Pessach é a festa da fé. É conhecida pela Matzá que comemos, chamada de “pão da fé”, e pelos milagres que comemora, como são contados no Livro Êxodo e na Hagadá que recitamos durante o Seder. A fé e os milagres são temas que fazem parte de qualquer religião – e certamente da nossa. Mas qual o significado da fé e dos milagres segundo o Judaísmo?
A fé não se relaciona apenas a crenças religiosas, mas, na mesma intensidade, senão mais, a uma infinidade de pequenas coisas que são parte de nossa vida diária. Certas pessoas são crédulas enquanto outras são céticas, mas todos somos crentes, em algum grau. Há muita fé mesmo em pessoas que se julgam ateus. Muitos de nós se orgulham de sua racionalidade, acreditando basear seus atos e crenças em conhecimentos precisos, fatos comprovados e uma apurada triagem de nossas opiniões. A verdade, contudo, é que ninguém é totalmente descrente. Todos nós aceitamos quase tudo de boa-fé.
A fé está entranhada em nossa vida e é impossível viver sem ela. Quando crianças, acreditamos em tudo o que nos ensinam no colégio e raramente questionamos algo. A maior parte de nosso conhecimento, mesmo já adultos, não é verificada e, quase sempre, impossível de sê-lo – e nós acreditamos, de bom grado, que seja verdadeiro e correto. E o fazemos por ser praticamente impossível tentar comprovar até mesmo as coisas mais básicas. Não temos tempo nem recursos nem o conhecimento que nos permita pesquisar e tentar comprovar a maioria das coisas que julgamos saber. Por exemplo, qual o estudante que tem tempo, recursos e conhecimentos necessários para verificar se cada uma das informações em seus livros didáticos de Geografia e Biologia estão corretas? Em História, também; quase tudo o que aprendemos não pode ser verificado: baseamos nosso conhecimento em fontes históricas que são muito subjetivas e, em certos casos, imprecisas. Contudo, as aceitamos e aceitamos os fatos como verdadeiros.
E não apenas as crianças acreditam no que lhes é ensinado. Mesmo os adultos têm de dar, com frequência, muitos votos de confiança, acreditando no que lhes dizem. Por exemplo, damos um voto de confiança sempre que compramos um medicamento em uma farmácia: quem tem tempo e recursos para enviar o medicamento para um laboratório verificar se está tudo certo? E ainda que o mandássemos ao laboratório, teríamos que confiar que eles o verificariam corretamente. Da mesma maneira, sempre que entramos em um avião, damos um voto de confiança ao piloto, confiando que ele tenha capacidade de o pilotar, mesmo sem o conhecermos pessoalmente, e também confiamos que a aeronave esteja perfeitamente apta a voar, apesar de a maioria de nós não saber coisa alguma sobre aviação e pilotagem.
Praticamente tudo o que alegamos saber se baseia em fé, em maior ou menor grau, pois é impossível ter certeza absoluta de algo, qualquer coisa que seja. De tempos em tempos, somos lembrados disso: os jornais admitem ter apresentado de maneira errônea os fatos; descobrem-se erros factuais em livros didáticos; uma empresa farmacêutica é processada por conter informações errôneas nas bulas acerca dos ingredientes, dosagens e instruções. Contudo, apesar de todas as informações erradas e os percalços, temos confiança nos professores, nos pilotos e nas empresas que produzem e manuseiam os alimentos que ingerimos e os medicamentos que tomamos.
Quando alguém alega ser cético, esse alguém não está fazendo uma afirmação precisa. Um verdadeiro cético despido de qualquer fé não aceita nada sem que ele próprio o possa verificar. Mas isso é impossível de ser feito. Mesmo o mais cético dos cientistas precisa fundamentar suas pesquisas e resultados em várias premissas, e mesmo aquele que é paranoico e obcecado por teorias da conspiração tem de aceitar que certas coisas são verdadeiras. Mesmo o ser humano menos crédulo tem de ter fé a cada instante de sua vida, desde acreditar que o Sol irá nascer no dia seguinte até crer que um gigantesco meteoro não colidirá com a Terra, fazendo-a desaparecer. Se as pessoas não tivessem fé alguma, elas não investiriam no futuro – nem em seus estudos nem em sua carreira, que dirá em poupar para sua aposentadoria – porque ao fazê-lo precisam ter fé de que estarão vivas para colher o que plantaram.
A fé é onipresente e ninguém vive sem tê-la. Mas podemos decidir o que aceitar como fé e o que não. É importante observar, porém, que a percepção da dicotomia entre “questões de fé” e “fatos incontestáveis” tem menos a ver com racionalidade do que com o que é socialmente aceito em nossa sociedade, grupo social ou em nosso período histórico. Aquilo que é do “conhecimento de todos” é algo que não nos sentimos obrigados a comprovar, ao passo que tudo aquilo que não é parte do saber geral da maioria das pessoas fica a critério dos crédulos – ou seja, dos que creem.
Todos nós conhecemos pessoas que não frequentam sinagogas ou igrejas pelo fato de julgarem não haver provas da existência de D’us, mas que falam, com naturalidade, sobre as vibrações ou buscam a cura nos cristais, ou mesmo que consultam a página de Astrologia no jornal. Nem todas as pessoas creem em tais superstições; algumas preferem aderir a outras menos óbvias, como acreditar em tudo que leem nas mídias sociais ou se deixar levar por influenciadores digitais e celebridades. Há pessoas que se recusam a procurar um lugar de oração porque alegam não ter provas de que as orações são eficazes, mas que creem que se vestir com roupas de certas cores no Réveillon traz boa sorte.
Há muita fé e talvez mesmo um excesso de credulidade nos seres humanos – mesmo entre aqueles que se vangloriam de serem céticos e racionais. A questão é: por que essa abundância de crença não inclui, na maioria das vezes, a fé em D’us? Talvez seja porque exige muito esforço o fato de se abrir a essa possibilidade, e talvez até uma mudança significativa na vida da pessoa. A principal razão para tantas pessoas acreditarem em superstições e, por outro lado, serem tão esquivas a ter fé em D’us é porque é muito fácil e não exige esforço algum crer em coisas banais. Já as crenças religiosas, essas carregam em si muitas consequências mentais, morais e práticas. Outra razão para o fato de os seres humanos aceitarem tantas coisas sem exigir qualquer prova é simplesmente o fato de não considerarem tais coisas importantes ou significativas. Por exemplo, se perguntássemos a um estudioso de História em que época viveu Alexandre, o Grande, essa pessoa nos daria a data e provavelmente vários detalhes sobre sua vida e seus feitos. Ninguém duvida da existência desse grande líder militar grego. E por quê? Acreditamos na sua existência graças a registros históricos bastante antigos a respeito de eventos que ocorreram há mais de dois milênios. Obviamente, nenhum de nós conheceu Alexandre, o Grande, em pessoa. Acreditamos que tenha existido porque aceitamos como verdade o que nos dizem os livros de História da Civilização. Certamente há evidências circunstanciais que embasam a crença em sua existência, e mesmo o Talmud se refere a ele. Mas não podemos dizer que temos certeza de sua existência como temos dos governantes atuais. Alexandre, o Grande, viveu há muito tempo e ninguém tem como afirmar que haja prova absoluta e irrefutável de que ele não seja um personagem de ficção. Por que, então, é tão fácil as pessoas acreditarem na existência de Alexandre, o Grande? Porque não nos importa, ao menos para a maioria de nós, se ele realmente existiu. Se não existiu, mas é fruto da invenção de alguém, que diferença faz? Da mesma forma, aceitamos dados sobre o tamanho do Oceano Pacífico e sobre a altitude do Monte Everest. Essas crenças não trazem consequências, por isso aceitamos como verdadeiras as informações dos livros didáticos e dos mapas-múndi.
No entanto, há certas crenças que acarretam muitas consequências. A fé em assuntos importantes e existenciais deixa muitas marcas em nossa vida: molda nossa visão de mundo e nosso comportamento, o certo e o errado e nossos valores de vida. A existência Divina obviamente tem implicações extensas. A aceitação de um princípio de fé não é difícil – nós o fazemos o tempo todo. O difícil é aceitar as consequências inerentes a esse princípio.
Milagres e fenômenos naturais
Quando, em 1961, os primeiros cosmonautas soviéticos retornaram do espaço, o premiê Nikita Khrushchev lhes perguntou: “Vocês viram alguém lá em cima?”. Quando responderam negativamente, Khrushchev declarou, alegremente, que isso constituía a prova derradeira de que D’us não existia. O raciocínio do líder soviético era que se os cosmonautas não viram D’us no espaço sideral – o lugar onde tantas pessoas acreditam, erroneamente, que Ele se encontra –, isso significava que Ele inexistia.
O problema óbvio com a conclusão do líder soviético – além do fato de que D’us não é um ser físico – é que várias coisas que existem no mundo e têm profundo impacto em nossa vida não podem ser captadas por nossos cinco sentidos. O fato de os seres humanos não conseguirem ver algo obviamente não significa que esse algo inexista. Um exemplo atual e relevante, ainda que infeliz: não podemos ver a olho nu, falar, ouvir, tocar ou cheirar o Coronavírus. Contudo esse vírus virou o mundo de cabeça para baixo, afetando a vida de bilhões de pessoas. Os cientistas têm as ferramentas avançadas – potentes microscópios – que lhes permitem identificar o vírus. Mas, e se vivêssemos em uma época em que não se tinha o conhecimento científico nem esses poderosos microscópios para ver e identificar o Coronavírus? E mesmo hoje, apesar de todos os óbitos e destruição, há pessoas que alegam que o Coronavírus é uma fraude. Talvez essa gente siga o mesmo raciocínio que Khrushchev utilizou para tentar negar a existência Divina: aquilo que não conseguimos ver não existe. E mesmo quando os cientistas fornecem imagens aumentadas do vírus, essas pessoas dizem que se trata de uma invenção da comunidade científica e da indústria farmacêutica que lucra com a mesma. Não há comprovação que baste para alguém que se recusa a crer em algo.
Se há pessoas que esperam ver D’us “andando” pelo espaço sideral, elas ficarão desapontadas pois não O encontrarão. Há pessoas que entendem que um Ser Infinito não é corpóreo – e que, portanto, não pode ser visto –, mas que pedem milagres como prova da existência Divina. No entanto, filosoficamente – como indicou Maimônides (o Rambam) há quase um milênio – um milagre não prova coisa alguma. Um milagre apenas significa que algo de extraordinário ocorreu, e apenas isso. Um milagre que viola o que conhecemos por leis da natureza é simplesmente o que é: algo surpreendente que está além do que entendemos das leis da Ciência. Por exemplo: o relato que consta na Torá sobre o cajado de Aaron ter virado uma serpente e depois voltar a ser um cajado é muito surpreendente e sobrenatural – não há explicação científica para isso. Mas não tem nada que ver com a existência de D’us. Nem sequer comprova que Aaron e Moshé eram emissários Divinos, pois, como a própria Torá nos conta, os feiticeiros do Faraó também souberam replicar esse feito sobrenatural. Os eventos sobrenaturais não provam que D’us exista. Tudo o que provam é que o mundo não é totalmente regido pela lei natural. Um evento sobrenatural é apenas uma anomalia – e nada mais. De fato, pode mesmo nem ser um evento significativo.
Há uma parábola na literatura árabe que se aplica à nossa discussão. Um velho filósofo estava perdido em uma ilha com um jovem discípulo. Ele havia educado o jovem, ensinando-lhe tudo o que sabia. Quando cresceu, o aluno perguntou ao mestre: “Como viemos parar neste mundo?”. E o professor lhe descreveu o processo. O jovem, apesar de sua educação e respeito pelo mestre, respondeu: “Isso que você me diz é uma ficção tão mirabolante que não dá para se acreditar. Por experiência própria sei que se eu não respirar por dois minutos, morro. E agora você vem me dizer que eu sobrevivi durante nove meses sem respirar! Isso claramente é uma impossibilidade, sem lógica alguma, e prova cabal de que toda essa história é inventada!”.
Um dos pontos dessa parábola é que mesmo uma teoria improvável não compromete a realidade. Se algo existe, simplesmente existe, quer seja provável ou improvável, quer acreditemos nesse algo quer não, quer possamos ou não provar sua existência. Se é, é; se não é, não é. Não importa quão plausível ou implausível seja algo, as opiniões de terceiros não têm impacto algum em sua existência ou inexistência. Por exemplo, acreditamos que as girafas existam porque a maioria de nós já as viu. Por outro lado, há pessoas que não creem na existência do Leviatã – uma gigantesca criatura marinha mencionada no Talmud e no Livro dos Salmos – pelo fato de nunca a termos visto. Mas se tivéssemos que descrever uma girafa a alguém que nunca tivesse visto esse animal, essa pessoa poderia dizer que se trata de um conceito implausível; as girafas não parecem mesmo criaturas plausíveis. O planeta Marte, a galáxia de Andrômeda e as girafas existem – quer acreditemos ou não em sua existência. E existem independentemente do fato de acreditarmos ou não em sua existência.
Da mesma forma, a existência de D’us independe de seres humanos que acreditem ou não em Sua existência. D’us existe mesmo que ninguém o creia. Como ensinou Maimônides, os fatos moldam as opiniões e não o contrário – as opiniões não moldam os fatos. As coisas são verdade ou não; existem ou não existem, independentemente das crenças e opiniões das pessoas.
Os Milagres de Pessach
Como o Êxodo do Egito marca a gênese do Povo Judeu como nação, muitos creem, erroneamente, que os eventos que levaram à libertação dos Filhos de Israel sejam as bases da Fé Judaica. Acreditam que a veracidade do Judaísmo gira em torno do fato de as Dez Pragas do Egito e da abertura do Mar serem decorrentes de milagres. E que, se houvesse explicação científica para a razão disso ter ocorrido, a história do Êxodo do Egito não seria prova alguma da existência de D’us e da veracidade da Torá.
A verdade é que nós, judeus, somos os primeiros a admitir, como ensinou Maimônides, que os milagres não provam nada. O Judaísmo e seus princípios fundamentais, como o conhecimento da Existência Divina, a Providência e a Revelação independem da ocorrência das Dez Pragas e da abertura do Mar. Cremos em D’us e em Sua Torá não por causa do Êxodo do Egito, mas por causa da Revelação Divina no Sinai, perante milhões de pessoas. E por que o Judaísmo não se originou nos milagres ocorridos no Egito e no Mar de Juncos? Porque, como vimos acima, milagres não comprovam a existência de D’us nem a veracidade de religião alguma. Os membros de todas as religiões e até os idólatras conseguiram realizar milagres. A própria Torá atesta isso ao relatar que os feiticeiros do Faraó realizavam feitos sobrenaturais.
Se um milagre é definido por romper as leis da Natureza, então o maior milagre de todos os ocorridos no Egito não foram as Dez Pragas nem a divisão do Mar. Foi, como dissemos acima, o cajado de Aaron ter virado uma serpente e depois voltado a ser o cajado. Chama atenção o fato desse fenômeno sobrenatural nem sequer constituir uma das Pragas. De fato, como conta a Torá, nem chegou a impressionar o Faraó, pois seus feiticeiros conseguiram replicar o mesmo feito.
Entre as Dez Pragas, a única que constituiu um fenômeno sobrenatural foi a primeira: fazer as águas do Egito virarem sangue. Não há explicação científica para isso. Mas como a própria Torá nos conta, os feiticeiros do Faraó também conseguiram fazê-lo. Claramente, nem o cajado virar serpente nem as águas virarem sangue provaram algo sobre a existência de D’us. Afinal, como poderiam fenômenos sobrenaturais que podem ser realizados por feiticeiros politeístas, idólatras e malvados atestar a existência de D’us?
E as demais nove pragas e a abertura do Mar nem mesmo foram sobrenaturais. Rãs, piolhos, insetos, pragas e morte do gado, chagas, granizo, nuvens de gafanhotos, trevas e a morte súbita dos primogênitos foram eventos assombrosos, mas não sobrenaturais. Há explicações científicas até para o fato do granizo que abateu o Egito conter fogo. Quanto à abertura do Mar, isso poderia ter sido causado por um tsunami. Ironicamente, as últimas oito pragas, que não eram sobrenaturais, foram as que os feiticeiros egípcios não conseguiram reproduzir: eles conseguiram replicar apenas a praga do sangue – que foi, de fato, sobrenatural – e a praga das rãs. Isso serve de corroboração de que não podemos definir um milagre como sendo uma violação das leis da natureza, pois nove dos dez milagres que D’us realizou para libertar os judeus do Egito não foram fenômenos sobrenaturais. O que, então, houve de milagroso nas Dez Pragas e na abertura do Mar, que constituem um dos temas principais do Seder de Pessach? Foi o fato de terem caído sobre os egípcios, poupando os judeus.
O Faraó libertou os Filhos de Israel não pelo fato de o Egito estar assolado por desastres, pois estes ocorrem de tempos em tempos. Tampouco o impressionou o cajado de Aaron ter transformado as águas do Egito em sangue; seus feiticeiros também o fizeram. O que perturbou o Faraó foi o fato desses fenômenos só terem ocorrido com os egípcios, não com os judeus, que viviam na mesma terra. O mesmo se aplica às demais pragas, já que nenhuma delas caiu sobre os judeus e suas propriedades. Por exemplo, como foi possível que uma praga apenas matasse o gado dos egípcios, sem afetar nem um único animal dos milhões de judeus que viviam no país? Seus animais não eram diferentes daqueles dos egípcios. Não há explicação lógica para os animais pertencentes aos judeus terem sido poupados.
A 10ª praga finalmente derrubou o Faraó – não devido à morte súbita no Egito, mas porque foi direcionada a alvos específicos – os primogênitos egípcios, poupando todos os judeus. Finalmente, ficou claro ao Faraó aquilo que seus feiticeiros lhe tinham alertado, no momento em que não conseguiram replicar a terceira praga, a do piolho: tudo o que ocorria não era causado por forças aleatórias da natureza, mas eram ato de um Poder Superior que claramente punia os egípcios.
Assim sendo, a definição de um milagre – como explicamos em um artigo anterior em Morashá (Ed. 106, Os Milagres no Judaísmo) – não é necessariamente um evento sobrenatural, mas um favorecimento e ato de graça Divinos. O que as Dez Pragas e a abertura do Mar demonstraram, ao Povo de Israel e ao Faraó e seus magos, foi que Aquele que controla as forças da natureza poupou os judeus enquanto castigava os egípcios.
O Mar de Juncos, as fontes de água de um país, as rãs, os piolhos e as demais pragas não diferenciam entre os cidadãos de diferentes nacionalidades. A única razão lógica para as pragas pouparem os judeus foi o fato de não serem desastres naturais, mas sim, recursos usados pelo Todo Poderoso. Ou seja, os milagres do Egito não foram as pragas, mas o fato de terem sido instrumentos da Divina Providência. Se as pragas também tivessem atingido os judeus, não haveria milagre e o Povo de Israel não teria sido libertado. A Graça Divina a favor dos judeus expressa pelas Dez Pragas é o tipo de milagre que pode reforçar a fé na existência de D’us – a percepção de que os eventos no mundo, naturais ou sobrenaturais, não são aleatórios, mas sim, orquestrados por um Poder Superior. O propósito de um milagre, portanto, não é a violação das leis da natureza. O propósito de um milagre é nos fazer lembrar que há um Ser Superior que coordena tudo o que ocorre no mundo, sejam essas ocorrências fenômenos naturais ou sobrenaturais.
Em Pessach, e particularmente durante o Seder, narramos e celebramos os milagres – os favorecimentos Divinos – que conduziram à libertação de nosso povo da escravidão egípcia. Mas temos que enfatizar que mesmo os milagres da Providência Divina expressos nas Dez Pragas não constituem o berço do Judaísmo. Cremos na veracidade do Judaísmo não apenas por causa dos eventos que levaram ao Êxodo do Egito, mas por causa da Revelação Divina no Monte Sinai.
Como explica o Sefer HaChinuch: Se D’us não Se tivesse revelado a todo o Povo Judeu no Monte Sinai e nos dado a Sua Torá, uma pessoa desafiadora poderia dizer, ao ver todos os milagres que Moshé realizou perante o Faraó e perante o Povo de Israel: “Quem sabe se Moshé os realizou por meio do poder de D’us ou por meio de técnicas demoníacas de sabedoria ou do poder do nome dos anjos?”. E apesar de que todos os sábios e feiticeiros egípcios disseram ao Faraó que Moshé fizera os milagres por meio do poder de D’us, como está escrito: “É o dedo de D’us” (Êxodo 8:15), mesmo assim uma pessoa obstinada ainda poderia dizer: “Tudo se deveu à superioridade de conhecimento de Moshé sobre a magia e as forças demoníacas que o levaram a fazer as mágicas – e foi por isso que os magos egípcios cederam perante ele”.
Em outras palavras, um cético poderia argumentar que Moshé dominava certas artes de magia que eram desconhecidas pelos egípcios, e por isso estes atribuíram os milagres a D’us apenas por desconhecerem o fato de que tais atos milagrosos podiam ser realizados por outros meios. Contudo, depois que o Povo de Israel vivenciou a profecia no Monte Sinai, ouvindo a Voz de D’us, não houve mais lugar para ceticismo algum. E eles entenderam claramente que todos os atos de Moshé haviam sido efetuados sob o comando do Mestre do Universo e que Sua Mão comandara tudo o que lhes ocorrera.
Uma das razões para Pessach ser considerado a Festa da Fé é que apesar de haver documentos históricos e achados arqueológicos que atestem os relatos da Torá sobre as Dez Pragas, é preciso termos fé e acreditarmos nelas, assim como fazemos ao estudar História Antiga. E ainda, uma pessoa cética pode sempre argumentar que essas pragas não provam a Existência Divina, pois pode ter sido apenas uma incrível coincidência o fato de terem assolado apenas os egípcios, poupando os judeus.
Alguns desses argumentos são válidos, e é por essa razão que o Êxodo não constitui a base do Judaísmo. A história da saída do Egito é relatada pelo segundo livro da Torá e está associada a muitos mandamentos do Judaísmo, inclusive à própria mitzvá de mencionar o Êxodo todos os dias de nossa vida. Contudo, as Dez Pragas e a abertura do Mar de Juncos não constituem a base do Judaísmo. Afinal, como ensinou o Rambam, os milagres não provam nada. Mas os eventos históricos, particularmente quando envolvem milhões de pessoas, como foi a Revelação Divina no Monte Sinai, exigem uma medida de fé, mas o tipo de fé que é usado pelos cientistas e historiadores respeitados e por todos aqueles que buscam sinceramente a verdade – a fé que é aceita como fato apenas porque se baseia em evidência concreta. Pessach celebra a liberdade do Povo Judeu, mas apenas marca o início de um processo que culmina 50 dias depois, na festa de Shavuot, quando celebramos a Divina Revelação no Monte Sinai – um evento no qual a fé em D’us do Povo de Israel foi corroborada com fatos concretos.
BIBLIOGRAFIA
Simple Words - Rabbi Adin Even-Israel Steinsaltz - Simon & Schuster
The Schottenstein Edition Sefer Hachinuch / Book of Mitzvos - Volume #1 - Artscroll - Mesorah