Uma das denominações de Pessach é Zman Cherutenu – Época de nossa Liberdade – porque a festa comemora a libertação do Povo Judeu da escravidão egípcia. Nossos Sábios ensinam que em Pessach, e em especial durante o Seder, cada um de nós, judeus, tem a oportunidade de conseguir libertar-se de seu acorrentamento interno, que impede o crescimento espiritual, psicológico e emocional. O Seder é uma reencenação pessoal e espiritual do Êxodo do Egito.
Contudo, a maioria de nós não aprecia o poder do Seder. Aparentemente, não há nada de libertador na cerimônia. Até mesmo algumas famílias mais religiosas o celebram de forma superficial, sem entender realmente o significado de seus rituais. Veem o Seder como uma cerimônia religiosa demorada, desinteressante e cansativa, sem apreciar o fato de que os 15 passos que a compõem são lições que, se postas em prática, levam à liberdade interior e libertação espiritual.
Nosso propósito neste trabalho é indicar como os 15 passos do Seder são um guia para se alcançar a liberdade interior. Se o ser humano deseja alcançar a verdadeira libertação – emocional, psicológica e espiritual –, ele precisa viver de acordo com os ensinamentos e princípios aportados em cada passo do Seder.
1. Cadesh - Kidush
O 1º passo do Seder é Cadesh – fazer o Kidush sobre um copo de vinho. De acordo com a Torá, o real significado da palavra Kidush, “santificação”, é “designação” ou “separação”. Algo que é Cadosh, “sagrado”, é separado: é designado para um propósito especial.
A lição de Cadesh, 1º passo do Seder, é que o ponto de partida para se atingir liberdade interior é o ser humano se autodesignar um veículo de santidade. Para ser verdadeiramente livre, é preciso destinar momentos de cada dia de sua vida para se comunicar com D’us. É preciso destinar um espaço em sua alma para a introspecção e o crescimento pessoal, de modo a ficar em contato com D’us e com a Torá.
Algumas pessoas são tão ocupadas e envolvidas em seus próprios assuntos e afazeres que nunca destinam tempo algum às questões da alma. Podem até ser pessoas bem-sucedidas e influentes, mas não são donas de seu próprio tempo e, portanto, não são realmente livres. Aqueles que estão sempre correndo, nunca estão em lugar algum. Para ser verdadeiramente livres, temos de parar de correr o tempo todo e aprender a viver o momento.
A Lei Judaica nos ordena iniciar nosso dia com oração, colocação dos Tefilin e estudo da Torá. Isso se aplica a todos os judeus, seja o maior Sábio da geração ou alguém que precise trabalhar dia e noite para sustentar sua família. Destinar tempo para a santidade, especialmente na primeira hora de nosso dia, é obrigação de cada um de nós, judeus, independentemente de seu nível de ocupação. Quando a pessoa santifica o início de seu dia a D’us, à sua alma e a propósitos mais elevados, como a oração e o estudo da Torá, ela alcança uma medida de liberdade espiritual que impacta o restante de seu dia. Por outro lado, alguém que não dedica tempo à sua alma, por ser muito ocupado com seus afazeres diários, não é verdadeiramente uma pessoa livre, independentemente de quão rica ou proeminente seja.
2. Urcháts – ablução das mãos sem bênção
O 2º passo do Seder é Urcháts – a ablução ritual das mãos. Urcháts nos ensina que o ser humano não é verdadeiramente livre enquanto não tiver “mãos limpas”: para atingir a libertação interna, é necessário levar uma vida digna e honesta. Quem mente, engana ou ludibria os demais, ainda que tenha o hábito de contar “mentiras sociais”, não é verdadeiramente livre, pois vive em um mundo de distorção, onde uma mentira encobre outra, e o mentiroso vive enredado em suas próprias histórias. As pessoas com “mãos sujas” podem ter sucesso e se orgulhar de serem mestres da mentira e da manipulação; mas abriram mão de sua liberdade interior. Quer o saibam quer não, vivem em um mundo de distorção e corrupção criado por eles mesmos. Isso pesa em sua consciência e acorrenta sua alma.
Há somente dois tipos de pessoas que são verdadeiramente felizes e podem viver em paz. São aquelas que têm a consciência limpa e aquelas que não têm consciência alguma. É muito difícil para um judeu, cuja alma é intimamente ligada à Torá, ter como viver de forma totalmente inconsciente. Portanto, sua única opção – se quiser ser realmente livre – é viver com a consciência limpa.
É importante observar a anomalia neste 2º passo do Seder: não fazemos a bênção de Al Netilat Yadayim após a ablução ritual das mãos. Uma das razões para tal é que a necessidade de se ter “mãos limpas” não é um conceito unicamente judaico nem religioso. É uma norma universal que se aplica a todos os seres humanos. Quem quer ser livre tem que ter “mãos limpas”, independentemente de suas crenças ou práticas religiosas.
3. Carpás – mergulhar a verdura
Após a ablução ritual das mãos sem fazer uma berachá, tomamos o Carpás – um pedaço pequeno de uma verdura (como o aipo ou a batata) – molhando-a em água salgada, e recitamos a bênção de Borê Perí Ha’Adamá (“Que cria o fruto da terra”), para então comê-la. Carpás simboliza o corpo humano. Em hebraico, o homem é chamado Adam porque como o Carpás (a verdura, o “fruto da terra”), a dimensão física de sua existência se originou da terra (Adamá): “Com o suor de teu rosto comerás pão, até voltares para a terra – pois dela foste tomado – pois tu és pó ...” (Gênesis 3:19).
Antes de comer o Carpás, o molhamos na água salgada, dizendo a berachá, como vimos acima. É necessário molhar o Carpás n’água salgada porque a água é um dos símbolos da Torá, ao passo que o sal representa o pacto eterno entre D’us e o Povo Judeu. Portanto, ao mergulhar o Carpás na água salgada, a dimensão física do judeu, isto é, seu corpo, é submergida nas águas da Torá.
Trata-se de um passo necessário para se alcançar a liberdade interior, pois a maioria dos seres humanos, entre eles muitos judeus religiosos, não sabem como se relacionar com seu corpo de forma saudável. O equilíbrio entre a vida física e a espiritual é um grande problema para eles. Algumas pessoas estão aprisionadas por seu corpo: passam a vida correndo atrás de prazeres físicos e negligenciam os assuntos espirituais. Outras, porém, seguem o caminho oposto. Acreditam que só se pode viver uma vida superior e significativa se o corpo for negligenciado. Acreditam que os prazeres físicos e o conforto são obstáculos à santidade e, assim sendo, o corpo e seus desejos devem ser ignorados. Julgam que a privação física eleva e santifica a alma humana. O que não percebem é que se tornaram escravos de seu próprio corpo. São obcecados por ele, ainda que em um relacionamento antagônico, e vivem em constante luta com suas necessidades e desejos físicos.
A Torá não endossa nenhuma dessas duas visões extremas. Por um lado, despreza o hedonismo. Por outro, ensina que o corpo é o veículo para a alma e, portanto, deve ser respeitado e cuidado. O Judaísmo considera um grave pecado negligenciar, ferir ou abusar do corpo de qualquer forma que seja.
Segundo a Torá, o corpo precisa ser santificado: deve ser submerso nas águas da Torá, o que significa que deve ser um veículo para a santificação. O Carpás é submergido na água salgada para nos ensinar que o ser humano verdadeiramente livre não é escravo de seu corpo – nem de uma busca obsessiva por prazeres físicos nem pela ideia contraproducente de negá-los totalmente. O homem é verdadeiramente livre quando seu corpo e sua alma funcionam em harmonia: quando o corpo não é desprezado, mas sim, elevado por meio da sua imersão nas águas da sabedoria e santidade da Torá.
4. Yachatz – a partição da Matzá do meio
O 4º passo do Seder é Yachatz: a quebra da Matzá do meio. Este passo do Seder nos ensina que às vezes, um coração humilde – um coração partido – é um pré-requisito para se atingir crescimento e liberdade interior. A crença de que se é perfeito e completo é um dos maiores obstáculos ao progresso pessoal em qualquer aspecto da vida, particularmente em questões espirituais. Aquele que se julga incapaz de cometer erros não fará esforço algum para melhorar. Consequentemente, permanecerá preso à realidade ilusória que criou para si próprio – um mundo imaginário no qual se sente perfeito, completo e superior. Pessoas que se iludem não são livres, pois vivem trancadas em seu próprio mundo imaginário, irreal. A incapacidade de admitir erros, dor, medo, imperfeições e falhas é um dos maiores impedimentos ao crescimento e libertação espiritual.
Para conquistar a verdadeira liberdade, é preciso “quebrar nossa própria Matzá”: é preciso admitir internamente nossas falhas, vulnerabilidades, erros e imperfeições. Yachatz nos ensina que a vida não tem a ver com perfeição, mas com responsabilidade e crescimento. Aquele que percebe que não é completo nem perfeito fará esforços para melhorar e não se sentirá acorrentado por limitações externas ou internas. Por outro lado, aquele que crê que não precisa melhorar, o sabichão que se julga sempre certo, que não erra e que não necessita desculpar-se com ninguém, seja D’us seja seu semelhante – essa pessoa permanecerá estacionada em sua vida. Isso é exatamente o oposto de liberdade, pois o ser humano que deseja ser verdadeiramente livre está sempre se aperfeiçoando e progredindo.
5. Maguid – leitura da Hagadá
Maguid – a leitura e discussão da Hagadá, que narra a história de Pessach – constitui o âmago do Seder. Seu propósito primordial é relatar essa história, ensinando-a a nós, nossos filhos e a todos os que conosco compartilham dessa celebração singular.
Este 5º passo do Seder nos ensina que um elemento necessário para a nossa libertação interior é expandir nossos horizontes por meio do estudo. A ignorância é a antítese da liberdade. Falta de educação e de estudo reprimem o progresso. Trata-se de uma verdade indiscutível: os países que valorizam a educação são bem mais avançados e livres do que os que não o fazem. Não é surpresa que o Judaísmo dê um valor supremo ao estudo.
Maguid transmite a ideia de que quando estudamos, desafiamos a nós mesmos e ampliamos nossos horizontes. Infelizmente, há muitas pessoas que param de estudar quando completam sua educação formal. O Judaísmo nos ensina que o estudo é uma busca ininterrupta e vitalícia: um de seus mandamentos fundamentais é estudar a Torá diariamente.
As pessoas livres estão sempre desenvolvendo seu intelecto. Estão sempre estudando e expandindo seu conhecimento. Quem não estuda continuamente não é verdadeiramente livre, pois fica preso em uma esfera intelectual e espiritual limitada, enquanto o restante do mundo se torna cada vez mais instruído e bem informado.
6. Rochtsá – ablução das mãos com bênção
O 6º passo do Seder, Rochtsá, novamente trata da ablução ritual das mãos. Diferente da primeira vez (2º passo), desta segunda vez, a ablução é seguida da recitação da berachá de Al Netilat Yadayim.
Há diferenças significativas entre essas duas abluções. A primeira é uma lição básica de integridade. Não vem acompanhada de uma bênção, pois sinceridade, honestidade e decência são atributos que se esperam de todos os seres humanos.
A segunda ablução é acompanhada de uma bênção. Uma das razões para tal é que após o estudo da Torá (Maguid – passo anterior no Seder), já não basta ter “mãos limpas”, ou seja, viver uma vida de honestidade e integridade. Uma vez que um judeu tenha estudado a Torá, não lhe é suficiente ser uma pessoa honesta; espera-se muito mais de sua pessoa. Agora que já adquiriu conhecimentos da Torá, essa pessoa também deve obter limpeza espiritual: seu comportamento e integridade têm de ser impecáveis.
Ser verdadeiramente livre significa adquirir pureza espiritual. Muitas pessoas são honestas, decentes, boas e generosas, mas levam uma vida profana e hedonista. Isso não é aceitável para quem estuda a Torá. Quem acumula conhecimentos sobre a Torá se torna um representante do Judaísmo. E para quem personifica a Torá, não basta ser decente, honesto e educado. É preciso ser um ser humano iluminado e exemplar. Aquele que é identificado com a Torá precisa lavar suas mãos uma segunda vez e recitar a berachá. Ou seja, suas “mãos” não apenas têm de estar duplamente “limpas”, mas também santificadas.
Há, ainda, outra razão para ser imperativo lavar as mãos, metaforicamente, uma segunda vez após ter estudado Torá: porque quando a pessoa acumula muito saber, particularmente sabedoria espiritual, essa pessoa corre o risco de se tornar arrogante e complacente – que, como vimos acima (em Yachatz), é a antítese da liberdade.
7. Motsí – primeira benção sobre a Matzá
Após a ablução ritual das mãos, comemos Matzá. Mas antes recitamos duas bênçãos. A primeira delas é a berachá de Motsí (“Que extrai o pão da terra”).
Em hebraico, Motsí significa “extrair”. A bênção de Motsí nos ensina uma lição que aparece com frequência na Cabalá: que tudo na Criação tem um propósito Divino e que um dos principais propósitos em nossa vida é extrair centelhas sagradas do mundano. Ou seja, santificar o mundo físico usando-o para propósitos sagrados. Por exemplo, quando recitamos o Kidush sobre um cálice de vinho casher, no Shabat ou Yom Tov, estamos santificando o vinho. Ao utilizarmos essa bebida alcoólica para uma finalidade sagrada, extraímos as centelhas sagradas nela contida.
Pessoas realmente livres sabem como extrair centelhas sagradas deste nosso mundo material. Ou seja, sabem como santificar a fisicalidade. Como vimos no passo 3 do Seder (Carpás), a pessoa livre santifica seu corpo mergulhando-o nas águas sagradas da Torá. Este 7º passo, Motsí, trata de santificar mais do que o corpo da pessoa: trata de santificar o mundo físico que a rodeia. Motsí constitui um pré-requisito para se alcançar a verdadeira liberdade, pois nos força a repensar nosso relacionamento com o material: trabalho e dinheiro, alimentos e bebidas, sono, assuntos íntimos e nossos bens. Há quem seja escravo dessas coisas, obcecado com o mundo material. Essas pessoas danificam sua alma e abrem mão de sua liberdade interior para tentar satisfazer todos os seus desejos físicos. No entanto, há também aqueles que, incapazes de lidar com os desafios apresentados pelo físico e o material, partem para o outro extremo. Por acreditarem que a fisicalidade é um empecilho para o crescimento espiritual, tentam abster-se de qualquer forma de materialismo – geralmente sem muito sucesso. Acreditam, erroneamente, que o ascetismo é o caminho para a elevação espiritual.
Motsí nos ensina que as duas abordagens acima são erradas. Assim como temos que encontrar o ponto de equilíbrio entre corpo e alma (passo 3 – Carpás), temos, também, que harmonizar a fisicalidade com a espiritualidade. Para ser realmente livre, a pessoa tem de realizar Motsí – extraindo as centelhas sagradas contidas na matéria física. A liberdade genuína é alcançada por aqueles que conseguem fazer a paz entre os elementos físicos e espirituais de sua vida.
8. Matzá – segunda benção sobre a Matzá
Após fazer a berachá de Motsí, fazemos a da Matzá – Al Achilat Matzá – e então comemos esse alimento que é o símbolo de Pessach. A Matzá é o pão não fermentado – insípido e achatado, praticamente sem gosto. Nossos Sábios ensinam que a Matzá simboliza a humildade.
Enquanto a benção de Motsí nos ensina a buscar oportunidades na vida – por exemplo, usando o mundo físico para propósitos espirituais em vez de se abster dele –, a benção da Matzá, símbolo da humildade, ensina a evitar a ostentação ao fazê-lo.
A bênção de Motsí nos incentiva a extrair o que há de bom no mundo físico, ao passo que a da Matzá nos ensina a manter a perspectiva correta: não exibir ou ficar imerso em exagero nos prazeres e ocupações físicos, ainda que se possa extrair centelhas sagradas de seu interior.
9. Maror – bênção sobre as ervas amargas
O Maror, alface ou ervas amargas, é outro famoso elemento do Seder. Essa erva amarga nos faz lembrar a aflição de nossos antepassados no Egito, onde foram escravizados, torturados e assassinados. O Maror simboliza os sofrimentos, a dor e os traumas sofridos pelos Filhos de Israel. Sendo assim, como é um dos 15 passos do Seder a caminho da liberdade e emancipação? Porque a pessoa só pode ser realmente livre se aprender a lidar de forma adequada com a aflição e o sofrimento.
É interessante que, durante o Seder, temos que comer muita Matzá, mas não muito Maror. Isso é uma lição de como lidar com o sofrimento, ensinando-nos que não podemos ignorar o sofrimento, mas tampouco devemos entregar-nos a ele, indefinidamente. Há, basicamente, duas abordagens ao sofrimento e ao trauma. Algumas pessoas os reprimem totalmente, como se nunca tivessem ocorrido. Se tivessem opção, não serviriam Maror no Seder nem falariam sobre as aflições de nossos antepassados no Egito. A segunda forma de lidar com o sofrimento é continuamente pensar e falar sobre tragédias e tristezas. Há pessoas que revivem continuamente traumas passados. Se dependesse delas, passariam o Seder inteiro comendo Maror e discorrendo sobre o sofrimento de nosso povo sob o jugo do Faraó. Passariam toda a noite falando das agruras pelas quais passaram todos os judeus, e toda a humanidade – sem deixar de incluir seus próprios problemas.
Maror – 9º passo para a liberdade interior – nos ensina que estão erradas as duas abordagens acima ao sofrimento. Ainda que a pessoa consiga reprimir experiências dolorosas, estas não desaparecem por si só; continuam arraigadas na mente e na alma da pessoa. E, um dia, de alguma forma, virão à tona. Ninguém consegue ser realmente livre se tem reprimido, dentro de si, dor e trauma. Isso porque, tendo conhecimento disso ou não, esses sentimentos influenciarão seu comportamento. Quem reprime tristeza e sofrimento tem, geralmente, explosões inexplicáveis de raiva ou depressão e pode tornar-se uma pessoa fria, indiferente e antissocial – ou pior, desenvolver horríveis fobias.
Por outro lado, a pessoa que não consegue parar de falar sobre seus sofrimentos e traumas acaba sendo consumida por eles. Dá um grande alívio falar sobre algo doloroso e, assim, sentir-se mais leve; mas é algo bem diferente reviver o assunto repetidamente. A pessoa que só fala de suas dores não pode ser verdadeiramente livre porque está aprisionada em seu passado e em sua dor – que ela revive continuamente, sem conseguir vencê-los.
Maror nos ensina a abordagem judaica ao sofrimento. Devemos comer o Maror – elemento indispensável do Seder – por ser errado negar as experiências dolorosas ou ignorar as dificuldades, traumas e sofrimentos. Mas, após comer uma certa quantidade de Maror neste momento do Seder e no momento do Corech (próximo passo), esgotamos a nossa quota de amargura. Isso significa que após reconhecer o sofrimento e o verbalizar, temos que seguir em frente – optar pela vida, apesar das experiências dolorosas. Não podemos tapear ou tentar reprimir a dor e o trauma. Mas tampouco podemos deixar-nos absorver ou paralisar por eles. Podemos e devemos chorar e lamentar as tragédias passadas, mas com o limite adequado. Essa lição foi particularmente relevante para a geração de judeus que viveu o Holocausto. Não há palavras que exprimam o seu sofrimento. Eles tinham todo o direito de falar disso o dia todo e todos os dias, até o fim de sua vida. Mas quase todos decidiram seguir em frente, reconstruir sua vida, sua família e o Povo Judeu, apesar de toda a dor e de todo o sofrimento. Seres humanos livres se permitem sofrer e lamentar, mas não permitem que o sofrimento e as experiências dolorosas os escravizem para todo o sempre.
10. Corech – sanduíche de Matzá e Maror
O 10o passo do Seder é Corech – o sanduíche. Atualmente, na ausência do Templo Sagrado de Jerusalém, o Corech é apenas um sanduíche de Matzá contendo Maror com Charosset. Na época do Templo Sagrado de Jerusalém, o Corech era bem mais saboroso, pois também continha pedaços do Corban Pessach, o sacrifício Pascal: carne assada.
O Corech original tinha, portanto, três ingredientes: o sacrifício Pascal, a Matzá e o Maror – alimentos altamente simbólicos. O Corban Pessach era uma iguaria real – quem não gosta de churrasco? A Matzá é um alimento insosso – não se pode dizer que seja gostoso e poucos o preferem a um pedaço de pão – mas não deixa de ser tragável. Já o Maror, é amargo e desagradável, e a maioria das pessoas não gosta de comê-lo.
Corech nos ensina que há, basicamente, três tipos de experiências na vida: as alegres, as insossas e as amargas. Há coisas que gostamos de fazer e que nos dão prazer e alegria (Corban Pessach). Há outras que não gostamos de fazer – são insossas e maçantes, mas não nos causa sofrimento fazê-las (Matzá). E há outras que não gostamos mesmo de fazer e gostaríamos de não ter de fazê-las (Maror). De modo semelhante, há períodos em nossa vida que são felizes, bem-sucedidos e cheios de notícias boas e alegres. Há outros que são insossos, quando nada de empolgante ou alegre ocorre, mas tampouco nada doloroso. E, por fim, há épocas em nossa vida que são difíceis, desafiadoras e dolorosas.
Corech nos ensina que ser livre significa ter a capacidade de lidar com todos os três tipos de situações. Ninguém pode fazer apenas o que gosta. Nenhuma pessoa madura pode esperar que todos os dias de sua vida sejam felizes e agradáveis. Quem é realmente livre entende que muitos eventos de nossa vida são desinteressantes, mas necessários. Entende, também, que mesmo o ser humano mais afortunado cedo ou tarde terá de enfrentar dificuldades e desafios. As pessoas livres encontram significado nos eventos aparentemente insossos e triviais da vida e entendem que os períodos difíceis geralmente são oportunidades de crescimento pessoal. Conseguem internalizar a ideia de que é quando enfrentamos momentos desafiadores que estamos em nosso auge, revelando nosso verdadeiro potencial e grandeza interior. Seres livres lidam com todo tipo de vivências porque não são presa do medo ou da insegurança. Já aquele que não é internamente livre, faz o impossível para esquivar-se da responsabilidade e da disciplina, evitando tudo que julga desagradável ou insosso, sem emoção. Essa gente não enfrenta a vida como ela é; está sempre tentando escapar de situações difíceis ou buscando atalhos ou saídas intempestivas. O homem realmente livre tem a coragem, força e resiliência para lidar com qualquer tipo de situação.
Quem não preferia que a vida fosse uma sequência de eventos felizes? Poucos gostam de insipidez ou amargura. Mas Corech nos ensina que a vida inclui uma série de experiências diferentes. E aqueles que desejam alcançar liberdade e crescimento espiritual estão dispostos a confrontar situações insípidas e até dolorosas sempre que necessário.
11. Shulchan Orech – o jantar festivo
O 11o passo do Seder é o Shulchan Orech – a refeição festiva. É importante notar que a refeição de Pessach não é apenas um banquete de Yom Tov. Constitui também um dos passos do Seder e, portanto, nos dá lições de liberdade. Uma destas é que um dos sinais de verdadeira liberdade é a capacidade e disposição de prover para os outros.
Os realmente livres são generosos. Sabem dar e gostam de o fazer. Podem dar e compartilhar porque conhecem o seu próprio valor e não sentem que ao compartilhar perdem o que é seu. Tampouco sentem-se diminuídos ou empobrecidos. Prover para os outros só os engrandece.
Quem não consegue compartilhar é limitado por uma mentalidade de escassez, acreditando que a vida é um jogo em que para alguém ganhar, é preciso alguém perder, em que o lucro de um é o prejuízo do outro. Homens livres, no entanto, creem na abundância. O sucesso e a felicidade do outro não os ameaça. Pelo contrário, ajudam e dão poder aos outros, sabendo por experiência própria que a generosidade volta, cedo ou tarde.
Convidar pessoas para o Seder é uma grande mitzvá, provendo a essas pessoas de forma material e espiritual. Uma boa medida de liberdade pessoal é a capacidade e disposição de preocupar-se e ser generoso com todos, nas questões materiais e nas espirituais.
12. Tzafun – o ato de comer o Aficoman
Após o jantar, e antes de recitar o Bircat HaMazon (Benção após as Refeições), comemos o Aficoman – o pedaço de Matzá quebrado (em Yachatz – 4º passo) e escondido.
O Aficoman é denominado Tzafun, “oculto”, por ser o pedaço da Matzá que foi escondido após realizar Yachatz – a quebra da Matzá do meio. Uma das lições do Aficoman é que para ser verdadeiramente livre, a pessoa precisa lidar com o que traz escondido dentro de si. Há várias coisas em nossa vida – sentimentos, pensamentos e lembranças, em particular as dolorosas – que reprimimos. Reprimir sentimentos é um recurso de sobrevivência, que nos permite continuar a viver apesar dos traumas sofridos. Mas, como vimos ao falar do Maror, o que é reprimido pode acabar vindo à tona – geralmente na hora errada, no lugar errado e da forma errada. A pessoa verdadeiramente livre, que busca crescimento espiritual constante e significativo, precisa lidar com o que lhe dói e vive em seu subconsciente – e que o trava de alguma forma, seja emocional, psicológica ou espiritualmente.
É importante observar que Tzafun – lidar com o que está oculto – é um dos passos finais do programa de libertação, de 15 passos, do Seder. Uma das razões para Tzafun só aparecer quase no final é que apenas quando o ser humano já fez progressos espirituais e emocionais significativos, ele tem condições de lidar de forma saudável com os fantasmas ocultos que podem habitar as profundezas de sua alma.
Tzafun constitui um dos passos mais difíceis na busca por liberdade interior. Geralmente, é doloroso lidar com sentimentos reprimidos e revisitar eventos bloqueados por nosso consciente. No entanto, trata-se de um passo indispensável para a libertação pessoal. Mas, tudo o que dissemos sobre o Maror se aplica a Tzafun: temos condições e devemos enfrentar nossas questões e emoções dolorosas, mas não podemos deixar-nos aprisionar pelas mesmas. Do contrário, tudo o que deve constituir um passo para a autolibertação passa a ser um degrau na queda para o abismo da autopiedade e autoescravidão.
13. Barech – Bênção após as Refeições (Bircat HaMazon)
Após comer o Aficoman, recitamos Bircat HaMazon. Há um mandamento bíblico que nos ordena recitar essa bênção sempre que se come pão. Como comemos Matzá durante o Seder, devemos recitar o Bircat HaMazon.
Essa bênção constitui um dos 15 passos do Seder. A razão para isso é que o Bircat Hamazon nos ensina que se a pessoa deseja ser livre, ela precisa aprender a agradecer e ser agradecida.
Há aqueles que têm dificuldade de sentir-se gratos. Eles se abstêm de agradecer um favor ou uma gentileza porque creem que, ao fazê-lo, ficam endividados perante o outro. Pessoas realmente livres não têm dificuldade em agradecer e receber agradecimentos. Entendem que, na vida, todos nós damos e todos nós recebemos.
Aqueles que não são agradecidos não são livres, pois acreditam – ou fingem acreditar – que são autossuficientes. A ideia de que não devemos nada a ninguém é de uma arrogância sem par, já que até as pessoas mais realizadas têm muito a dever aos outros: a D’us, a seus pais e mestres, e a todo aquele que ao longo da vida os ajudou. Ser ingrato e ter relacionamentos saudáveis são coisas opostas – seja com D’us, seja com outros seres humanos. Ninguém é verdadeiramente livre se julga não dever favores a ninguém. Quem não é agradecido não é livre, pois vive em um mundo de ilusória autossuficiência.
14. Halel – Salmos de Louvor
Após recitar o Bircat Hamazon, recitamos o Halel, que significa louvor, enaltecimento. Enquanto o passo anterior do Seder, Bircat Hamazon, constitui uma lição de agradecimento, o Halel ensina a importância de se enaltecer os demais. Esse cântico nos ensina que não basta agradecer; é necessário também louvar e elolgiar. Algumas pessoas conseguem agradecer aos demais, mas têm grande dificuldade de enaltecê-los.
O Judaísmo abomina a bajulação, especialmente quando é falsa e manipuladora. No entanto, é louvável saber apreciar os demais e louvá-los sempre que o mereçam. O louvor sincero é estimulante e traz à tona o que há de melhor nas pessoas.
Pessoas livres não se sentem ameaçadas por louvar o outro. Não julgam que o sucesso do outro os ameaça ou empana o brilho de seu próprio valor e realizações. Mas aqueles que não são espiritual e emocionalmente livres veem os demais como concorrentes. No mundo escuro em que vivem, a única maneira de se sobressair é pisando nas outras pessoas. Sendo assim, nunca elogiam – só sabem desmerecer os outros. São pessoas que estão presas e escravizadas por suas incertezas e inseguranças e, assim sendo, recusam-se a ver e reconhecer o mérito dos demais.
Um sinal de verdadeira liberdade é poder apreciar, admirar, estimular e elogiar os nossos semelhantes.
15. Nirtsá - Aceitação
O 15o e último passo do Seder não exige qualquer ação. Mas isso não diminui sua importância. Este passo é Nirtsá – a afirmação de que o Seder, uma vez realizado fielmente de acordo à Lei Judaica e sua tradição, foi bem recebido por D’us.
Nirtsá responde a uma pergunta existencial que deve ser feita e satisfatoriamente respondida quando a pessoa deseja alcançar a verdadeira liberdade interior: qual a finalidade de se esforçar tanto para alcançar a liberdade interior e o crescimento espiritual? Para que, sinceramente, cumprir esses 15 passos? Por que seguir uma vida de dedicação a D’us e à alma (passo 1), de verdade e decência (passo 2), de santificação do corpo (passo 3), de humildade (passo 4), de conhecimento e estudo da Torá (passo 5), de aperfeiçoamento espiritual (passo 6), de equilíbrio entre o físico e o espiritual (passo 7), de modéstia (passo 8), de sofrimento saudável (passo 9), de coragem e resiliência (passo 10), de generosidade e hospitalidade (passo 11), de psicanálise espiritual (passo 12), de agradecimento (passo 13) e de enaltecimento (passo 14)?
A resposta é o 15o passo – Nirtsá. Ou seja, a crença de que isso é o que D’us espera de cada um de nós. Nirtsá nos ensina que nossos esforços para alcançar a libertação interior e o crescimento espiritual têm grande importância perante D’us. E transmite a ideia de que quando o ser humano se empenha em viver a vida que D’us espera que ele viva, esse homem cumpre o propósito para o qual foi criado e enviado a este mundo. E, portanto, o Mestre do Universo se satisfaz com seu serviço.
BIBLIOGRAFIA
Rabbi Yosef Yitzhak Jacobson – Your Psychological Seder #1: 15 Steps toward Personal Emancipation:
http://www.theyeshiva.net/jewish/4175
Rabbi Yosef Yitzhak Jacobson – Your Psychological Seder #2: 15 Steps toward Personal Emancipation:
http://www.theyeshiva.net/jewish/4188
Iluminuras extraídas da “Hagadá de Pessach”, publicada em 2007 pelo Instituto morashá de cultura e instituto Vicky e Joseph Safra. Reproduzidas da obra “Seder Hagadah Shel Pessach”, de autoria de Yakov Sofer Ben Yehudá Leib, Hamburgo, 1741.