Pessach Sheni – literalmente, o segundo pessach - cai no 14o dia do mês hebraico de Iyar – exatamente um mês após a véspera da festividade de Pessach. Pessach Sheni transmite uma mensagem que é um dos fundamentos do judaísmo, ensinando-nos que podemos sempre corrigir erros passados e que D’us sempre nos dá uma segunda chance.

Apesar de seu nome, o “Segundo Pessach” não é uma data na qual cumprimos as leis de Pessach: não realizamos o Seder nem lemos a Hagadá. Há, sim, o costume de se comer Matzá, de preferência Matzá Shmurá nessa data, mas nela também consumimos Chametz. Apesar de não ser um Yom Tov, um dia santificado, e não ser praticamente relevante na ausência do Templo Sagrado de Jerusalém, o Pessach Sheni é uma data alegre em nosso calendário e transmite lições valiosas a cada um de nós.

O que é o Pessach Sheni?

A Torá relata que um ano após o Êxodo do Egito, D’us instruiu o Povo Judeu a oferecer o Korban Pessach, o Sacrifício Pascal, na tarde do 14º dia do mês hebraico de Nissan. Os judeus deveriam assar as oferendas no fogo e comê-las ao entardecer daquele dia – a primeira noite de Pessach – juntamente com Matzá (o pão não fermentado) e Maror (as ervas amargas) –, como haviam feito no ano anterior, na noite antes de deixarem o Egito.

No entanto, como relata a Torá, nem todos os judeus poderiam cumprir esse mandamento. Havia certos homens que se tinham tornado ritualmente impuros por terem tido contato com um cadáver humano. Portanto, não poderiam cumprir o mandamento de Korban Pessach – não que tivessem feito algo errado ou agido com negligência –, mas simplesmente porque a Torá proíbe um indivíduo ritualmente impuro de oferecer um sacrifício.

Segundo algumas opiniões, esses homens se tornaram ritualmente impuros ao enterrar um morto, que é uma das obrigações religiosas mais importantes no judaísmo. Então, por que, argumentaram, deviam ser excluídos da oferenda do Sacrifício Pascal? Esperando encontrar uma solução para sua situação aflitiva – um caminho que lhes permitisse cumprir tão importante mandamento – eles foram a Moshé Rabenu e disseram: “Estamos ritualmente impuros por termos tido contato com os mortos. Mas, por que devemos ficar em desvantagem, não podendo apresentar a oferenda a D’us na época certa, juntamente com os demais judeus?”.

Apesar dos homens ritualmente impuros entenderem por que eles não poderiam trazer o sacrifício juntamente com todos os demais eles insistiram: “Queremos poder merecer a mesma conexão com D’us, mediante o cumprimento do mandamento de Korban Pessach, como os demais. Sabemos que nossa impureza ritual não permite isso, mas insistimos em participar”.

Moshé lhes respondeu: “Atentem para o que D’us ordenará a respeito de vocês”.

D’us transmite a Moshé a seguinte mensagem: “Se alguém está ritualmente impuro devido ao contato com os mortos, ou está em uma viagem distante, seja um entre vocês ou nas gerações futuras, ainda assim deve ter a oportunidade de preparar a Oferenda Pascal a D’us. Ele deverá prepará-la na tarde do 14º dia do segundo mês (Iyar), e deverá comê-la com Matzá e Maror… Assim, deverá prepará-la de acordo com todas as regras da Oferenda Pascal (normal)” (Números 9:6-12).
O Altíssimo lhes forneceu a solução: Ele não lhes permitiria burlar uma lei da Torá e oferecer o sacrifício enquanto estivessem ritualmente impuros, mas Ele lhes daria a chance de compensar a oportunidade perdida: eles poderiam oferecer o Korban Pessach um mês depois.

Esse incidente – o clamor dos homens a D’us – levou-O a acrescentar uma lei à Sua Torá: Ele deu ao Povo Judeu a oportunidade do “Segundo Pessach” – uma segunda oportunidade de cumprir um importante mandamento. Dali em diante, qualquer pessoa que não pudesse levar uma oferenda de Pessach no dia 14 de Nissan poderia oferecer o seu Korban um mês depois – no dia 14 de Iyar. Esta data se tornou Pessach Sheni.

Pessach Sheni representa, pois, uma segunda chance, o poder de compensar o que se perdeu. Simboliza a chance de se aproveitar a oportunidade perdida de realizar uma boa ação.

Como o Templo Sagrado de Jerusalém já não existe e nós não levamos mais o Korban Pessach no dia 14 de Nissan, o mandamento associado com Pessach Sheni não se aplica em nossos dias. No entanto, o “Segundo Pessach” é um dia alegre, pois transmite uma mensagem que é um dos fundamentos do judaísmo, ensinando-nos que podemos sempre corrigir erros passados, que o futuro pode ser muito diferente do passado e que D’us sempre nos dá uma segunda chance.

Mandamentos positivos e negativos

Para apreciar o significado de Pessach Sheni, é preciso, primeiro, analisar a importância do mandamento de Korban Pessach.

O mandamento da oferenda de Pessach, bem como o do Brit Milá (circuncisão), é singular, pois é um mandamento positivo, cuja omissão equivale à violação de um severo mandamento negativo. Explicando melhor: a Torá contém 613 mandamentos (e suas inúmeras ramificações), que são divididos em duas categorias básicas: 248 mandamentos positivos e 365 negativos. Um mandamento positivo é um ato cujo cumprimento a Torá nos impõe. Um negativo, por outro lado, é um ato cujo cumprimento a Torá nos proíbe. Entre as inúmeras mitzvot positivas contam-se o Brit Milá, o Korban Pessach, a colocação dos Tefilin, fazer Tzedacá, estudar a Torá etc. O cumprimento dos mandamentos positivos fortalece a alma da pessoa, ligando-a a D’us; beneficia a humanidade e todos os seres vivos e ajuda a trazer equilíbrio, paz e plenitude para o mundo. A violação de uma mitzvá negativa faz o oposto: um pecado de cometimento é prejudicial não apenas à alma de quem o comete, mas também a todo o Povo Judeu e ao mundo como um todo. Quanto mais grave o pecado, maior o dano subsequente. A Torá contém muitos mandamentos negativos: consumir Chametz em Pessach, comer ou beber em Yom Kipur, falar mal de terceiros, assassinato, adultério, roubo, envergonhar a terceiros e ainda muitos outros.

Na Torá há mais mitzvot negativas do que positivas e está bem claro que violar um mandamento negativo acarreta mais consequências espirituais negativas do que quando se deixa de executar um positivo. Em outras palavras, no judaísmo os pecados de cometimento são muito mais graves do que os da omissão. Por exemplo, a Torá nos diz que comer Chametz em Pessach é muito danoso para a alma judaica, alertando-nos que quem o faz conscientemente recebe Karet – é espiritualmente divorciado de D’us até que faça as reparações devidas por sua transgressão. No entanto, essa consequência espiritual muito negativa não cai sobre alguém que se abstém de cumprir o mandamento positivo de comer Matzá durante o Seder. Essa pessoa não está espiritualmente divorciada de D’us; ela simplesmente não cumpriu uma mitzvá da Torá. Essa clara distinção entre violar um mandamento negativo e violar um positivo indica que é muito mais importante cumprir as mitzvot negativas.

Aparentemente, quem nunca comete transgressões, mas também nunca cumpre os mandamentos positivos do judaísmo, está espiritualmente em melhor situação do que quem tanto comete transgressões quanto cumpre os preceitos positivos da Torá.

No entanto, esta maneira de analisar o judaísmo é superficial e errônea. O propósito da Criação não é que o homem não peque. Nas palavras do Midrash, o propósito da Criação é que o homem construa uma morada para D’us no mundo mais baixo. Isto significa que o homem precisa se empenhar muito para fazer com que este mundo seja um lugar Divino – belo e sagrado. A passividade, ou a vida sem pecados, talvez não perturbe a Criação, mas certamente não constrói tampouco um mundo – nem para o homem e muito menos para D’us. Portanto, há uma forma totalmente diferente de ver a gravidade e a importância dos mandamentos positivos e negativos da Torá.

Ninguém pode negar que a violação de um mandamento negativo seja espiritual e fisicamente prejudicial. Mas os pecados cometidos contra D’us – não contra o homem – são retificáveis através do arrependimento e da expiação. Mediante o verdadeiro arrependimento, oração e especialmente as boas ações – como a caridade aos pobres – pode-se apagar quase todos os pecados cometidos contra D’us. O Todo Poderoso está aberto ao arrependimento de todos e não é necessário esperar até Yom Kipur para demonstrar nosso arrependimento e pedir o perdão Divino. Em certos casos, as transgressões podem até se tornar méritos espirituais, pois podem servir de ponte para que o ser humano tenha gestos grandiosos que ele não teria se não tivesse transgredido ou se não se sentisse culpado de algo. As falhas espirituais podem impelir o ser humano a ter gestos maiores do que ele jamais poderia sonhar.

O mesmo, contudo, não se aplica, ao não cumprimento de um mandamento positivo. Quando se perde a oportunidade de fazer uma boa ação, pode surgir algo semelhante no futuro, mas o que é passado, permanece no passado – não volta. Um exemplo: se um homem deixa de colocar Tefilin um dia, pode colocá-lo durante todos os dias remanescentes de sua vida (menos no Shabat e nas festas, claro). Mas ele perdeu a oportunidade de colocá-lo naquele dia específico – e aquele dia não volta; ele não pode voltar atrás e retificar sua omissão. Na linguagem de nossos Sábios, ao negligenciar o cumprimento de uma mitzvá positiva, ele perdeu a oportunidade de trazer uma fonte de Luz Divina ao mundo. Ele pode trazer muitas outras fontes de luz, mas não aquela fonte de luz especial que ele perdeu naquele dia em que deixou de colocar os Tefilin. Isto é algo que merece reflexão. É algo que deve nos fazer reavaliar nosso relacionamento com a Torá e seus mandamentos. De fato, um grande Tzadik e Sábio ensinava que um judeu devia preocupar-se mais com os mandamentos que ele não cumpria adequadamente do que com suas transgressões, pois ele podia arrepender-se de seus pecados, mas não podia voltar atrás no tempo e reexecutar as mitzvot que tinha cumprido desleixadamente, ou pior, que tinha deixado de cumprir.

Vemos que cada categoria de mandamentos, positivos e negativos, tem suas próprias exigências. Por um lado, a gravidade espiritual da violação de um negativo é maior do que o não cumprimento de um mandamento positivo. Pelo outro, a maioria dos pecados de cometimento – desde que não magoem nenhum ser humano ou criatura viva – são como manchas não permanentes, que podem ser lavadas. Já o pecado de omissão é bem menos severo, mas também geralmente não é retificável pelo fato de não poder voltar no tempo. Alguém que comete vários pecados, mas que também realiza várias boas ações, pode purificar sua alma de suas transgressões ficando com suas boas ações, pois estas são indeléveis. Contudo, aquele que nem peca nem tem boas ações vive uma vida segura – mas vazia. Ele não danifica nada, mas tampouco constrói. Vive como se estivesse dormindo. Na verdade, quase todos nós somos pessoas boas e justas quando dormimos – mas há uma pequena diferença entre estar permanentemente adormecido e já não fazer parte deste mundo.

Pessach Sheni: uma segunda chance

Entre os 613 mandamentos da Torá, dois são singulares pelo fato de envolver tanto os aspectos rigorosos dos mandamentos positivos quanto dos negativos. Trata-se do Brit Milá e do Korban Pessach. É interessante notar que ambos são interligados, pois um judeu não circuncidado não pode oferecer o Sacrifício Pascal. O não cumprimento dessa oferenda – e do Brit Milá, também – acarreta o mesmo tipo de punição que o cometimento de um sério mandamento negativo. Ao mesmo tempo, o Sacrifício Pascal é um mandamento positivo, cujo não cumprimento não seria contornável não fosse o Pessach Sheni.

Apesar de não podermos oferecer o Sacrifício Pascal em nossos dias, Pessach Sheni serve para nos lembrar que D’us sempre nos dá uma segunda chance. Essa data nos ensina que D’us deu ao Povo Judeu a oportunidade de compensar o fato de não cumprir até mesmo uma mitzvá tão importante quanto essa, que contém em si as exigências dos mandamentos positivos e negativos da Torá.

O relato da Torá sobre o advento de Pessach Sheni é uma lição para todos. Certos indivíduos que não tinham condições de oferecer o Korban Pessach foram a Moshé e perguntaram de que maneira poderiam cumprir o mandamento. Moshé lhes disse que não tinham obrigação de fazer a oferenda, pois, devido à sua impureza ritual, era a Torá que os proibia de fazê-lo. Mesmo assim, a reação deles foi: “Por que ficaremos de fora? Também queremos cumprir esta mitzvá e assim ligar nossa alma a D’us. Se a Torá nos proíbe de executar uma de suas leis, que D’us encontre outra maneira que nos permita fazê-lo”.
É interessante notar que até esse incidente, os judeus somente faziam um tipo de pergunta a Moshé: “Qual é a lei em tal ou tal caso”? Os ritualmente impuros vieram com uma pergunta diferente: “Como cumprir um mandamento que a Torá nos impede de cumprir?”. Eles não perguntaram sobre uma lei – se algo era permitido ou proibido – tampouco lhe pediram que julgasse um caso que lhes beneficiasse materialmente. Pelo contrário, decidiram que tinham o direito de não serem privados do cumprimento de uma mitzvá da Torá e pediam a D’us uma oportunidade de o fazer. Não se queixavam de uma oportunidade perdida de adquirir poder, honra, riqueza, mas de não poder obedecer a um mandamento Divino. Por esses homens justos e por suas nobres intenções, D’us instituiu uma lei em sua Torá – uma lei que daria aos judeus das gerações por vir a oportunidade de compensar uma falha na oferenda do Korban Pessach – um mandamento de suprema importância. Assim, o compromisso desses homens às mitzvot da Torá beneficiaram não apenas suas almas, mas também as de inúmeros outros judeus em todas as gerações.

O significado de Pessach Sheni

Rabi Shmuel Schneerson, quarto Rebe da dinastia Chabad-Lubavitch, ensinava que o significado de Pessach Sheni era que não há situação sem volta, irrecuperável – ou seja, sempre é possível corrigir ou remediar uma situação. Mesmo o mandamento da Oferenda de Pessach – cuja falta é uma séria deficiência e cuja negligência deliberada é muito prejudicial para a alma judia – pode ser retificável.

No entanto, o relato dos homens em situação de impureza ritual nos ensina que é necessário desejar e procurar de todos os meios uma oportunidade de reparar uma situação errada, para que essa chance possa materializar-se. Isto é válido para assuntos mundanos e também espirituais. O essencial é que nenhum ser humano se desespere, acreditando que tudo esteja perdido. Se a pessoa não perde a esperança, sempre encontrará uma saída. Mesmo aquele que fez muito mal à sua alma, mesmo se a correção parece remota, essa pessoa pode curar sua alma e reiniciar sua vida. Nada é impossível. Às vezes a pessoa pensa que foi longe demais, caindo tão baixo que não haverá oportunidade de se reerguer. Esta maneira de pensar não é própria do judaísmo – e é até mesmo uma negação de uma das leis fundamentais da Torá, a do poder do arrependimento e da possibilidade de retornar a D’us.

É verdade que não podemos voltar no tempo e cumprir os mandamentos positivos que negligenciamos ou deixamos escapar. Ademais, o processo do verdadeiro arrependimento para nossas transgressões negativas requer uma honesta autoanálise e um tremendo esforço para interromper os maus hábitos. No entanto, como Pessach Sheni nos faz lembrar, D’us sempre dá a cada um de nós a oportunidade de começar a vida de novo – sem mudar o passado, é certo; mas esse passado não tem que determinar nosso futuro. Pessach Sheni nos diz: não importa o que tenhamos feito de errado, hoje, pois acordaremos amanhã para uma nova vida. Se hoje perdemos uma oportunidade, asseguremo-nos de que não a perderemos amanhã.

O “Segundo Pessach” nos faz recordar o importante princípio: “Mesmo que venha a cair, não permanecerá assim, pois o Eterno ampara sua mão” (Salmos 37:24). Pode-se cair, mesmo, como todos nós caímos, e isso faz parte da vida; mas não podemos permanecer caídos. Na prática, essa é a diferença entre um Tzadik – o ser humano espiritualmente exitoso – e o não exitoso. Pois está escrito, “Pois o Justo (Tzadik), ainda que tombe sete vezes, voltará a se levantar” (Provérbios 24:16).
Sim, mesmo os verdadeiramente íntegros e virtuosos tombam. O Tzadik pode cair sete vezes – pode cair setecentas vezes ou mais – mas sempre tentará levantar-se após cada queda. Não importa quantas vezes sejam, ele não desistirá. Ele está sempre lutando para ascender mais e mais alto – para crescer de força em força.

Em Pessach Sheni, há o costume de se comer Matzá – o pão da fé e da cura e esperança. Nessa data importante, o 14o dia de Iyar, reflitamos e internalizemos suas importantes lições: que D’us sempre nos dá outra chance, não importa quantas vezes tenhamos falhado; e que a derrota é um conceito que não tem lugar no judaísmo nem na vida de um judeu. Não importa quantas vezes tenhamos caído, sempre nos levantaremos e ascenderemos a um nível mais elevado do que antes da queda – tanto como judeus, individualmente, quanto como em grupo, como o Povo Judeu.

BIBLIOGRAFIA
Rabi Wisnefsky, Moshe, Torah Chumash Shemot - With an Interpolated English Translation and Commentary Based on the Works of the Lubavitcher Rebbe, Kehot Publication Society

Rabi Steinsaltz, Adin (Even Israel), Change & Renewal: The Essence of the Jewish Holidays & Days of Remembrance, Maggid Publisher