A matsá, símbolo maior de Pessach, incorpora a própria essência do Êxodo - é o pão da pobreza e da escravidão. Mas, por mais contraditório que possa parecer, é também o pão da liberdade e da redenção.

É tão fundamental à celebração da festividade que a Torá se refere à data como Chag HaMatsot, a "Festa das Matsot". Todo o Seder praticamente gira em volta de três matsot, que são exibidas ao se iniciar a narrativa da Hagadá, com a declaração, "Ha-Lachmá Anyá, "Este é o pão da pobreza que nossos antepassados comeram na terra do Egito. Todas as noites comemos chamets ou matsá; mas, nesta noite, somente matsá".

No judaísmo, tudo tem uma razão de ser, especialmente na noite do Seder, quando cada ato é repleto de inúmeros simbolismos. É nessa noite que relembramos e ensinamos a nossos filhos, como D'us nos transformou, tão rapidamente, de escravos - empobrecidos, material e espiritualmente - em uma nação de homens livres, prestes a iniciar sua jornada a caminho do Sinai. A matsá, pão ázimo em português, pão simples feito apenas de farinha e água, assado antes que a massa fermente, representa essa jornada. E, segundo a Cabalá, representa a fé de nossos ancestrais

A Matsá em contraposição ao chamets

Comer matsá em Pessach é um mandamento bíblico. Mais do que ordenar que só comêssemos desse pão ázimo durante os oito dias da festividade, D'us nos proibiu terminantemente de comer ou sequer ter em nossa posse a mais ínfima partícula de chamets. Freqüentemente traduzido por fermento e levedura, este termo engloba, na realidade, qualquer alimento produzido com alguma das cinco espécies de cereais - trigo, cevada, centeio, aveia e trigo sarraceno - ou qualquer de seus derivados que tenha entrado em contato com água, pois isso desencadearia o processo de fermentação. A Torá ordena que, antes do início de Pessach, nos desfaçamos de tudo o que é chamets em nossa propriedade, em virtude da proibição de usufruir ou tirar proveito do mesmo. Uma busca rigorosa é feita em nossos lares para eliminar qualquer vestígio dos alimentos proibidos.

O pão é o alimento mais básico da espécie humana e a matsá, o mais básico dos pães, feito como vimos, com um mínimo de ingredientes.Qual é diferença entre estes dois alimentos? Não são os ingredientes, pois ambos são feitos com farinha e água. A resposta é o tempo, mais especificamente, 18 minutos. Todo o ciclo de produção da matsá, desde o instante em que se mistura farinha e água, até estar completamente assada, deve levar, no máximo, 18 minutos. Se passar disso, o alimento é considerado chamets, pois se terá iniciado o processo natural de fermentação. Microrganismos encontrados no ar - as leveduras - invadem a mistura, metabolizando os açúcares e liberando um gás responsável pelo volume, gosto e textura da massa. Foram os egípcios, há cerca de 4 mil anos, os primeiros a descobrir esta propriedade: deixando-se descansar uma mistura de água e farinha por algum tempo, a mesma "cresce". O pão egípcio tinha o inconveniente de levar mais tempo para ser produzido, mas era macio e saboroso, bastante parecido com o que estamos acostumados a comer, hoje.

Assim sendo, a primeira lição que a matsá nos ensina é a noção de tempo. Meros 18 minutos determinam se a massa poderá ser utilizada em Pessach, ou não. E, como ensinava o Rebe de Lubavitch, tempo é vida. Em hebraico, o número 18 equivale, numericamente, à palavra "chai" - vida. Isto pode ser interpretado da seguinte maneira: quando desperdiçamos nosso tempo, usando-o de forma negativa ou mesmo improdutiva, estamos permitindo que a ação positiva que a matsá simboliza se torne o que o chamets simboliza em Pessach - um desvio de caminho. E, similarmente ao chamets, que nunca poderá voltar a ser matsá, o tempo perdido também é irrecuperável, não volta jamais.

A produção de matsot é um processo meticuloso, que incorpora em si várias lições. Uma diz respeito ao fato de que nenhum "elemento" externo pode definir o formato de uma matsá - contrariamente ao que ocorre com o pão, cuja forma e textura são definidas pela "invasão" de microorganismos. E tal invasão independe da vontade de quem o está fabricando, pois se a massa ficar parada ou se o processo levar mais do que 18 minutos, os levedos passam a agir. A Cabalá traça um paralelo entre a invasão e ação da levedura sobre a massa e a "intrusão" de forças espirituais negativas em nosso "eu" espiritual, a essência de nossa vida interior. Todo ser humano, ensina o Zohar, anseia imbuir sua existência de sentido, mas a realidade física em sua volta, bem como medos e desejos, interferem em sua percepção. Ao nos invadirem, freqüentemente contra nossa vontade, tais elementos estranhos modificam pensamentos e atitudes, fazendo com que trilhemos por caminhos que nos afastam de D'us. Segundo a Cabalá, a matsá representa o homem em controle de suas emoções, que não permite a elementos externos influir em seus atos.

À pergunta "por que em Pessach é proibido comer ou mesmo estar de posse do chamets", o Talmud responde com outra pergunta, que, à primeira vista, nada tem com o assunto: por que as pessoas pecam? E responde que o homem vive em constante luta com sua natural inclinação ao mal e, se perde esta batalha, ele peca. O Talmud então sugere que quem cometer um pecado, faça a seguinte declaração: "D'us do Universo. Tu, Onisciente, que tudo conheces, sabes que é nosso desejo fazer Tua Vontade. Mas o que nos impede de fazê-lo? É justamente o fermento da massa". O chamets representa o impulso negativo, a inclinação ao mal que leva os homens a se afastar de D'us e de Seus mandamentos.

Para nossos Sábios, a matsá representa a humildade enquanto a levedura o orgulho e a arrogância, que, se não forem controlados e direcionados para algo positivo, podem levar uma pessoa a inflar seu próprio ego de tal forma a não mais reconhecer a Mão de D'us em sua vida.

Pão da aflição e da redenção

Ao iniciar o Seder, relembramos, geração trás geração, de que "Fomos escravos do Faraó no Egito e D'us nos tirou de lá, com Mão forte e com Braço estendido". Rashi explica que a Torá chama a matsá do 'lechem oni', o pão da aflição, por ser o que nos faz relembrar da escravidão. Já Rabi Yehudah ben Yakar afirmava que posta na mesa do Seder a matsá representa o 'lechem ani', o pão dos pobres, o alimento que nossos antepassados comiam no Egito.

Ao menos durante a primeira parte da leitura da Hagadá, a matsá é o pão da escravidão e da pobreza. Porém, mais adiante, aparece de uma forma totalmente diferente. Após ler a afirmação de que é um dos três símbolos que constituem a essência do Êxodo, quem conduz o Seder, mostra uma das matsot postas na mesa, e recita as palavras "Matsá zô - esta matsá que comemos - qual a sua razão? Por não ter havido tempo para que a massa de nossos antepassados levedasse antes que o Rei dos Reis, o Santo, Bendito Seja, Se revelasse perante eles para redimi-los".

Nesta passagem, a matsá representa a Redenção dos Filhos de Israel pelo Todo Poderoso; uma redenção que ocorreu de forma tão rápida que os judeus não tiveram tempo de esperar que fermentasse a massa do alimento que levariam em sua jornada. E continua o relato: "... E assaram a massa em pães ázimos, não levedados, pois foram expulsos do Egito e não mais puderam deter-se, nem tampouco haviam preparado provisões para o caminho..."

Os conceitos expostos na Hagadá parecem, contraditórios. Afinal, a matsá é símbolo de miséria e escravidão ou de redenção e liberdade? Segundo Rabi Raphael S. Hirsch, em seus comentários, é o "pão da aflição", o alimento dos escravos, pessoas totalmente dependentes, cujo tempo não lhes pertence. No Egito, os judeus se alimentavam de pão ázimo porque seus opressores lhes negavam até o tempo necessário para fazer um pão fermentado. De acordo com o Rabi Hirsch, até na hora de Redenção, os Filhos de Israel continuavam dependentes. Num primeiro momento, eram submissos aos egípcios. Mas, estes, apavorados pela última praga que se abatera sobre eles, queriam os judeus fora de seu país sem mais delongas. A partir daí, os judeus se tornaram dependentes de D'us, que os tomou como Sua nação e fez deles Seus eternos servos. Rabino Hirsch explica que comer matsot em Pessach é como se nos estivéssemos dedicando, ano após ano, à nossa missão eterna de servir a D'us.

O Maharal de Praga, Rabi Yehudah Lowe, o criador do Golem, tem outra interpretação. Segundo ele, a matsá é o pão da Redenção, não da aflição. A súbita saída dos judeus do Egito nos ensina que esta não aconteceu graças a uma ação nossa. Foi D'us, que com "Mão forte e Braço estendido" nos resgatou da terra da escravidão, libertando-nos dos grilhões egípcios. O símbolo dessa Redenção apressada e instantânea é a matsá que assamos rapidamente. Ainda segundo o Maharal, quando a Torá se refere a esta como o "pão de pobreza", está subentendido que é o pão da simplicidade. Pois, como explica o sábio, enquanto o mundo físico é um mundo caracterizado pela complexidade, no qual os elementos se conectam e interdependem entre si, o mundo espiritual é caracterizado pela simplicidade e independência. Redenção e liberdade são o resultado da conexão do homem com o mundo espiritual. E por essa razão D'us nos ordenou comer matsá no Seder de Pessach. Ainda no Egito os judeus puderam provar o gosto da iminente liberdade e redenção, assando o pão simples, alimento espiritual não sujeito às restrições e limitações do mundo físico. Para o Maharal, a matsá significa a liberdade que o homem alcança ao se conectar com D'us.

A natureza de nossa libertação

Como vimos, a matsá serve de lembrança da natureza de nossa Redenção: a mudança, súbita e drástica, que D'us realizou em nossas vidas, o processo que transformou escravos em homens livres. Quando chegou a hora da libertação, para aqueles escravos oprimidos foi difícil compreender em toda a sua profundeza aquele evento sem precedentes na História humana, no qual eram protagonistas passivos. Mais difícil ainda entender o papel para o qual Ele os escolhera. Tudo que tinham era fé em D'us - uma fé que perseverara através do longo e amargo exílio. E, na véspera de Pessach, D'us a reacendeu revelando, de forma extraordinária e única, o Seu poder e a Sua verdade - libertando os hebreus da escravidão física e espiritual em que se encontravam.

Segundo a Cabalá, a matsá é o "pão de fé", já que representa o estado espiritual do Povo judeu no momento do Êxodo. O profeta Jeremias descreve esse momento com as palavras "Assim diz D'us: Lembro-me de seu amor jovem, sua devoção nupcial, a Me seguir deserto afora, para uma terra estéril, não cultivada".

Foi esta fé, unicamente, o que nos tirou do Egito e nos conduziu até o Sinai. A matsá não é, portanto, um alimento insípido, tem o sabor da fé e da liberdade.

Bibliografia:

The Haggadah Treasury - The Artscroll Mesorah Series, Editado por Rabi Nosson Scherman

Rabi Yitzchak Falk , Matzah: Bread of Affliction or Redemption? Yeshivat Hamivtar - Orot Lev

Rabbi Nathan Lopes Cardozo, To be a matza, Jewish World Review, April 2004

Rabi Mendel Weinbach, The Matza Message, março 2004 ,Ohr Somayach

Timeless Patterns In Time, Chassidic Insights Into The Cycle Of The Jewish Year Adapted from the Published Talks of the Lubavitcher Rebbe