No sétimo dia de sua saída do Egito, o Povo de Israel, perseguido pelo exército egípcio, presenciou um dos mais espetaculares milagres registrados na Torá: a abertura do mar. até os dias de hoje, o evento é símbolo da Graça Divina e salvação para judeus e não-judeus.
Os acontecimentos que antecederam e se seguiram ao Keriat Yam Suf - a abertura do Mar de Juncos - popularmente traduzido como "abertura do Mar Vermelho", estão sucintamente relatados na Torá, no livro Êxodo. O Talmud, o Midrash, os textos místicos e inúmeros comentários de nossos sábios revelam fatos, explicações e lições marcantes sobre esse milagre.
Conta-nos a Torá que os israelitas, liderados por Moisés, deixaram o Egito no dia 15 de Nissan, iniciando sua viagem em direção ao Monte Sinai. Durante o dia, D'us fazia uso de uma coluna de nuvem para guiar Seu povo. De noite, era uma coluna de fogo que, além de prover luz aos israelitas, direcionava-os de modo a poderem seguir viagem mesmo após o pôr-do-sol.
De repente, D'us ordena a Moisés: "Fala aos Filhos de Israel, e voltem e acampem diante de Pi-Achirot, entre Migdol e o mar, diante de Baal Tzefon, frente deles acampareis, perto do mar" (Êxodo, 14:1-2). As ordens Divinas parecem estranhas. Após três dias de viagem, D'us ordena que os israelitas retrocedam e acampem em frente a Baal Tzefon, o único ídolo egípcio que não havia sido destruído durante as Dez Pragas. Explicam nossos sábios que D'us deu esta ordem para que o Faraó pensasse que os judeus estavam perdidos e confusos e, mais ainda, que a "força" do ídolo egípcio era tamanha que os teria forçado a retroceder.
Apenas três dias após o Êxodo, o Faraó se arrependeu de ter permitido a saída dos israelitas de seu país e decide sair em busca deles, para os capturar e trazer de volta, obviamente como escravos. Faraó, desejando servir de exemplo e inspiração para seus soldados, "arreia sua própria carruagem" e se posiciona à frente das tropas, liderando o exército egípcio na perseguição aos israelitas. Relata a Torá que D'us provocou o arrependimento do Faraó; foi Ele que "endureceu o coração" do tirano egípcio.
Há uma explicação para o fato de D'us ter influenciado o livre arbítrio dos egípcios: tinha sido o Faraó quem ordenara aos egípcios que afogassem os meninos hebreus recém-nascidos nas águas do rio Nilo. A Justiça Divina determinara que, mesmo tendo sofrido as Dez Pragas, os egípcios ainda teriam que pagar "medida por medida" pela crueldade que haviam cometido contra Israel.
A Torá nos relata que os Filhos de Israel saíram do Egito de "cabeça erguida". O Rabi Ovadia Sforno, famoso comentarista, escreve que foi o sentimento de triunfo de nosso povo o que convenceu o Faraó de que eles seriam presa fácil. Ele acreditava que os israelitas estavam confiantes demais e que a ingenuidade dos ex-escravos facilitaria sua captura. Em seu modo de pensar, apesar de serem um grande contingente, jamais conseguiriam derrotar o poderoso exército egípcio.
Suas tropas alcançam o povo de Israel enquanto este acampava frente ao mar. Os judeus viram marchar em direção a eles um exército forte, unido e extremamente bem-organizado, o mais poderoso da época. Naturalmente, amedrontaram-se: de um lado estava o mar, do outro, um inimigo impiedoso. Não podendo nem avançar nem recuar, só lhes restava uma opção: clamar pela Misericórdia Divina. Mas, ao ver os egípcios se aproximarem cada vez mais, os israelitas supõem que suas preces não estavam sendo atendidas. "Não teria sido melhor viver como escravos no Egito do que morrer aqui, no deserto?" perguntam a Moisés. Em pânico, o povo começa a recriminar seu líder.
O Rabi Chaim Benatar, o Or HaChaim HaKadosh, justifica o temor dos israelitas. Explica que enquanto nosso povo se encontrava encurralado, havia visto não apenas um poderoso inimigo físico, mas também um adversário espiritual: o anjo da guarda do Egito que se posicionara ao lado do Faraó. Esta visão fez os israelitas pensarem que, quiçá, D'us os tivesse abandonado. Mas, na verdade, explica o Or HaChaim, o anjo servia um propósito positivo: o temor que inspirava levou Israel a se aproximar ainda mais de D'us. Além disso, o Todo Poderoso queria que seus filhos diletos presenciassem a derrota do anjo da guarda egípcio, que seria aniquilado junto com as tropas egípcias. Isto serviria como símbolo de que o Egito não mais aterrorizaria o povo judeu.
Tentando decidir o que fazer, os israelitas se dividem em quatro grupos. Um deles sugere se render ao exército inimigo e retornar, como escravos, ao Egito. O segundo grupo decide se atirar ao mar e morrer. O terceiro se dispõe a lutar até a morte. E o quarto grupo decide rezar. Moisés exorta os filhos de Israel a não terem medo. Em resposta ao pânico generalizado, diz : "Não tenham medo. Fiquem firmes e verão o que D'us fará para salvá-los, hoje. Vocês podem ver os egípcios hoje, mas não voltarão a vê-los nunca mais. D'us lutará por vocês e vocês se calarão" (Êxodo, 14:13-14).
É Moisés quem então começa a orar a D'us. E o Eterno, surpreendentemente, lhe responde que não era hora de rezar, mas sim de seguir em frente, apesar do mar. D'us exclama: "Por que clamas a Mim?" E dá a seguinte ordem a Moisés: "Fala aos filhos de Israel que marchem! E quanto a ti, levanta o teu cajado e estende tua mão sobre o mar. Tu dividirás o mar, e os israelitas poderão cruzar sobre ele em terra seca" (Êxodo, 14:15-16). Ensina Rashi que, nessa hora, D'us disse a Moisés: "Por que clamas como se o destino de Israel dependesse de ti? A Mim cabe a responsabilidade de salvar Meu Povo; portanto, manda-os caminhar e Eu cuidarei de sua segurança".
Segundo o Or HaChaim, esta passagem nos leva a uma pergunta fundamental: quando alguém está em perigo, não é a oração sempre a resposta certa? Por que, então, teriam os judeus recebido a ordem de não rezar naquele momento tão crucial? O sábio responde que, assim como os egípcios, também os israelitas haviam adorado ídolos durante sua permanência no Egito. Portanto, perante a Justiça Divina, Israel não tinha méritos suficientes para ser salvo. Por isso, orar por si só não seria o suficiente. Por esse motivo D'us ordenou que o povo andasse em direção ao mar, demonstrando assim sua absoluta confiança Nele. Esta demonstração de fé serviria como mérito para que o mar se abrisse.
D'us também revela a Moisés que Ele iria punir os egípcios por terem atirado os meninos hebreus às águas do Nilo. Disse D'us a Moisés: "Eu endurecerei o coração dos egípcios, e eles te seguirão. Assim Eu triunfarei sobre o Faraó e todo o seu exército, suas carruagens e cavalaria" (Êxodo, 14:17).
De repente, a coluna de nuvem que andava diante dos filhos de Israel - a Torá se refere a esta como sendo um anjo já que agia como emissário de D'us - desloca-se para trás do acampamento israelita. Todas as outras noites, a coluna era substituída por outra de fogo. Mas naquela noite a nuvem colocou-se entre os israelitas e os egípcios, com um duplo propósito: impediu que os egípcios se beneficiassem da luz do pilar de fogo que iluminava o acampamento de Israel e serviu como escudo para os israelitas, protegendo-os das pedras e flechas lançadas pelos atacantes.
Seguindo a ordem Divina, Moisés estende sua mão sobre o mar... mas as águas não se abrem. D'us esperava que primeiro os israelitas demonstrassem confiança Nele antes de realizar o grande milagre. Foi Nachshon ben Aminadav, posteriormente líder da tribo de Yehudá, que entrou no mar e caminhou até as águas lhe chegarem à altura do pescoço. Acreditando que D'us os salvaria, confiando num milagre que é difícil até de se conceber, ele continuou com fé e bravura a caminhar pelas águas do mar, mesmo quando estava para se afogar. Só então o mar começou a se abrir.
Durante toda a noite, D'us abriu as águas com um poderoso vento leste, transformando o leito do mar em terra seca. Apesar de Moisés ter estendido sua mão sobre o mar, foi D'us, Ele Mesmo, quem, por meio de um forte vento, dividiu as águas. Rabi Moshe ben Nachman, Nachmânides, grande sábio e místico, explica que D'us realizou o milagre através do vento - um fenômeno da natureza - e não de uma outra forma explicitamente sobrenatural. Nachmânides explica que D'us assim procedeu porque quis que os egípcios ainda tivessem dúvida sobre o que causara a divisão das águas. Estes insistiam em acreditar que o mar fora, coincidentemente, aberto pelo vento, e não pelo D'us de Israel. Isto os fez perseguir os israelitas, entrando atrás deles mar adentro, com seus cavalos e carruagens.
No início da alvorada, D'us lançou relâmpagos e fortes chuvas contra as tropas egípcias. Fez também se desprenderem as rodas de suas carruagens. Só então os egípcios perceberam o que realmente acontecia e gritaram: "Fujamos de Israel! D'us luta por eles contra o Egito!" Mas era tarde demais. Diz o Eterno novamente a Moisés: "Estende tua mão sobre o mar. As águas voltarão sobre os egípcios, cobrindo suas carruagens e cavaleiros" (Êxodo, 14:26). De manhã, quando os israelitas estavam salvos, Moisés estendeu sua mão e as águas voltaram, afogando todos os egípcios que se tinham aventurado pelo mar.
Ao testemunhar um milagre que salvara os oprimidos e punira os opressores, os Filhos de Israel vivenciaram uma nova dimensão do Amor e da Justiça Divina. Os egípcios foram punidos da mesma maneira pela qual tentaram aniquilar o povo judeu - morreram afogados. Na tradição judaica, a morte, ainda que do inimigo, não pode ser comemorada. Portanto, a razão para que os israelitas testemunhassem o fim do exército egípcio foi para ter a certeza de que nenhum egípcio se salvara. Desta forma, futuramente, esse povo não poderia tentar capturar, novamente, o Povo de Israel.
O dia de sua travessia pelo mar, 21 de Nissan, foi quando os israelitas deixaram de ser escravos para sempre. Até então, apesar das Dez Pragas, ainda se sentiam como tal. Após a "abertura do mar", o povo de Israel finalmente se tornou um povo livre. Estava pronto a seguir em direção ao Sinai onde sua libertação física subiria um outro degrau, atingindo uma dimensão espiritual ímpar.
Ensinam nossos Sábios que durante a "abertura do Mar de Juncos", os Filhos de Israel presenciaram uma extraordinária Revelação: a natureza da existência de D'us: Sua Onisciência, Onipresença e Onipotência tornaram-se fatos palpáveis, claros como o dia. O Midrash relata que até as crianças cantaram, "Este é meu D'us e eu O glorifico". Revela o Talmud que com aquele grandioso acontecimento, todo o Povo de Israel se tornou uma nação de profetas. Mesmo o mais simples dentre eles testemunhou revelações maiores do que as vivenciadas por Ezequiel, o profeta cujas visões se tornaram um dos alicerces do estudo da Cabalá.
A respeito de milagres
Ao descrever a "abertura do Mar de Juncos", a Torá descreve um único milagre: a divisão das águas. Em contraposição, é no âmbito do Talmud, Midrash, Cabalá e de todos os comentários de nossos sábios que podemos analisar e procurar entender, em pormenores, o milagroso acontecimento. O Midrash nos conta que na "abertura do mar", D'us realizou não um, mas dez milagres para os Filhos de Israel. Um deles foi o mar se abrir em 12 caminhos, um para cada tribo. Outro milagre foi o leito do mar ter-se secado para que os israelitas pudessem caminhar, mas ter voltado a ser lama quando surgiram os egípcios. O Midrash também relata que uma fonte de água doce e potável surgiu no meio do mar salgado e que árvores de frutos lá cresceram para que os israelitas tivessem com o que se alimentar.
É interessante notar que os israelitas entraram e saíram pela mesma margem ocidental do Mar de Juncos. Ou seja, como afirma o Talmud, a abertura das águas aconteceu em semicírculo. O Povo de Israel não atravessou o mar de um lado para outro, como se costuma pensar. O milagre, portanto, não ocorreu para que eles pudessem chegar até o Monte Sinai; havia outros caminhos. O milagre da "abertura do mar" - da salvação dos israelitas e da morte dos egípcios - ocorreu para que fosse executada a Justiça Divina e para que Israel visse o Amor de D'us por Seu povo. É claro que, além disso, o episódio serve de lição para a humanidade de que D'us controla as forças da natureza, que não passam de joguete diante d'Aquele que as criou.
A palavra hebraica para milagre, ness, pode significar também estandarte ou bandeira. Um estandarte é posto em um lugar alto para que todos o possam ver. O milagre tem um propósito similar, sem ser físico, porém espiritual. Eleva a percepção humana a uma nova dimensão. Faz-nos lembrar que D'us está acima de nós, que é Onisciente, Onipresente e Onipotente e que é Ele quem rege todo o universo.
O milagre da "abertura do mar" se realizou através de um acontecimento natural: um poderoso vento leste soprou sobre as águas, durante toda a noite. E, como vimos anteriormente, o exército egípcio estava convencido de que a repartição do mar tinha sido obra do vento - e não do D'us de Israel. De fato, todos os milagres que ocorreram no Egito foram originários da própria natureza; talvez tenha sido por essa razão que os egípcios perseguiram os judeus, mesmo tendo sofrido as Dez Pragas. As legiões do Faraó só se conscientizaram que era D'us quem agia quando tudo já estava perdido.
Ao longo da história e ainda nos dias de hoje, há muitos que pensam como os egípcios. Muitos têm tentado descobrir a "verdade" científica por trás da "abertura do mar". Alguns concordam que as águas realmente se abriram, mas o atribuem a uma coincidência de fenômenos naturais, não a um milagre Divino. São muitas as especulações sobre que fenômenos naturais, próprios da região, poderiam ter provocado o extraordinário acontecimento.
Mas, para todos aqueles que acreditam que a Torá é de autoria Divina, são claras a história e as lições contidas nesse grandioso evento. D'us é Infinito e Onipotente e certamente tem o poder de controlar a natureza. Nada é impossível diante d'Ele. Segundo Maimônides, quando D'us criou o Universo com suas leis e propriedades físicas, criou também a possibilidade de acontecerem eventos extremamente improváveis. É o que chamamos de "milagre". Segundo os textos místicos, na hora da Criação, D'us impôs à natureza certas pré-condições. Uma destas foi a abertura do Mar de Juncos aos judeus no dia em que estes estivessem fugindo do exército egípcio.
Certa vez, o Baal Shem Tov foi questionado sobre a "abertura do mar". Quem o abordou dizia acreditar que a repartição das águas era, de fato, um acontecimento raro e improvável, mas não milagroso. O mestre chassídico rebateu com uma resposta que vale para todos aqueles que questionam a origem Divina na abertura do Mar de Juncos. Disse o Baal Shem Tov que o maior dos milagres não foi simplesmente o fato de as águas se abrirem, e sim, o de ter esse fenômeno ocorrido justamente quando os judeus precisavam atravessar aquele mar para se salvar (Torat Shlomoh, vol. 14, pág. 342 ).
Este ensinamento do Baal Shem Tov é um dos princípios básicos da Cabalá - de que todos os eventos no mundo, rotineiros ou extremamente improváveis, do sol que nasce a cada dia à "abertura do Mar de Juncos", são originários da mesma Fonte Suprema e Infinita.
Bibliografia
· The Chumash - The Stone Edition - Rabbi Nosson Scherman - Artscroll Series
· Torá Viva - Anotado por Rabbi Aryeh Kaplan. Tradução: Adolfo Wasserman. Editora Maayanot
· Torá: A Lei de Moisés. Tradução: Rabino Meir Matzliah Melamed. Editora Sêfer.
· The Call of the Torah - Shemos. Rabbi Elie Munk. Artscroll Mesorah Series.