Quando Pernambuco e outras capitanias do Norte estiveram sob o domínio da Holanda, período compreendido entre 1630 e 1654, milhares de judeus sefaradim e alguns ashquenazim, originários da Península Ibérica e do Norte da Europa, para lá se transferiram com as suas famílias.

Estabeleceram-se, principalmente, no ramo do comércio de varejo, na exportação do açúcar e do tabaco, chegando uma pequena parte a possuir engenhos e dedicar-se à cobrança de impostos e ao empréstimo de dinheiro.

Alguns deles, porém, dedicavam-se ao comércio de escravos que, trazidos pelos barcos da Companhia da Costa da África, eram arrematados em leilões e vendidos a prazo aos senhores de engenho. Na Rua dos Judeus funcionava um mercado de escravos, Merckt opt Jodesnstraat, que Zacarias Wagener denominou de Slavenmarkt e o retratou na sua série de aquarelas, pintadas no Recife entre 1634 e 1641.

A primeira sinagoga

É desta época o surgimento, no Recife, da primeira sinagoga das Américas, a Kahal Kadosh Zur Israel (Santa Comunidade Rochedo de Israel) estabelecida na Rua dos Judeus (atual Rua do Bom Jesus) no primeiro semestre de 1636, segundo denúncia dos predicantes do Conselho da Igreja Reformada, Schagen e Poel, feita ao Conselho Político em 23 de julho daquele ano: “Em primeiro lugar, observa-se que os judeus que residem aqui começam a estabelecer uma assembléia em forma de sinagoga, o que deve ser impedido”.

Em princípio funcionou a sinagoga em casa alugada, mas, logo depois, veio a ser construído na mesma rua um templo próprio em pedra-e-cal, possivelmente entre 1640 e 1641, hoje restaurado com apoio da Fundação Safra, devendo os trabalhos serem inaugurados no próximo mês de setembro.

Nesta primeira sinagoga do Novo Mundo exerceu o rabinato o célebre Isaac Aboab da Fonseca, português natural de Castro Daire, distrito de Viseu, na Beira Alta, onde nasceu em 1605. Ainda criança, emigrou com os seus pais para a França e, logo em seguida, para Amsterdã. Bisneto do último Gaon de Castilha (máxima autoridade no ensino e interpretação da Lei), que em 1492 foi forçado a sair da Espanha para Portugal, estabelecendo-se na cidade do Porto. O menino Isaac recebeu, ao nascer, o nome de Simão da Fonseca. Era filho de David Aboab e Isabel da Fonseca, que em 1612 já se encontravam em Amsterdã, “onde a família pôde, finalmente, observar com liberdade sua religião judaica”.

A sinagoga Zur Israel era integrada por personagens ilustres como o Hazan (o leitor), Jehosua Velosino; o Rabi (o mestre-escola), Samuel Frazão e o Samás (guarda e mestre das crianças) Isaac Namias, Bodeck (encarregado da matança dos animais) Benjamin Levy, segundo relação dos funcionários no ano de 1649. No ano anterior, a 16 de novembro, houve a fusão das comunidades Zur Israel, localizada no atual bairro do Recife, e Maguen Abraham, que funcionava no atual bairro de Santo Antônio, ocasião em que foi elaborado o Haskamot, ou seja, Regulamento de 40 artigos através do qual iriam reger-se as duas comunidades, subscrito por 172 membros, adultos do sexo masculino, pertencentes à comunidade residentes no Recife e em Maurícia.

O berço da literatura hebraica

O grande benfeitor da comunidade judaica de então fora o Conde João Maurício de Nassau, que governara o Brasil Holandês entre 1637 e 1644. Em 1645, um ano depois do seu retorno aos Países Baixos, teve início o movimento chamado de Insurreição Pernambucana, que propugnava a expulsão dos holandeses das capitanias do Norte, o que veio a acontecer em 27 de janeiro de 1654.

O ano de 1646 foi de grande crise para os holandeses e judeus residentes no Recife. Depois das vitórias conquistadas no Monte das Tabocas, na Casa Forte e no Cabo de Santo Agostinho nos meses de agosto e setembro de 1645, os luso-brasileiros isolaram o Recife, deixando os seus habitantes sem acesso aos alimentos produzidos na zona rural, o que resultou em grande fome para cerca de 8.000 pessoas, quando até ratos foram consumidos pela população.

Johan Nieuhof, alemão residente no Recife entre 1640 e 1649, testemunha que “os gatos e cachorros, dos quais tínhamos então abundância, eram considerados finos petiscos. Viam-se negros desenterrando ossos de cavalo, já meio podres, para devorá-los com incrível avidez”.

Esse momento de privação é descrito em cores vivas e pungentes no poema escrito em hebraico, por Rabi Aboab da Fonseca, Mi Kamókha (Quem como Tu?), que se refere, na primeira parte, a João Fernandes Vieira, tratando-o por “conhecido homem sem coração, um sádico e embusteiro de mãe negra”.

Nos seus versos, o introdutor da literatura hebraica em terras do Novo Mundo lembra que “o corpo reduziu-se em carne e ossos devido à fome. O pão era pesado e racionado. Meu povo acostumou-se a substituir o pão pelo peixe, até quando os intestinos se ressentiram”.

Lá fora, a espada semeava a morte; dentro era o terror, porque há conspiração tanto interna quanto externa.

Bastardos e mamelucos, meus perseguidores e traidores, revelam segredos meus aos inimigos, e traiçoeiramente querem entregar minha fortaleza. Isso irrita minha alma.

Doía-me o coração de tanto esperar. Mais a longa demora do auxílio prometido, e a fome, o racionamento com redistribuição de rações habituais.
O corpo reduziu-se em carne e ossos devido à fome. O pão era pesado e racionado.

Meu povo acostumou-se a substituir o pão pelo peixe, até quando os intestinos se ressentiram.

Este é o dia almejado para assaltar o povo revoltado, disse o inimigo, para tomarmos suas casas e todos os seus bens.

Aproxima-se o dia de sua ruína; foram abandonados pelo (seu) deus.

Vemos o seu fim. E nós não tínhamos meios suficientes para vencê-lo.

D’us ouviu tudo isso e ficou irado, mas calmo para com Seu povo, e cobriu-nos com sua grande bondade. Feliz o povo que conta com Ele.

Rememora Johan Nieuhof que, “quando já tínhamos atingido o auge da penúria e devorado todos os cavalos, gatos, cachorros e ratos, [....] avistamos dois navios desfraldando o pavilhão do Príncipe, que rumavam para o Recife a todo pano”. Era 22 de junho de 1646, data em que aportaram no Recife os barcos holandeses Gulden Valk e Elizabeth trazendo soldados e alimentos para aquela população de esfomeados. A população agradecida mandou cunhar duas medalhas comemorativas, as primeiras que se têm notícia no Brasil, a serem ofertadas aos capitães dos dois navios, com a seguinte inscrição: Door de Valk en Elisabeth is het Recief ontzet (O Falcão e o Elizabeth salvaram o Recife).

No Mi Kamókha, em ação de graças pelo milagre operado, o rabino Aboab da Fonseca expressa toda a sua emoção bem no estilo bíblico de sua época:

No nono dia do quarto mês1 dois navios dos Países Baixos trouxeram a salvação para o meu povo.

Se não tivessem chegado a tempo, ninguém teria escapado.

Gravai tudo isso e estejais lembrados, meus congregados, que naquele dia manifestou-se o favor de D’us.

Lembrai-vos do caminhar milagroso. Evocai com louvores Seu nome.

Cantarei ao D’us Majestade o dia em que Ele afogou o faraó no Mar Vermelho e salvou Seu povo.

Seu Nome não será esquecido pelos seus descendentes.

Ele nos salvou do campo da morte e sobre nós estendeu a Sua nuvem para garantir nossa salvação, e não deixou de iluminar o nosso caminho com Seu clarão e fogo luminoso.

E meu povo cantava caminhando terra afora: não há ninguém semelhante a Ti, entre os deuses.

Mi Kamókha, prece escrita por Aboab da Fonseca, a partir de então passou a ser lida na sinagoga da Rua dos Judeus, nos dias de ação de graças, obrigatoriamente, por disposição regimental da comunidade.

Os textos em hebraico se distribuem por sete páginas, traduzidas para o português, a nosso pedido, pela Prof. Maria do Carmo Tavares de Miranda. Além do poema, deixou o rabino Isaac Aboab da Fonseca uma oração, escrita quando da chegada a Pernambuco dos regimentos portugueses, em julho de 1645 – Confissão e Súplicas reunidas e determinadas por mim para orações nessa época desastrosa, quando da chegada dos regimentos do rei de Portugal e que vinham aniquilar-nos, não fosse o Rei e Senhor Soberano que nos salvou – e uma outra por ele denominada, Isaac dirigiu a D’us a seguinte oração.

 

Retornando aos Países Baixos, em 1654, o rabino Isaac Aboab da Fonseca empenhou-se na construção da Grande Sinagoga Portuguesa de Amsterdã, seguindo o traço do arquiteto holandês Elias Bouman, tendo a cerimônia de inauguração acontecido perante o Príncipe de Orange, em 2 de agosto de 1675.

A monumental Sinagoga destinava-se ao serviço de uma comunidade de 3.000 fiéis, na sua maioria oriundos de Portugal. Acima da porta principal, lê-se em letras douradas original hebraico de parte do Salmo 5.8: “Mas eu, pela vossa grande bondade, entrarei na Vossa casa prostar-me-ei no Vosso Santo Templo, com a reverência a Vós devida.” Além do sentido próprio, as palavras trazem através das estrelas colocadas sobre os caracteres em hebraico, o ano da fundação do templo (5432=1672) e o nome do seu fundador: o chacham Aboab.

Segundo a inscrição do seu túmulo, Rabi Isaac Aboab da Fonseca veio a falecer aos 88 anos, em 9 de abril de 1693, na cidade de Amsterdã. Sua biblioteca foi vendida em leilão, logo após a sua morte. Dela constavam 18 manuscritos em hebraico, 373 livros em hebraico e 53 em outras línguas.

Leonardo Dantas Silva
Fundação Joaquim Nabuco (Recife)