seu sangue (Gênese, 9:3 e 4).
Em se falando de alimentação, dois preceitos negativos norteiam o consumo de carne. Impede-se que se cozinhe carne no leite e que se coma carne cozida em leite. Na Torá – de forma enfática – consta a proibição de se cozinhar o cabrito com o leite de sua mãe, ordenamento estendido a qualquer tipo de animal (Êxodo, 23: 19). Tais proibições são motivadas em função do significado do leite – que representa a vida – e da carne – que representa a morte. Interessante observar que o leite aparece na fêmea por ocasião do parto (início da vida). O leite e a carne são opostos. Um começa onde termina o outro, pois para consumir a carne é necessário matar, uma vez que é proibido comer parte de animal vivo.
A Torá contém inúmeras histórias poéticas da estreita ligação do homem com a árvore. Como, por exemplo, quando o Criador faz nascer uma aboboreira, que subiu por cima do Profeta Jonas, fazendo sombra sobre a sua cabeça, a fim de livrá-lo do seu enfado. Contudo, no dia seguinte, D’us envia um bicho, o qual feriu a aboboreira e esta secou. Jonas declara a extrema compaixão por uma árvore que, numa noite nasceu e na outra pereceu. O Profeta não plantou nem tampouco trabalhou para que a aboboreira crescesse. A esse respeito, também é curioso notar que a Toránão permite o corte de árvores frutíferas, mesmo em caso de guerra (Deuteronômio, 20: 19). Veja-se aqui representado o princípio do consumo sustentável, pois mesmo em caso de guerra, a Lei Divinadetermina que as árvores não devem ser destruídas. Esta proibição é semelhante ao princípio do bal taschit (proibição do desperdício), da não-destruição desnecessária.
O texto bíblico não demonstra apenas compaixão pelas árvores. Estende o manto protetor aos animais em inúmeros ordenamentos. Oportuno mencionar que as modernas sociedades protetoras dos animais têm origem bíblica. Note-se que existe Lei Divina determinando que o boi, carneiro ou a cabra, ao nascerem, fiquem por sete dias junto de sua mãe (Levítico, 22: 27). Com este ensinamento da Torá aprendemos a agir com os animais com a mesma cautela que agimos com o ser humano. Isto porque, de acordo com os preceitos judaicos, o menino recém-nascido fica sete dias com sua mãe, antes da circuncisão, o brit milá, símbolo da Aliança Sagrada de D’us com o Povo Judeu, através de nosso patriarca Abrahão.
Outrossim, vale registrar que o ápice da misericórdia se traduz em outro mandamento divino que proíbe que se peguem passarinhos ou ovos de um ninho, quando a mãe os estiver chocando. Aquele que poupa tal sofrimento ao animal é abençoado pela Torá com o prolongamento de seus dias. Esse mandamento contrasta de forma tão violenta com o que os nazistas submeteram às mães, no cúmulo da crueldade humana, de forma imperdoável, no Holocausto, há apenas pouco mais de 70 anos. Em lembrança aos meus familiares dentre os seis milhões de judeus assassinados, ao veicular e reavivar essa preciosa lição da Torá, do cuidado com o olhar e sofrimento da mãe animal ao serem levados seus filhotes, estou apontando uma norma de conduta a ser seguida pela espécie humana. Cabe, pois, uma reflexão: se assim deve-se comportar o homem em relação ao animal, que dirá em relação ao próprio semelhante?
Rabi Shimon Bar Yochai, autor do Zohar, o Livro do Esplendor, revela através de uma parábola a interdependência dos atos humanos. “Certa vez, vários homens se puseram ao mar. Num momento de lazer e leviandade, um dos passageiros começou a fazer um buraco no fundo do barco, no lugar em que estava sentado. ‘Que está fazendo?’ – gritou um dos seus companheiros de viagem, alarmado. ‘Que lhe interessa saber o que eu estou fazendo?’ – respondeu o homem. ‘Não estou fazendo um buraco onde você está sentado, e sim sob o meu assento!’ ‘Pode ser sob seu lugar’, responderam os outros, ‘mas a água encherá o bote, que adernará. E todos nós nos afogaremos!’ ”
Hoje, estamos perfeitamente cientes de que os problemas ecológicos locais ultrapassam fronteiras e produzem, de fato, conseqüências planetárias.
Conta o Midrash que o Rei Salomão, ao deparar com um camponês muito velho plantando uma árvore, perguntou-lhe por que estaria fazendo isso se não comeria de seus frutos. Respondeu o ancião que tendo-se aproveitado do trabalho de seus avós, plantava agora para os netos e, ele também, preocupava-se ainda mais pelos seus netos. Assim é que, a explicação tão simples do camponês ao Rei traduz-se na idéia de uma responsabilidade ética e coletiva em relação ao
meio ambiente, o conceito de shomrei adamá, guardiães da terra. Afinal, não somos obrigados a acabar o trabalho, mas não podemos recusar o seu concurso, conforme nos
ensina o indispensável Pirkei Avot (Capítulo 2: 21).
Por fim, D’us não criou a Terra para se tornar um caos, e sim, para ser habitada. Para tanto, ordenou que as cidades disponham de juízes e policiais (Deuteronômio 16: 18). E não é este um princípio de Direito Ambiental, dividido em medidas preventivas e repressivas? A atuação coordenada de juízes e policiais permite que a sociedade viva de acordo com as leis corretamente interpretadas e aplicadas.
Algo interessante: o princípio da não-destruição expresso através da proibição do corte de árvores frutíferas está na porção semanal de Shoftim, Juízes, assim como, logo em seguida, está a determinação de responsabilidade por novas construções. Enfim, o fato é que tudo está na Torá, e não se pode transgredir a lei, alegando desconhecimento – esta é uma regra mundial. No Pirkei Avot, Rabi Iochanan perguntou um dia aos seus discípulos: o que é que o homem há de escolher de preferência? E dentre os atributos apontados, tais como, o bom olhar, um amigo sincero, um bom vizinho, a Providência, ele ficou com o bom coração (Capítulo 2: 13). Concluindo, espero que possamos todos, sociedade, empresários, juristas e governo, refletir sobre as diretrizes através das magníficas lições dos Livros Sagrados, que estão perto de todos nós – judeus e não judeus.
Finalmente, tendo em vista que os problemas ambientais são “socializantes”, independentes de classe social, profissão, credo ou raça – afinal, somos parte da raça humana – devemos ter em nossas mentes e corações a sábia conclusão, uma vez mais recorrendo ao Rei Salomão, de que uma geração vai e outra vem, mas a Terra permanece para sempre.
Ann Helen Wainer é advogada inscrita na OAB/RJ.
É autora dos livros Legislação Ambiental Brasileira (Editora Forense, 1991) e Olhar Ecológico através do Judaísmo (1996), este último agraciado na categoria de Ensaio Ecológico do ano de 1998 pela União Brasileira de Escritores. Vive nos Estados Unidos, onde fez o mestrado em Artes e Estudos Religiosos.