Rabi Abraão ben Meir Ibn Ezra, famoso comentarista da Torá, foi uma das mais brilhantes personalidades da Idade de Ouro da Espanha medieval. Durante o período em que viveu, a Espanha, então sob domínio muçulmano, tornara-se o maior centro cultural judaico do mundo.

Rabi Ibn Ezra conseguiu harmonizar os princí-pios da religião judaica com o mundo da ciência e da filosofia.

Dotado de mente privilegiada aliada a um espírito crítico, Ibn Ezra explorou e se destacou em praticamente todas as ciências da época. Além de profundo estudioso e conhecedor da Torá, era também um grande exegeta, poeta litúrgico e secular, filosofo, gramático, tradutor, matemático, médico e astrólogo. Para ele, não havia conflito entre ciência e religião, pois considerava que a ciência e a astrologia constituíam a base dos ensinamentos judaicos.

Escritor extremamente prolixo, Rabi Ibn Ezra produziu uma extensa literatura da qual, infelizmente, grande parte se perdeu. Entre suas maiores obras estão Comentários do Pentateuco, Sefer Ha-Shem, Comentários sobre Cinco Meguilot, Comentários do Livro de Jó, entre outros. Seu legado espiritual é inestimável, pois ajudou a aproximar judeus de diferentes níveis sociais e intelectuais da Torá. Seu monumental trabalho tem influen-ciado gerações inteiras, até os dias de hoje.

Ibn Ezra tornou-se uma figura lendária; suas obras conseguem despertar no coração do povo judeu sentimentos de amor para todo Israel e de identidade com o sofrimento de nosso povo. Rabi Abraham ibn Daud, o ‘Raavad’ (1110-1180), contemporâneo e conterrâneo de Ibn Ezra, escreveu sobre ele: “Ibn Ezra fortalece o povo de Israel com canções e com palavras de conforto”.

Sua vida

Pouco se sabe sobre a vida pessoal de Rabi Abraão Ibn Ezra, assim como a de muitas outras personalidades judaicas do passado. Sabe-se que nasceu por volta de 1090, uma época incerta e perturbada para os judeus da Espanha moura. Historiadores não concordam sobre o local exato de seu nascimento. Alguns acreditam que tenha sido em Toledo, outros em Tudela ou mesmo Córdoba. 

O pano de fundo de sua vida é a Espanha medieval, no final do século XI até meados do século XII. Uma época esplendorosa e também turbulenta, marcada por dois fatos principais: a Idade de Ouro da cultura judaica na Espanha muçulmana e uma nova onda de seu renomado fanatismo religioso, que destruiu comunidades inteiras matando ou convertendo à força muitos de seus membros. 

Rabi Abraão Ibn Ezra era um homem dotado de espírito e mente extraordinários. Coabitavam nele harmoniosamente o sábio da Torá e o filósofo, o médico, o astrólogo, o racionalista e o místico. Ibn Ezra acreditava que a mais importante atividade do homem era buscar e conhecer D´us. Para ele, a Revelação Divina e a razão eram perfeitamente congruentes, não havia discrepância entre fé e misticismo judaico e as ciências naturais ou exatas. 

Rabi Ibn Ezra acreditava na interpretação dos sonhos, nas propriedades místicas dos números, na astrologia e na matemática como ciências exatas. Acreditava que as estrelas e os planetas influenciavam a vida e o destino dos homens. Seus conhecimentos em astrologia e astronomia, bem como seus dons matemáticos, garantiram-lhe grande fama entre todo tipo de pessoas. 

Seu raciocínio lógico era aliado à eloqüência poética. Poliglota, era fluente tanto no árabe como no hebraico. Dotado de um delicado senso de humor, amava brincar, argumentar com filósofos e livre-pensadores atiçando-os com sua mente rápida. Era também um mestre no xadrez. 

Sua mente privilegiada era aliada a uma humildade proverbial. Extremamente pobre durante toda sua vida, caçoava ele próprio de seus fracassos nos negó-cios, tendo escrito: “Se me coubesse vender velas, o sol jamais desapareceria; se lidasse com mortalhas funerárias, ninguém mais morreria (...) enquanto eu vivesse”. Suas dificuldades não conseguiam dobrar seu espírito alegre e sempre aceitava as dificuldades da vida com um sorriso. Quando chorava e se entristecia, era pelos sofrimentos e desastres que se abatiam sobre seu povo.

Era conhecido e respeitado pelas maiores mentes da Espanha como grande sábio e poeta. Moisés Ibn Ezra (1080-1139), seu conterrâneo e também grande poeta, afirmava que Ibn Ezra era um homem de grande eloqüência, além de ser um grande filósofo religioso. Maimônides, em suas advertências para seu filho, exorta-o a estudar as obras de Rabi Ibn Ezra. 

Sabe-se que era amigo íntimo de Rabi Yehuda Ha-Levi (c. 1075-1141), um dos maiores poetas do período. Há quem acredite que Ibn Ezra era casado com a filha de Yehuda Ha-Levi. O primeiro encontro dos dois sábios tornou-se lendário. Conta-se que Rabi Yehuda Ha-Levi conhecia as obras de Ibn Ezra, mas nunca o tinha visto. Um dia um pobre andarilho entrou na casa de Ha-Levi, mas o rabi não o notou de tão concentrado que estava em compor as últimas linhas de um poema. Não conseguindo encontrar as rimas apropriadas desistiu e foi-se deitar. Na manhã seguinte, quando se sentou à mesa de trabalho, viu que a poesia havia sido terminada de forma admirável. Espantado, afirmou: “Esta maravilha só pode ser o trabalho de um anjo vindo do Céu ou de Rabi Abraão Ibn Ezra”. Naquele mesmo instante, o pobre andarilho se apresentou e os dois sábios se tornaram amigos íntimos, viajando juntos para o Marrocos, Tunísia e Argélia.

Irrequieto, Ibn Ezra não conseguia fixar-se em lugar algum por muito tempo. Durante os primeiros anos de sua vida, perambulou pela Espanha, mas, em 1140, deixou seu país natal e começou a viajar pelo mundo. Foi durante esse período de sua vida que escreveu suas mais famosas obras. Morou em várias cidades da Europa, no norte da África, visitou, provavelmente, o Egito e chegou até a Índia. 

Roma foi a primeira cidade que visitou e lá permaneceu durante alguns anos. A comunidade judaica local o acolheu com honras. Ao perceber que os judeus de Roma não conheciam a língua hebraica redigiu uma gramática da língua. Mas seu espírito inquieto não permitia que vivesse muito tempo em um lugar e passou por muitas cidades italianas antes de se mudar para a França, onde permaneceu por dez anos. Durante suas viagens pela França e Provença, conheceu Rabenu Jacob Tam, sábio talmúdico e neto de Rashi que escreveu sobre ele: “Ibn Ezra foi agraciado com nove dentre as dez fontes de sabedoria que desceram à Terra”.

A vida de exilado errante que levou por quase três décadas lhe deu a oportunidade de empreender uma missão que se tornou histórica. Tornou-se o propagador da extraordinária cultura judaica que florescia na Espanha andaluza entre os judeus da Europa cristã. Como não conheciam o árabe, não tinham acesso a uma variedade imensa de obras que estavam sendo produzidas em Sefarad. Ibn Ezra era mais do que adequado para essa missão por seus conhecimentos diversificados e pelo seu estilo claro.

Após anos de viagens e tendo acabado sua grande obra – seus comentários sobre a Torá – decidiu voltar à Espanha, mas antes de chegar na fronteira ficou muito doente. Morreu aos 75 anos, no dia 28 de janeiro de 1167, provavelmente na cidade de Calahorra.

Sua obra

Rabi Ibn Ezra deixou uma vasta obra sobre temas diversos. Segundo a tradição, escreveu cerca de 200 obras. Estudioso e pesquisador da língua hebraica, escreveu vários trabalhos sobre gramática. Um de seus traços mais marcantes foi escrever unicamente em hebraico. Em seus trabalhos, adverte seus leitores sobre a necessidade de manter a beleza e a pureza da “língua do sagrado”. 

Seus comentários bíblicos são considerados alguns dos mais importantes da época e ajudaram gerações de judeus a conhecer a Torá em sua língua original. Seu estilo é sucinto e tem como objetivo explorar o significado literal da Torá. Em várias ocasiões suas interpretações bíblicas diferem dos clássicos de seu tempo, revelando uma mente crítica e independente. Apesar de diferir dos mais tradicionalistas, Rabi Ibn Ezra acreditava na tradição oral e em todos os ensinamentos do judaísmo rabínico. Diversas vezes usou seus comentários bíblicos para defender a tradição oral contra os ataques dos caraítas. Os comentários dos Cinco Livros de Moisés de Rabi Ibn Ezra são de tal importância, que quando o italiano Daniel Bamberg, (o primeiro não judeu fundador de uma gráfica judaica) publicou uma edição da Torá, decidiu incluir os comentários de Ibn Ezra com os do Rashi e Rambam.

Escreveu poemas sagrados e seculares. Os primeiros expressavam sua profunda ligação com D’us e com Israel. Expressavam também seu profundo pesar em relação ao sofrimento de seu povo – do povo de Israel, em geral, e dos judeus sefaraditas, em particular. Seus poemas litúrgicos estiveram nos lábios de judeus através dos séculos. No campo da poesia secular, escreveu sobre temas como a amizade e o amor. Ibn Ezra marcou o fim do período clássico da poesia secular judaica e sua transição a um novo período na literatura hebraica.

Graças a seu vasto conhecimento da gramática árabe, foi o primeiro a traduzir obras escritas nesse idio-ma para o hebraico.

Como já foi dito, Rabi Ibn Ezra teve importante papel na divulgação da ciência greco-árabe na Europa Ocidental. Na matemática, Ibn Ezra é citado como um de seus maiores expoentes na era medieval. Escreveu vários textos sobre esta ciência. Três de seus tratados sobre números ajudaram a atrair a atenção de eruditos europeus para o conceito e os símbolos indianos e a importância do número zero. No Sefer ha-Echad (O Livro da Unidade) descreve os símbolos hindus para a seqüência dos algarismos arábicos de 1 a 9. No Sefer ha-Mispar, (O Livro do Número), no qual descreve o sistema decimal, utiliza o zero, o qual representa com uma circunferência à qual chama de galgal (roda ou círculo, em hebraico).

Rabi Ibn Ezra escreveu também diversos livros sobre navegação marítima, astronomia e astrologia. Vale notar que a proibição em consultar astrólogos não diminui em nada os conhecimentos dos sábios judeus sobre a astronomia. Os judeus sempre possuíram conhecimentos profundos nessa ciência e Rabi Abraão Ibn Ezra é um de seus grandes mestres, o maior da época medieval. Em seu mais famoso tratado sobre astrologia – Sefer ha-Olam (O Livro do Mundo), sua mensagem principal é alertar sobre o uso errôneo da astrologia, pois esta ciência só poderia ser usada quando praticada de forma correta.n

Quando meus inimigos me caluniam
Rabi A. Ibn Ezra

Quando meus inimigos me caluniam
E eu temo que possa cair,
O D’us de Abrahão me fortalece;
O medo de Isaac é meu consolo!
Eu me aprofundo nos livros do profetas:
As palavras de Isaías 
Aparecem diante de mim: “A Redenção está próxima!”
Quando eu procuro mais profundamente por D’us na Torá
Lá encontro o que vinha procurando:
D’us vai redimir o povo cativo,
Até mesmo os que foram levados aos confins da terra!
Isso me conforta.
Sobre isto devo falar e nisto encontrar alívio!

Fonte: (Twilight of a Golden Ag Selecteal poemes of Abraham Ibn Ezra)

Amplo florescimento cultural

A Idade Média assistiu o renascimento da língua hebraica e a melhor ilustração literária desse renascimento está na constelação de 

extraordinários poetas, filósofos e estudiosos da liturgia que surgiu na Espanha nos séculos XI e XII. Entre eles se destacam Salomão Ibn Gabirol, Yehuda Ha-levi, Moisés Ibn Ezra e Abraão Ibn Ezra. A língua hebraica que empregavam era mais rica, mais variada e também mais sutil do que nunca. Conseguiram alcançar sonoridades verbais e nuances diversas de expressão e significado. 

Suas poesias em hebraico, apesar de inequívoca influência árabe tanto nos temas como na forma, destacam-se por sua inspiração, tanto em matéria religiosa como profana. O objetivo primordial dos poetas judeus era exaltar a grandeza do Criador, Suas obras e as sagradas leis do judaísmo. Era, sobretudo uma poesia espiritual, mas tratou também de temas como a essência da vida e o sofrimento do povo judeu. A natureza desse tipo de poesia era muito mais didática e era recitada em coro nas reuniões sociais e nas sinagogas. 

As meditações voca-cionais em versos destes extraordinários poetas ainda conservam o brilho interior e em vários pontos se equiparam à melhor poesia encontrada nos Salmos hebraicos. Seus hinos para as orações nas sinagogas são famosos até hoje. Uma vez organizado o culto coletivo, adquiriram grande importância os hinos litúrgicos – piyutim, caracterizados pelo fervor messiânico e pela exuberância religiosa que seriam cultivados por todos os judeus na diáspora.


Bibliografia:

• Gutwirth, Israel, “The Kabbalah and Jewish Mysticism”, Samelson William, El legado Sefaradi: romances y relatos judeo-espanõles;
• Borger, Hans, “Uma História do povo judeu, de Canaã à Espanha”, Editora Sefer.