O quanto de nossa vida está em nossas mãos? Afirmamos que é D’us quem guia nossos passos, mas isso não nos exime da responsabilidade por nossas escolhas. Este assunto é muito relevante, principalmente antes de Rosh Hashaná e Yom Kipur, quando seremos submetidos ao julgamento Divino, tendo que prestar contas de nossas ações no ano que passou e pedir que o próximo ano seja bom e doce.
O equilíbrio entre a Divina Providência e o livre-arbítrio do homem é um dos assuntos mais complexos do Judaísmo. Acreditar na Divina Providência – em hebraico, Hashgachá Pratit – significa acreditar que tudo neste mundo tem uma razão de ser e nada acontece por acaso. Significa acreditar que existe um Criador que comanda o Universo, e tudo o que acontece tem um motivo. Contudo, ao criar o homem, D’us concedeu-lhe o livre-arbítrio – o direito de decidir seu caminho.
Perante essas duas questões, são muitas as perguntas que surgem. Ao nos conceder o livre-arbítrio, D’us nos deu o poder de modificar o nosso destino? Mas, se tudo acontece por algum motivo, isso significa que tudo está predeterminado por D’us? Se nosso caminho foi predeterminado pelo Criador, por que rezamos, trabalhamos ou até mesmo vamos ao médico quando doentes? E como podemos ser responsabilizados por nossos atos?
De um lado, está escrito que tudo já está determinado, mas, de outro, também está escrito que a escolha de nossas ações está em nossas mãos. A realidade é que entendemos pouco deste assunto, podendo entender apenas alguns conceitos. A Torá nos fala que D’us determinou as “lições” que temos que aprender durante o tempo que passamos na Terra. Contudo existem várias maneiras de aprendê-las, e a maneira como iremos aprendê-las depende de nossas escolhas. Podemos levar mais ou menos tempo, podemos escolher um caminho mais direto e mais fácil ou um mais longo e mais doloroso. Mas, no final, as lições serão aprendidas.
Ilustraremos por meio de um exemplo simples o que são “lições” pré-determinadas. Dois alunos preparavam-se para o Vestibular. Um se esforçou e estudou muito e o outro não levou os estudos a sério. O resultado: o que estudou entrou na faculdade que queria e, o outro, não conseguiu entrar e terá que prestar o Vestibular novamente. A lição que os dois alunos aprenderam é a mesma: que é importante estudar, mas ao tomarem atitudes diferentes aprenderam também de formas diferentes. O mesmo se aplica às escolhas em nossa vida.
Escolha a vida
A verdade é que muito do que acontece em nossa vida não depende de nós – está além do nosso poder. Quanto ao que não depende de nós, nós não temos escolha.
Uma pessoa não escolhe ficar doente ou passar por certas situações difíceis. É inegável que às vezes nos colocamos em situações ruins, mas nesse caso estamos falando das vezes em que isso não ocorreu devido a alguma má escolha nossa. Contudo, mesmo quando não podemos escolher a situação, não perdemos o livre-arbítrio. Nesses casos, nossa liberdade consiste em escolher como vamos reagir e lidar com cada situação.
A Torá, em vários de seus trechos, afirma que D’us coloca diante de nós dois caminhos: o caminho da vida e o caminho da morte; o caminho da bênção e o caminho da maldição. E D’us pede que optemos pela vida.
O ser humano tem um instinto primário de sobrevivência. Alguém em plena consciência escolheria a morte? É óbvio que não. Há diversas explicações para esse versículo da Torá. Uma delas diz que existem dois tipos de vida: uma vida que é vida e uma vida que é morte. Na Torá também está escrito que os Justos são chamados de vivos mesmo após a morte e que os perversos são chamados de mortos mesmo enquanto vivos.
Um exemplo da Física pode nos ajudar a ilustrar esses conceitos. Na Física existem buracos negros – corpos celestes com uma intensa atração gravitacional, de modo que nem mesmo a luz escapa de seu interior. Coloquialmente, o buraco negro “suga” para si tudo que dele se aproxima. O mesmo acontece neste mundo. Existem pessoas que “sugam” energia. Elas vivem um tipo de vida que não é exatamente vida; é simplesmente existir e “sugar” energia deste mundo. Por outro lado, há pessoas que “geram” energia, que espalham luz, bondade e vida pelo mundo.
D’us nos dá o livre-arbítrio de escolher que tipo de vida queremos levar e nos ordena – escolha a vida: seja produtivo, trabalhe para fazer o bem para este mundo. Escolha ser um bom filho, um bom pai, um bom membro da sociedade; faça escolhas boas e positivas.
É importante ressaltar que D’us nos ordena escolher, e o “não escolher” ou se omitir, também é uma escolha. Quando a pessoa escolhe não fazer nada e se deixar levar pelas circunstâncias, isso também é uma escolha.
Existem três tipos de pessoas. As pessoas que agem e fazem acontecer, os espectadores que veem a vida acontecer, e aqueles que perguntam “o que aconteceu”?
O Judaísmo nos ensina a ser proativos – a fazer coisas positivas acontecerem – porque por meio de boas ações podemos constantemente mudar nosso destino para melhor.
Conta-se que havia um rabino e professor muito sábio. Seus alunos ficavam impressionados porque seu mestre parecia ter uma resposta para tudo. Certo dia, um aluno decidiu testar o professor. Estava convencido de que iria conseguir colocá-lo diante de uma pergunta sem resposta.
Pegou uma borboleta e a escondeu em sua mão e foi perguntar ao rabino o que tinha escondido na mão. Mesmo que o rabino adivinhasse a resposta, ele não teria como saber se a borboleta estava viva ou morta. Se o rabino dissesse que ela estava viva, o aluno iria esmagar a borboleta; se dissesse que estava morta, ele a deixaria voar.
O aluno então chegou no rabino e perguntou, “O que tenho na mão?”, e o rabino respondeu que era uma borboleta. “Ela está viva ou morta?”, perguntou o rapaz e o professor lhe respondeu, “Isso depende de você”.
D’us nos dá uma alma pura, mas cabe a nós decidirmos as escolhas que vamos fazer.
Escolhas humanas e Escolhas Divinas
O ser humano frequentemente tem dificuldade em distinguir que situações dependem de seu livre-arbítrio e quais são produto da Divina Providência. E, muitas vezes, transferimos para D’us o que é responsabilidade nossa. Fazemos uma má escolha, sofremos as consequências e dizemos que D’us quis assim – que é parte do caminho determinado por Ele. Há os que chegam a dizer: “Se abandonei minhas tradições, se me desconectei, se me afastei do meu Povo e de minhas tradições…foi porque D’us me levou a esse caminho”.
Ao mesmo tempo, quando D’us atua em nossas vidas, muitas vezes acreditamos que isso é fruto único de nossas escolhas. Muitos dos que têm sucesso financeiro, ou muita saúde, atribuem esses resultados somente a seus esforços.
Acreditamos que o lugar onde moramos – isso sim, foi escolha nossa. Contudo, nossos Sábios dizem que onde estamos morando é uma escolha Divina. O Povo Judeu quase nunca escolheu onde morar. Quando olhamos para nós mesmos e para nossos antepassados – por quantas cidades e quantos países já passamos? Foi por escolha ou existia uma força maior que comandava os nossos passos?
O local onde nos encontramos raramente é uma escolha plena nossa. D’us nos leva ao local onde temos uma missão a cumprir. Isso não quer dizer que vamos permanecer naquele lugar para sempre. Existem missões mais complexas, que podem requerer nossa permanência durante anos naquele lugar e existem missões mais simples, rápidas, para as quais uma breve passagem é o suficiente.
De maneira geral, os passos de cada pessoa são guiados por D’us. Ele nos leva até onde devemos estar, porém se vamos cumprir ou não nossa missão depende de nossas escolhas.
O Baal Shem Tov, fundador do Chassidismo, cita o Salmo 121 que diz “D’us é tua proteção. Como uma sombra, te acompanha a Sua destra”. O Baal Shem Tov usa essa alegoria para retratar a proteção Divina - escrevemos nosso destino; mas, como uma sombra, D’us acompanha os nossos movimentos.
Além do nosso poder
Existe muito nesta vida que está além da nossa capacidade de transformar, de melhorar. Contudo, não sabemos ao certo o que conseguiremos mudar e o que está além de nossas possibilidades. A Torá nos ordena que se alguém está doente, esse alguém deve procurar um médico, ou que devemos trabalhar para nos sustentar e assim por diante. Ensina-nos que precisamos nos dedicar e batalhar pelos nossos objetivos e fazer tudo que está ao nosso alcance. A Torá enfatiza a importância do esforço humano e também nos diz que, junto com nossos esforços, devemos lembrar que a reza, a prática da Tzedaká e o estudo da Torátambém têm um grande poder que nos permite alcançar nossos objetivos.
O Judaísmo nos ensina a não sermos passivos diante da vida. Contudo, há certos momentos em que já não há mais o que fazer, e nesses momentos entregamos tudo na mão de D’us. Não que antes não estivesse na mão de D’us; tudo está sempre na mão de D’us. Mas D’us pede a nossa participação e o nosso empenho em tudo que nos diz respeito.
O mesmo acontece em relação a Rosh Hashaná e Yom Kipur. Não basta ir à sinagoga. D’us pede o nosso empenho – pede as nossas orações, nosso arrependimento sincero, e nossas resoluções para melhorar nosso comportamento futuro. Temos que fazer a nossa parte.
A Tefilá
A Tefilá (a reza) constitui uma forma de atuarmos nos mundos espirituais; principalmente nos dias de Rosh Hashaná e Yom Kipur. Nesses dias tão sagrados, passamos por uma purificação e uma elevação espiritual. Rezamos para que D’us decrete um ano bom e doce, com saúde, sucesso; um ano em que nossos pedidos sejam atendidos.
Nossos Sábios relatam duas situações ligadas ao poder de nossas rezas. Dizem que, em determinados casos, nossos pedidos já foram aprovados pelos Céus, mas por algum motivo ainda não se materializaram. Por meio da oração conseguimos trazer esses decretos positivos para o nosso mundo material. É por esse motivo que em nossas rezas há frases que falam de coisas materiais.
A segunda situação está ligada à verdadeira essência da Tefilá. Ao rezar nos elevamos a níveis espirituais mais altos e pedimos por uma nova Vontade Divina. Rezamos pedindo Yehi Ratson Lefanecha - que seja a Tua Vontade - para que D’us atenda nossos pedidos mesmo que não tenham sido aprovados. Nossos Sábios nos dizem que por meio da Tefilá é possível, em alguns casos, mudar algum decreto Divino – criando uma “nova” vontade em D’us. É por esse motivo que a nossa Tefilá é tão importante, em especial nesses dias.
Nas orações de Rosh Hashaná e Yom Kipur está escrito que eliminamos o mau decreto por meio do arrependimento, da oração e da prática da Tzedaká (...U’Teshuvá, U’Tefilá U’Tzedaká maavirin et roa ha-guezera). Isso significa que podemos e temos a força de mudar o nosso destino.
Saber como pedir
Chegamos em Rosh Hashaná e Yom Kipur com uma lista de pedidos a D’us. Contudo, há várias formas de pedir e é importante saber como fazê-lo.
Pedimos saúde, sustento, amor, felicidade, paz e sucesso. Alguns pedem uma promoção no trabalho, outros querem fechar um negócio, outros pedem por uma esposa ou um marido.... Chegamos com nossos méritos e deméritos e D’us “levanta a nossa ficha” e avalia os nossos pedidos. Merecemos o que estamos pedindo?
Podemos nos colocar diante de D’us com nossa lista de pedidos ou podemos nos posicionar como Seus servos neste mundo. Quando rezamos perante o nosso Criador sabemos que cada um de nós foi enviado a este mundo com uma missão a cumprir.
Para cumprirmos essa nossa missão, para fazermos o bem, educarmos nossos filhos num bom caminho, para mantermos nossas tradições, para que trabalhemos em Sua obra, precisamos de saúde, sustento, tranquilidade, paz de espírito, e assim por diante. Quando pedimos desta forma, a probabilidade de sermos atendidos é bem maior. Não estamos pedindo para nós, mas sim, para termos as ferramentas para cumprir a nossa missão na Terra.
Conta-se que um dia o profeta Eliyahu Hanavi apareceu perante um homem de muita fé e lhe disse que lhe concederia um pedido. Retornaria no próximo dia para saber qual este seria...
O homem foi à casa de seus pais e perguntou: “Pai, o que eu peço?”. O pai lhe respondeu: “Filho, estamos numa situação financeira muito difícil. Pede uma barra de ouro”. O homem foi até sua mãe com a mesma pergunta e a mãe respondeu: “Filho, sou cega. Pede para eu voltar a enxergar”. Tendo consultado seus pais, o homem foi falar com sua esposa, que disse: “Estamos casados há muitos anos e não temos filhos. Pede um filho”.
O homem não sabia o que fazer e pediu que D’us o iluminasse. No próximo dia, encontrou Eliyahu Hanavi e disse: – “Quero que minha mãe veja o meu filho num carrinho de ouro”.
Esta alegoria ensina que nestes dias tão auspiciosos, não é só pedir, temos que saber como pedir.
Habilidade de responder
Livre-arbítrio significa assumir a responsabilidade por nossa vida. Mas o que é responsabilidade? É a capacidade de escolher a nossa resposta e reação diante de uma situação. Se nada acontece por acaso, isto significa que se nos encontramos em uma certa situação, isso é decidido pela Divina Providência. Se nos encontramos numa situação em que nos é dada uma chance de fazer o bem, se temos o poder de ajudar, então devemos tomar uma atitude.
Rashi, o grande comentarista da Torá, traz um comentário sobre o versículo da Torá: “Não ficarás impassível diante do sangue do teu irmão… e amarás ao próximo como a ti mesmo”. Citando o Talmud, Rashi diz: Se ladrões ou animais perigosos estão próximos de uma pessoa ou se ela está se afogando e você está vendo isso, podendo ajudar, e se omite, então você ficou impassível diante do sofrimento de outra pessoa. Você viu e se omitiu.
O Rebe explica o que significam essas palavras do Rashi. Já que você foi posto naquela situação, é sinal de que você podia salvá-la, que podia fazer alguma coisa por aquela pessoa.
Por meio da Divina Providência D’us nos dá a oportunidade de fazermos o que precisa ser feito. Contudo, D’us nos dá a liberdade de optar por tomar uma atitude ou por não fazer nada. Não podemos ficar impassíveis e dizer “está nas mãos de D’us”.
Rosh Hashaná e Yom Kipur
Costuma-se dizer que Rosh Hashaná é o Ano Novo judaico. Contudo, Rosh Hashaná é a única festa judaica que não está ligada somente ao Povo Judeu. Rosh Hashaná comemorao nascimento da humanidade, de todos os homens, judeus e não-judeus. Com o nascimento da humanidade, nasce também nossa responsabilidade social, como ser humano responsável pelo mundo que D’us criou.
Rosh Hashaná não é somente um dia de julgamento, Rosh Hashaná é um dia da coroação de D’us como Rei do universo.
Nos dois primeiros dias do mês de Tishrei, comemoramos Rosh Hashaná, dia em quecoroamos D’us. No décimo dia do mesmo mês é Yom Kipur. É o dia do arrependimento e do perdão Divino. O homem foi colocado neste mundo com um propósito, uma missão e, em Yom Kipur, D´us nos dá um dia em que podemos nos arrepender de nossos atos, modificar os nossos caminhos e voltar à nossa missão.
Em Rosh Hashaná e em Yom Kipur examinamos a forma como vivemos e como utilizamos o tempo que nos é conferido por D’us. Fazemos uma introspecção de nossas escolhas. Será que escolhemos os valores certos, agimos corretamente e fizemos o bem, dentro de nossas possibilidades? Não somos simples robôs, que vivem o determinismo. Podemos não ter escolha plena dos caminhos que vamos trilhar, mas escolhemos como vamos lidar com as adversidades e oportunidades que a vida nos traz.
Não escolhemos ficar ricos ou não, ter saúde ou não. Nossa escolha é optar por fazer o bem ou o mal. Sempre podemos escolher agir dentro da moralidade ou não, ser éticos ou não, pessoas boas e corretas ou não. É nisso que reside a nossa escolha e é isso o que é julgado em Rosh Hashaná e selado em Yom Kipur. O que fizemos na prática para sermos bons e corretos? Como estamos contribuindo para este mundo? Estamos sabendo viver uma vida significativa ou estamos simplesmente levando a vida e vendo o tempo passar?
Não estamos nesta vida por acaso e não nos encontramos em determinado lugar por acaso. Cada momento em que estamos vivos tem sua razão de ser e com isso vem uma grande responsabilidade.
Quando chegamos próximo a Rosh Hashaná e Yom Kipur repensamos a nossa relação com o mundo e com o nosso Criador. Nestes dias, D’us também “repensa” a Sua relação conosco e com o mundo. Nestes dias tão sagrados escolhemos D’us e, a cada ano, D’us também nos escolhe.
Rabino Gabriel Aboutboul é rabino da Sinagoga de Ipanema no Rio de Janeiro e palestrante.