Em algum momento, lá pelo século 11 antes da era atual, na chamada época dos Juízes, na terra de Canaã, a Terra Prometida, quando o povo de Israel lutava para se estabelecer definitivamente na Terra Sagrada, Guidon ben Yoash ben Aviézer, da tribo de Menashé, viveu na cidade de Ofrá. E, durante 40 anos, foi Juiz sobre Israel.
Contexto Histórico
Após a vitória de Débora, a profetisa, sobre Iavin, rei de Canaã, os cananeus sentiam-se enfraquecidos, derrotados e humilhados. Por um lado, a vitória sobre os cananeus possibilitou a expansão do território de Samaria; e as terras de Menashé e Efraim, até a Galileia, estavam agora completamente nas mãos dos israelitas. O Vale de Izreel finalmente pôde começar a ser ocupado pelas tribos de Israel. Entretanto, o resultado também teve consequências negativas.
Até sua derrota, os cananeus contavam com um forte exército que impedia a invasão, vinda de além do rio Jordão, por povos nômades e outras facções e, quando os cananeus foram vencidos e sua fortificação na fronteira praticamente deixou de existir, esses fatos abriram caminho para invasões desses nômades vindos do deserto.
Na época de Guidon, ou Gideão, os nômades que invadiram as terras do lado ocidental do rio Jordão foram os midianitas. Estes eram os descendentes de Itro, sogro de Moisés. Entraram perto de Beit Shean, ao sul do Kineret, e daí foram para o Vale de Izreel e para toda a Terra de Israel. No Livro dos Shoftim (Livro dos Juízes) está escrito que chegaram até a costa do país, até Gaza. Durante sete anos praticamente toda a Terra de Israel esteve sujeita ao domínio das tribos nômades midianitas.
Os midianitas não estavam sozinhos, mas vinham acompanhados dos amalequitas, eternos inimigos de Israel, e de outros povos vindos também do Oriente (Kedem). Os midianitas eram muito numerosos, somando centenas de milhares e, como relata o Livro dos Juízes, pareciam gafanhotos. Vinham para destruir pelo simples prazer de fazê-lo. Os midianitas, diferentemente de outros povos conquistadores, não se preocupavam em cobrar impostos e nada os interessava, nem as plantações nem as construções. Iam destruindo tudo e, muitas vezes, chegavam a matar.
Para conseguir sobreviver, os Filhos de Israel passaram a se esconder em cavernas, túneis e fortalezas localizados nas montanhas. Tratava-se de lugares que os camelos dos nômades midianitas não conseguiam alcançar. Quando chegava a época de colheita, levavam o produto destas para seu esconderijo e lá ficavam protegidos. Essa situação insustentável já durava sete anos. Os Filhos de Israel estavam muito empobrecidos e clamaram então ao Eterno, que lhes enviou um profeta para tranquilizá-los. “Eu sou o Eterno vosso D’us, não temais aos deuses dos amoreus” (Livro dos Juízes 6:10)
Encontro de Guidon com o Anjo de D‘us
O Anjo de D’us aparece a Guidon em Ofrá e o encontra malhando o trigo no lagar, em vez de fazê-lo no campo onde geralmente é feita a separação dos grãos, e o faz ali justamente para salvar a produção do saque dos vândalos midianitas.
O Anjo o saúda dizendo: “O Eterno está contigo, homem valente” (ibid 6:12). Guidon logo responde com uma pergunta: “Por favor, meu senhor, se o Eterno está conosco, por que nos sobreveio tudo isso? Onde estão todos os Seus milagres, que nossos pais nos contaram? Não nos fez o Eterno subir do Egito? E agora o Eterno nos abandonou e nos entregou em mãos dos midianitas”.
E relata o Livro dos Shoftim que “O Eterno voltou-se a ele e disse:vai com tua força e salvarás Israel das mãos dos midianitas. Porventura, não Te enviei?” (ibid 6: 13 e 14). Guidon retruca: “Por favor, Senhor, com que salvarei Israel? Eis que a minha família é a mais pobre em Menassé e eu sou o menor da casa de meu pai”. Mas o Eterno o tranquiliza dizendo “porque Eu estarei contigo, e ferirás os midianitas como se fossem um só homem”. (ibid 6:15 e16).
O Eterno incumbe Guidon da destruição do altar de Baal. D’us lhe ordena: “Toma o boi de teu pai e o segundo boi de sete anos e derruba o altar de Baal, que é de teu pai, e corta a Asherá que está junto a ele” (ibid 6: 25). Era o altar principal, de cuja guarda os midianitas encarregaram Yoash, pai de Guidon. Sua derrubada marcou o inicio da rebelião dos Filhos de Israel contra a opressão pagã. Os ídolos deveriam ser destruídos para Israel merecer a salvação. D’us ainda instrui Guidon a construir com as pedras um “altar para o Eterno” e oferecer o boi de sete anos em sacrifício. Durante a noite, acompanhado de dez homens escolhidos entre seus servos, Guidon levou a cabo sua missão.
Ao se dar conta do que havia acontecido os habitantes da cidade ficaram com medo da reação dos midianitas e, ao descobrirem que o responsável era Guidon, queriam condená-lo à morte. Mas Yoash se levanta para defender o filho: “Disputar-vos-eis por Baal? Vós o salvareis”? Continua afirmando que, se Baal é um deus, não precisa ser defendido, pois o culpado será morto. Os moradores da cidade aceitam as palavras de Yoash; na realidade, eles só haviam se inclinado ao culto de Baal por medo dos midianitas. Guidon passou a ser conhecido como Yerubaal, o homem que se insurgiu contra Baal.
A ação de Guidon e as palavras de Yoash calaram fundo nos israelitas, que voltaram a servir a D’us. Guidon insuflara no povo um novo espírito para que se livrasse da opressão de Midian e seus aliados. Isso chegou ao conhecimento de Midian e Amaleque, que se uniram para suprimir a revolta. Levaram seus exércitos para o Vale de Izreel e lá acamparam.
Relata o Livro dos Juízes que “o espírito do Eterno revestiu Guidon” (ibid 6: 34), e ele tocou o shofar para conclamar o Povo de Israel à guerra. O espírito do Eterno lhe proporcionara uma força superior para se pôr à frente do povo e dirigir o confronto. Ele manda mensageiros às tribos de Menassé, Asher, Zevulun e Naftali para se mobilizarem. As tribos atendem a seu chamado a fim de lutar contra os inimigos de Israel.
Provas de que D’us está a seu lado
Antes de sair para a luta, Guidon dirige uma oração a D’us e pede mais uma prova de que Ele salvará o povo de Israel por meio de sua pessoa. Ele já estava certo de que D’us ajudaria Israel em sua guerra contra Midian, porém queria ter certeza de que seus méritos eram suficientes para essa salvação.
Guidon se dirige a D’us e diz que, durante a noite, “porei um velo de lã na eira, se o orvalho estiver somente sobre o velo e toda a terra ficasse seca, então sabereis que livrarás Israel pela minha mão, como Tu dissestes”. (ibid 6: 37).
A solicitação de Guidon foi atendida pelo Eterno porque quando se levantou de manhã, espremeu o orvalho do velo uma taça cheia de água. Rashi em seus comentários afirma que a solicitação só foi cumprida em parte, pois o velo estava completamente molhado pelo orvalho, mas a terra também estava, isto é, não havia ficado seca. Isso, explica Rashi, é porque há uma promessa Divina de que o orvalho não cessaria de cair. Ainda não totalmente convicto de que ele era o homem certo, diz ao Eterno “Não acenda Tua ira contra mim se eu falar mais uma vez” (ibid 6: 39) e, em seguida, Guidon pede ao Eterno o segundo sinal. Seu pedido não fora feito para testar D’us, mas para ter realmente certeza de que ele, um homem da terra, um simples agricultor, era o homem apto para um milagre tão grande.
Ele pede, então, ao Eterno que agora o velo fique seco e toda a terra seja molhada pelo orvalho. E D’us assim o fez atendendo ao pedido de Guidon naquela noite, a segunda noite, “somente no velo havia secura, e sobre a terra havia orvalho” (ibid 6: 40). Guidon então teve a certeza de que ele era o escolhido por D‘us para salvar o povo de Israel dos midianitas.
O Eterno quer que fique bem claro para os Filhos de Israel Quem vai salvá-los dos midianitas, por isso não deseja que sejam atacados por um exército numeroso; não quer que acreditem que venceram porque são numerosos. D’us quer que percebam que venceram porque assim Ele quis.
O Eterno, então, pede que Guidon diminua drasticamente o número de guerreiros. Ele havia conseguido 32 mil homens do povo mas, em uma primeira seleção, 22 mil foram excluídos, restando apenas 10 mil guerreiros. E como foi feita essa seleção? O Livro dos Shoftim ensina que todos os que tinham medo deveriam ir. É interessante frisar que essa situação só é aceita normalmente quando se trata de uma guerra opcional e não uma guerra obrigatória, como é o caso daquela contra os midianitas. Mesmo assim, para reduzir o número dos homens para a luta, como determinara o Eterno, Guidon utilizou-se desse critério.
Entretanto, 10 mil homens ainda eram um número alto, e o Eterno ordenou que Guidon fizesse uma nova seleção. Dessa vez, por mais estranho que possa parecer, ainda que tudo tenha seu porquê, Guidon deveria levar os 10 mil homens para beber água, e, dependendo do modo pelo qual bebessem da água da mayan (fonte) de Charod, esse seria o critério de escolha dos que partiriam para a luta contra os midianitas.
D’us, então, disse-lhe que os guerreiros que se aproximassem da fonte e “se ajoelhassem para beber”, revelando que estavam acostumados a fazê-lo no culto aos ídolos, deveriam ser postos de um lado; e os que se debruçassem na beira da fonte e bebessem segurando-se com uma mão e lambendo a água na palma da outra mão deveriam ser postos do outro.
Entre os 10 mil guerreiros que beberam água na fonte de Charod apenas 300 haviam se curvado e trazido a água com as mãos até a boca, sem deixar de lado suas espadas. Estes, sim, eram os verdadeiros combatentes e foram escolhidos para lutar contra os midianitas. Guidon mandou cada um dos 300 homens levar consigo um shofar, algo incomum, pois geralmente apenas os oficiais o tocavam. Os que não foram escolhidos deveriam ficar no acampamento no Monte Guilad.
A grande batalha contra os midianitas
Guidon e os 300 homens escolhidos estavam na encosta do Monte Guilboa e os midianitas embaixo, no Vale de Yezreel e D’us ordenou a Guidon: “levanta-te e desce ao acampamento porque o dei em tua mão” (ibid 7: 9). O Eterno disse-lhe para não temer, apesar de ter ficado com tão poucos homens, mas para descer ao vale e lutar contra o inimigo.
Os midianitas nem percebem que um pequeno grupo de guerreiros com espada e shofar nas mãos se aproxima de seu acampamento. Guidon divide os guerreiros em três grupos e os posiciona em volta do acampamento, cada um em uma direção: um grupo no Sul, outro no Oeste e o terceiro no Norte. Ele deixa o lado Leste como a única opção de fuga para os midianitas. Ele próprio comanda um dos grupos e ordena que “fazei o que me virdes fazer (....) e quando eu e todos os que estiverem comigo tocarem o shofar, vós também tocareis o shofar ao redor do acampamento e direis pelo Eterno e por Guidon” (ibid 9:17 e 18). Ele utiliza a estratégia que usara Yehoshua para conquistar Jericó, a primeira cidade dominada pelos israelitas no início da conquista da terra que lhes fora prometida por D’us.
O ataque teve início no meio da noite, exatamente no momento da troca dos guardas. Guidon e 100 homens que estavam com ele chegaram à extremidade do acampamento e tocaram os shofarot e quebraram os cântaros que tinham em mãos. Relata o Livro dos Juízes: “E os três pelotões tocaram shofarot e, também, retiraram e quebraram o vaso de cerâmica que cobria as tochas que traziam consigo para não serem descobertos.”
Cada guerreiro de Guidon fica no seu lugar, ao redor do acampamento, sem invadi-lo. O toque dos shofarim e o barulho do quebrar dos vasos assustam os midianitas, que saem de suas tendas desnorteados, com as espadas em punho, golpeando quem encontrassem à frente. Muitos matavam os próprios companheiros, pois como eram tão numerosos quanto “gafanhotos”, muitas vezes não reconheciam uns aos outros e acabavam por confundir os companheiros com inimigos. Em seguida, Guidon incendeia, com suas tochas, as tendas causando um tumulto ainda maior.
Os midianitas iniciam uma fuga na única direção possível, o Leste, exatamente rumo ao rio Jordão. Ainda sem entender muito o que acontecia, quando chegam perto do Monte Guilad, dão-se conta de que um exército bem maior que aquele que os surpreendera os esperava. Todos os homens que não participaram da invasão os aguardavam, quase 32 mil bravos guerreiros, que deram uma merecida lição aos nômades invasores. Às margens do rio Jordão, a tribo de Efraim consegue capturar e matar os príncipes midianitas, Orev e Zehev, levando a cabeça de cada um para Guidon.
Mas Guidon não estava satisfeito. A morte de seus dois irmãos pelos midianitas, no Monte Tabor, ainda estava viva em sua memória. Assim, ele continua sua missão e vai ao encalço dos 15 mil sobreviventes dentro do território inimigo, entre os quais estavam os reis midianitas Zevah e Tsalmuna.
Quando chega à cidade de Carcor, ele consegue vencer os midianitas e capturar os reis Zevah e Tsalmuna. E, então, Guidon lhes pergunta: “Onde estão os homens que matastes em Tabor? Eles eram meus irmãos, filhos de minha mãe! Assim como o Eterno vive, juro que se os tivésseis deixado em vida, eu não vos mataria!” E então se levantou Guidon e matou os reis midianitas. A derrota de Midian por Guidon foi decisiva e seu efeito foi sentido por várias gerações. Após a vitória sobre os midianitas e a morte de seus príncipes e reis, o povo vai a Guidon e lhe pede para guiá-los e liderá-los. Ele responde que não é ele quem os guiará, mas sim o Eterno.
Depois disso. Guidon volta para sua casa, mas não assume a chefia de um governo central como o povo lhe pedira. Age como Juiz em sua cidade, Ofrá, onde era procurado pelo povo. E relata o Livro dos Juízes que “sossegou a Terra por 40 anos, nos dias de Guidon”.
Após a morte do Juiz Guidon, novamente o povo volta a praticar a idolatria e adorar o deus Baal. O povo de Israel já não se lembrava mais de seu D’us e de todos os milagres que fizera para salvá-lo de seus inimigos.
A batalha de Guidon e seus feitos contra os midianitas serviram e ainda servem de exemplo para os “guerreiros” de hoje. Nas Forças de Defesa de Israel (Tzahal), os soldados que se preparam para serem oficiais no campo de preparação Bahad-1 usam como uma espécie de “grito de guerra”, a frase que Guidon usou para liderar seus guerreiros: “Observem-me eimitem-me”. No Tzahal, o comandante sempre vai à frente de seus soldados assim como Guidon foi à frente de seus guerreiros.
Guidon é um exemplo de bravura e, acima de tudo, de muita fé no Eterno, D’us de Israel. Hoje não é diferente, pois o simples fato de estarmos em Eretz Israel, apesar de rodeados de inimigos por todos os lados, é sem dúvida uma prova de que D’us está guiando o seu povo, assim como fez com Guidon.
David Salgado foi Editor durante três anos do jornal “Amazônia Judaica” é o idealizador e produtor do comentário “Eretz Amazônia – Os Judeus na Amazônia”. Atualmente é pesquisador e redator da Organização Shavei Israel, em Jerusalém.