A Haftará lida no primeiro dia de Rosh Hashaná conta a história de Hanna. Trata-se da história de uma mulher estéril, que se tornou um dos modelos históricos do fervor da oração. Em resposta à sua súplica, do fundo do coração, D’us a fez mãe de Shmuel, o maior dos Juízes, um profeta comparado a Moshé e Aaron.
Shmuel se tornou o líder da nação durante um de seus períodos mais difíceis e ele a trouxe de volta à sua glória anterior. De sua casa em Ramah, ele viajou por toda a Terra de Israel, ensinando, julgando e inspirando. Além disso, foi o profeta que ungiu os primeiros dois reis do Povo Judeu – Shaul e David.
O Livro de Shmuel se inicia com a história de Hanna, mulher de Elkaná. Ela era uma mulher que desejava um filho mais do que tudo no mundo. Mas, há dez anos ela tentava, em vão, engravidar. O Tanach nos conta que Elkaná e sua família costumavam fazer peregrinações a Shiló, onde havia um Tabernáculo, um Mishkan – o predecessor do Templo Sagrado de Jerusalém. O líder da nação, à época, que oficiava nesse Santuário, era Eli, o Cohen Gadol, um dos maiores juízes, sucessor de Sansão. Certa vez, durante uma visita a Shiló, Hanna foi ao Tabernáculo para abrir seu coração a D’us. Eli, o Cohen Gadol, estava sentado no umbral da porta, de onde a observava. “Ela estava profundamente amargurada”, conta-nos o Livro de Samuel (Shmuel, 1:10), “e ela orou ao Eterno, chorando muito”. Hanna chorava porque, como ensinam nossos Sábios, os portões das lágrimas nunca se fecham (Talmud, Berachot 32b). E ela faz um voto: “Eterno, Senhor dos Exércitos! Se olhares para a aflição da Tua serva, Te lembrares de mim e não Te esqueceres da Tua serva, e deres à Tua serva um descendente, eu o darei ao Eterno por todos os dias da sua vida...” (ibid 1:11). Hanna prometeu que se fosse abençoada com um filho, ela o dedicaria exclusivamente a D’us. Os Sábios nos dizem que Hanna pediu por um filho que fosse notável por sua sabedoria e piedade.
Eli, o Cohen Gadol, observava Hanna enquanto ela orava. Somente seus lábios se moviam, mas sua voz não se fazia ouvir. Eli, então, pensa que ela estivesse bêbada. Ele fica perplexo com sua conduta – Hanna era uma das mulheres mais justas à época – e ele se volta aos Urim v’Tumim buscando uma resposta. Urim v’Tumim eram 12 pedras preciosas afixadas no peitoral usado pelo Cohen Gadol, nas quais estavam gravados os nomes das tribos.
De acordo com o Zohar, os Urim v’Tumim eram os Nomes de D’us de 42 e de 72 letras, colocados nas dobras do peitoral, que faziam com que as letras gravadas nas pedras se acendessem sequencialmente, de modo a emitir uma resposta a uma pergunta feita pelo Sumo Sacerdote.
Eli consultou os Urim v’Tumim e quatro letras se acendem: Shin, Resh, Kaf, Hei. Eli supôs que as letras soletrassem a palavra Shikorá – bêbada. Mas, na realidade, as letras deveriam ter-se alinhado para soletrar a palavra KeSará – como Sara. As pedras Urim v’Tumim indicaram a Eli que a mulher que estava diante do Tabernáculo era como a Matriarca Sara, que, como Hanna, era estéril e orou pedindo um filho. As quatro letras significavam também Kesherá – ela é digna. O Gaon de Vilna explica que o erro de Eli em ler os Urim V’Tumim indicava que a Divina Providência o havia destituído de Inspiração Divina naquele momento.
Eli disse a Hanna, “Durante quanto tempo você ficará bêbada? Remova esse vinho de seu corpo!” Hanna protesta dizendo que não estava bêbada. “Não bebi vinho nem bebida alguma forte, e derramei minha alma perante o Eterno. Não julgue que Sua serva seja uma mulher vulgar – pois foi movida por muito sofrimento e raiva que falei até agora”.
Eli, que erroneamente atribuíra a Hanna uma conduta imprópria – profanar o Tabernáculo com sua embriaguez – além de acalmá-la, a abençoa. “Vai-te em paz”, diz-lhe. “O D’us de Israel te concederá o pedido que lhe fizeste” (ibid 1:17).
O Livro de Samuel nos conta que “Assim a mulher seguiu seu caminho, e comeu, e não mais era triste o seu semblante”. O Maharal de Praga explica que o rosto de uma pessoa é a janela de sua alma: Quando Hanna estava tão amargurada com sua esterilidade, sua infelicidade se refletia em sua face; mas quando recebeu a bênção do maior homem de sua geração, o brilho em sua face fazia transparecer seu júbilo.
Pouco depois a bênção é cumprida. “Elkaná conheceu a Hanna, sua mulher, e o Eterno se lembrou dela. E aconteceu, com a passagem do período de dias em que Hanna concebera, que ela deu à luz um filho. Ela o chamou de Shmuel, e assim disse: ‘Eu o pedi ao Eterno’ ”. Conta o Midrash que Ele a atendeu por causa da fé e confiança de Hanna em D’us (Bereshit Rabah 56:2). Nossos Sábios nos ensinam que as bênçãos são difíceis de se cumprir se a pessoa não tem fé n’Aquele que é a Fonte de todas as bênçãos.
Segundo nossos Sábios, D’us “lembrou-Se” de Hanna e ela concebeu em Rosh Hashaná, que é chamado de Yom HaZikaron, o Dia da Recordação. E ensinam que o mesmo ocorreu com Sara, nossa primeira Matriarca – mãe de Yitzhak, nosso segundo Patriarca – que concebeu em Rosh Hashaná. Esses nascimentos, que mudaram o curso da História Judaica, são frequentemente mencionados na liturgia desse dia. Como dissemos acima, a história de Hanna é lida como Haftará do primeiro dia de Rosh Hashaná.
O legado de Hanna ao Povo Judeu
Hanna trouxe ao mundo não apenas Shmuel, mas também outros filhos. Além de ter-nos dado um dos maiores profetas e juízes, Hanna se tornou o paradigma da prece sincera. Algumas das leis da oração do Shemonê Esrê (a Amidá) derivam das rezas que ela murmurou no Tabernáculo, em Shiló: que se deve orar em silêncio e que as palavras devem ser enunciadas, mas não em voz alta ao ponto de serem ouvidas pelos demais.
O Livro de Shmuel registra a Canção de Reza de gratidão de Hanna, que ela compôs após dar à luz a Shmuel. Sua canção é considerada uma das dez maiores canções proféticas da História. Trata-se de uma série de profecias acerca de futuros milagres de salvação.
O tema central é a constatação de que o triunfo e a derrota, riqueza e pobreza, grandeza e degradação, não são condições permanentes, pois as boas ações e a oração podem produzir mudanças na condição humana. Esse é um dos temas fundamentais de Rosh Hashaná.
A Canção de Hanna inclui uma prece por seu filho Shmuel: “Eterno, que os que lutam contra ele sejam destroçados. Que os Céus caiam sobre eles. Possa o Eterno julgar até os confins da terra; possa Ele atribuir poder a Seu rei e causar orgulho àqueles que Ele ungiu” (ibid 2:10). Shmuel ungiu Saul e David – os primeiros reis de Israel – e Hanna orou por seu sucesso. Mas, mais do que uma prece por Shmuel e os reis a quem ele diretamente elevou à grandeza, a Canção de Hanna é uma oração pela Nação Judaica: segundo a Targum Yonatan, ela rezou por todos os judeus ao longo da história, e pelo Mashiach, que é chamado de “ungido por Shmuel” porque ele descenderá do Rei David, a quem Shmuel ungiu (Yalkut Shimoni).
Assim, Hanna, mulher estéril que durante muitos anos chorou e pediu por um filho, tornou-se não apenas a mãe de Shmuel – um de nossos maiores profetas e aquele que ungiu nosso maior rei, David, que é um antepassado do Mashiach – mas a mãe de todo o Povo Judeu, para todas as gerações. Não é mera coincidência o fato de que, como nossa Matriarca Sara, estéril, Hanna também concebeu em Rosh Hashaná – a início do Ano Judaico –, dia no qual os judeus de todo o mundo proclamam nas sinagogas a soberania de D’us e se dedicam a Seu serviço, assim como Hanna prometeu que seu primogênito o faria.
Rosh Hashaná: a oportunidade de um novo começo
Rosh Hashaná, literalmente, a “cabeça do ano”, é o início de um novo ano. É a oportunidade de cada pessoa de começar sua vida de novo. Certamente, a cada dia – ou mesmo, a qualquer momento em nossa vida – podemos optar por tomar diferentes caminhos na vida – melhorar o que é preciso – mas Rosh Hashaná é o momento mais auspicioso do ano para fazê-lo. Trata-se de um novo começo. Um novo ano representa novas possibilidades.
Muitos de nós se acostumam com o mundo e com a vida do jeito que está. Muitos são pessimistas sobre o futuro do mundo, especialmente à vista dos recentes eventos. Muitos indivíduos e mesmo nações se veem presa de círculos viciosos, e às vezes parece não haver saída.
Rosh Hashaná nos ensina que nada na vida é predeterminado – e que o futuro pode ser radicalmente diferente do presente. A história de Hanna nos faz lembrar que é possível não apenas uma mulher estéril conceber, mas dar à luz um profeta. A história de Hanna trata de uma completa reversão do futuro.
De fato, não foram apenas nossa primeira Matriarca, Sara, e Hanna que foram lembradas por D’us em Rosh Hashaná. Yossef, filho de Yaacov, também foi lembrado em Rosh Hashaná. Depois de passar 12 anos em uma prisão egípcia, depois de ser acusado de um crime que não tinha cometido, Yossef foi libertado em Rosh Hashaná. Naquele dia, além de ganhar a liberdade, ele foi elevado da prisão à autoridade suprema. Como relatam as porções finais do Livro de Gênesis, Yossef, após interpretar corretamente os sonhos do Faraó, foi nomeado Vice Rei do Egito. Consideremos, então: na manhã de Rosh Hashaná daquele ano, ele acordara em uma prisão egípcia; naquela noite ele adormeceu como o líder de facto da superpotência da época...
A Torá não visa a ser um livro de História Judaica Antiga. É o modelo para a vida de qualquer judeu: suas histórias se aplicam a qualquer judeu. A Torá nos conta a história de Sara, Hanna e de Yossef, porque estas se aplicam a todos nós – em Rosh Hashaná, D’us se lembrou deles e Ele também se lembra de todos nós, Seus filhos. Por meio da oração, do arrependimento – corrigindo nossos erros e fazendo um empenho para melhorar – da tzedaká e da prática de boas ações – atos de santidade e bondade – cada um de nós pode mudar o curso de sua vida. Cada um de nós pode ser elevado da tristeza à alegria, do fracasso ao sucesso, da carência à riqueza – material e espiritualmente. O conceito de destino é estranho ao Judaísmo: em qualquer momento de nossa vida, mas especialmente em Rosh Hashaná, podemos mudar nosso destino.
Ao recitarmos as preces neste Rosh Hashaná, ao ouvirmos a Haftará no primeiro dia da festividade, relatando-nos a história de Hanna, levemos a sério as lições por ela transmitidas. Explicamos acima – e isso merece ser repetido – que Hanna concebeu porque tinha fé na bênção de Eli de que o D’us de Israel concederia seu pedido. Nós, também, devemos ter fé – de que se fizermos um esforço honesto, D’us nos abençoará e concederá todos os pedidos de nossos corações.
BIBLIOGRAFIA
Nevi’im Rishonim - The Prophets - The Book of Shmuel. Edição Rabino Nosson Scherman - The Artscroll Series. Mesorah Publications, Ltda.