Naquele dia contarás a teu filho, dizendo: É isto pelo que o Senhor me fez, quando saí do Egito (Êxodo 13:8).
O Seder de Pessach é o banquete da recordação. Celebrado durante as duas primeiras noites dePessach, comemora o aniversário da libertação do povo judeu do Egito. A Hagadá, que narra a história de Pessach, inicia-se com as seguintes palavras: "Este é o mísero pão que nossos antepassados comeram na terra do Egito". Esta afirmação expressa a devoção judaica à memória coletiva: estivemos todos no Egito onde sofremos a mesma angústia; até que, finalmente, de lá fomos todos libertados pela mão de D'us.
Um pouco mais adiante, na Hagadá, proclamamos que não tivesse D'us de lá nos libertado, nós e nossos filhos e os filhos de nossos filhos ainda seríamos escravos do Faraó. Durante o Seder, nossos filhos aprendem que seu presente está intrinsecamente vinculado à história de seus antepassados. De fato, as crianças são os principais protagonistas nessa refeição festiva; sentados à mesa de seus pais, aprendem a nossa história para que um dia, eles, também, possam transmiti-la a seus próprios filhos. O judaísmo - suas Leis e tradições - é transmitido de geração em geração. Sabemos que a Torá é verdadeira não por causa de todos os milagres realizados no Egito e no deserto do Sinai, mas porque D'us apareceu diante de 600 mil judeus e seus familiares, ordenando a eles e a todas as gerações futuras que ensinassem a Lei, a história e as tradições de seu povo a todos os seus futuros descendentes. Um evento presenciado por milhões de testemunhas não pode ser negado, bastando para isso que seja lembrado e suas mensagens, transmitidas.
O Seder é o momento dos questionamentos, uma vez que abre os portões da lembrança. Se as crianças não fizerem perguntas devemos estimulá-las a fazerem-no. O Talmud revela que tudo o que fazemos de diferente durante o jantar de Pessach tem a finalidade de fazer com que as crianças perguntem e nós respondamos. A Torá, portanto, afirma que "Quando teu filho, amanhã, te perguntar..." (Êxodo 13:14), devemos usar dessa oportunidade para lhe explicar que ele é judeu e que, como tal, tem uma missão Divina em sua vida.
Mas nem todas as crianças são iguais, nem tampouco fazem as mesmas perguntas. A Hagadá nos fala de quatro filhos. Um é sábio, um é malvado, um é ingênuo e o outro nem sabe como perguntar. O filho "sábio" diz, inquisitivo: "Todos esses testemunhos, leis e regulamentos que nos foram dados por D'us, o que significam?" Assim procedendo, o filho "sábio" mostra seu desejo de conhecer a história de Pessach. O filho "malvado", no entanto, desafia todos os presentes ao Seder, ao perguntar: "O que significa tudo isso para vocês?" E por dizer "para vocês" e não para ele, dá a entender que a cerimônia e tudo o que representa nada significam para ele. A atitude do filho "ingênuo" não denota sua falta de interesse, mas sim pouca compreensão do profundo significado da cerimônia. Ele pergunta: "Que significa tudo isso?" E temos o dever de lhe responder: "Com mão forte D'us libertou o povo judeu do Egito, da casa da escravidão". O quarto filho é o que nem sabe como enunciar a pergunta. Devemos, portanto, levá-lo ao processo do aprendizado, ensinando-lhe: "Fazemos tudo isto por causa de tudo o que D'us fez por mim quando me tirou do Egito".
O grande sábio alemão, Rabi Samson Raphael Hirsch, dizia que os quatro filhos simbolizam quatro gerações de judeus. A primeira segue os preceitos de seu pai, a segunda se opõe a eles, a terceira a eles se submete mesmo sem entendê-los, e a quarta nem mesmo percebe o quanto desconhece. Mas, como apontava o Rabi Menachem Mendel Schneerson, o Lubavitcher Rebe, todos os quatro filhos estão presentes ao Seder, até mesmo aquele a quem a Torá julga "malvado".
Ele explicava que há um outro filho e que esse, sim, merece nossa preocupação. É o quinto filho, que não é explicitamente mencionado na Hagadá - o filho ausente, aquele que nem mesmo se dá ao trabalho de comparecer. E o Rebe de Lubavitcher explicava que a tarefa de todos os judeus é trazer o quinto filho à mesa do Seder e acordá-lo espiritualmente, para que ele se lembre quem ele realmente é.
A libertação dos judeus do Egito começou pela recordação. D'us, por assim dizer, "lembrou-se de Seu povo", como Ele o disse a Moisés: "Em verdade, tenho-Me lembrado de vós..." (Êxodo 3:16). Temos o dever de retribuir este gesto lembrando-nos da libertação do Egito todos os dias de nossa vida. Por que razão este fato é tão mais enfatizado emPessach? Não se trata apenas de recordar os eventos celebrados nessa festividade, nem apenas de transmitir nossa herança a nossos filhos. Há uma outra razão, bem mais profunda. Os místicos nos ensinam que a memória e a imaginação são o que nos permitem associar-nos com um evento passado para que possamos reviver os acontecimentos. Pois somos limitados pelo espaço e pelo tempo apenas fisicamente. Segundo o Zohar, todos nós, apesar de estar vivendo em diferentes corpos, fomos escravos no Egito. Todos testemunhamos os grandiosos milagres lá ocorridos, vivenciando a libertação. E emPessach, apesar de não estarmos conscientes disso, nossas almas recordam-se dos eventos narrados na
Recordar é uma conquista espiritual. Os sábios nos ensinam que quando recordamos eventos passados, eles são reencenados nos Céus. A Benevolência Divina que obrou os milagres é despertada por nosso ato de recordação. Portanto, recebemos a ordem de recordar a libertação do Egito para que nós, também, consigamos escapar de limitações e dificuldades de nossa vida física e espiritual. Ao longo do ano, enfrentamos desafios e dificuldades.Pessach nos ensina a ter fé em D'us de que tudo sairá da melhor forma possível. Pois quando nos lembramos dos eventos celebrados durante essa festividade, percebemos que todo judeu tem a capacidade de se transformar, e transformar a sua realidade de um extremo a outro, independentemente do tempo que tem diante de si.
O Seder - e, na verdade, toda a semana de Pessach - é uma festa de fé em D'us. O grande sábio espanhol, Don Yitzhak Abravanel, explicava que o tema principal do Seder é o fato de Israel ter sido atirado da escravidão para a majestade, num piscar de olhos. Ao soar a meia-noite, com a morte de todos os primogênitos egípcios, o povo judeu tornou-se um povo de homens livres, prestes a iniciar sua jornada em direção ao Monte Sinai, para receber a Torá. Isto é expresso nos rituais aparentemente contraditórios da cerimônia: comemos matzá, o "mísero pão de nossa aflição", e maror - as ervas amargas - para recordar a nossa escravidão e o nosso sofrimento. Por outro lado, reclinamo-nos em nossas cadeiras - um sinal de majestade - e temos uma refeição suntuosa, símbolo de riqueza e luxo. O Rabi Abravanel nos ensinava que não há incoerência alguma: lembramo-nos de ambas as condições de nosso povo na noite de Pessach - eles começaram a noite como escravos e a encerraram como homens livres.
Tudo o que envolve o Seder é profundamente simbólico. Há quatro copos de vinho, quatro filhos, quatro perguntas. O Gaon de Vilna, um mestre da Torá e líder dos judeus lituanos, explicava que o uso do número "quatro" é uma alusão à exigência na época do Beit Hamikdash de que aquele que foi salvo do perigo devia levar uma oferenda ao Templo como expressão de gratidão. Há quatro categorias dessas pessoas: aqueles que cruzam uma região perigosa, aqueles que estiveram na prisão, aqueles que estiveram gravemente enfermos e aqueles que cruzaram os mares. Os judeus que escaparam do Egito encaixavam-se nessas quatro categorias: cruzaram o mar que se dividiu para que passassem; vagaram pela aridez do deserto; tinham estado na prisão da escravidão egípcia e tinham estado física e espiritualmente enfermos, em conseqüência da opressão a que estavam submetidos no Egito. Como gratidão a D'us por essas quatro formas de salvação, ressaltamos o número quatro no ritual do Seder.
Mas no Seder há também um quinto copo de vinho, destinado ao profeta Eliahu, que será aquele a anunciar a vinda de uma nova era. E esta será uma época em que, entre inúmeras outras maravilhas, todos os "quintos filhos" remanescentes irão retornar, abraçando suas tradições e sua herança espiritual. Mas e uma quinta pergunta? Esta não é feita de forma explícita, mas talvez seja a mais importante de todas: "Quando haverá D'us de trazer esta nova era, levando todos os judeus de volta à sua Terra"?
O Talmud usa uma linguagem figurativa quando fala do exílio judaico. Descreve a dispersão dos judeus de sua Terra como se fossem crianças expulsas da mesa de seu Pai. Ensina o Talmud que não há um dia sequer em que D'us não lamente a ausência de Seus filhos de Sua mesa.
Há um profundo ensinamento místico que revela que tudo que existe e ocorre em nosso mundo físico é um reflexo de uma realidade ou ocorrência no mundo espiritual. O Seder, quando filhos sentam na mesa de seu pai e fazem as quatro perguntas, tem portanto um profundo significado místico, pois que naquela noite é como se estivéssemos novamente reunidos ao redor da mesa de nosso Pai, para a Ele dirigir os nosso questionamentos.
Iniciamos o Seder - este banquete mágico, místico, fazendo perguntas. E o concluímos com uma afirmação: "No próximo ano em Jerusalém". Isto também constitui uma recordação - não do passado, mas do futuro. O Rabi Nachman de Bratslav, líder chassídico e mestre da Cabalá, ensinava que quando um judeu desperta, pela manhã, ele se deve lembrar do mundo da forma como este poderia ser - da forma como ele, um dia, será. Esta recordação do futuro, expressa diariamente em nossas orações há mais de dois mil anos, é um rogo que fazemos a D´us para que Ele traga seus filhos de volta à Sua mesa, para todo o sempre.
Bibliografia:
The Haggadah Treasury - The Artscroll Mesorah Series. Editado por Rabi Nosson Scherman
A Pessach Haggadah. Comentada por Elie Wiesel, Simon & Schuster Inc.
Remembering the future, Rabi Mordechai Gafni, Farbrengen Magazine - farbrengen.org
Torah Studies - Discourses by the Lubavitcher Rebbe, Adaptação do Rabi Jonathan Sacks, Kehot Publication Society