Uma verdadeira festa de regozijo judaico. No seu solo, sem o entrave da discriminação, livres, os filhos de Israel podem vozear à vontade. Discutem, gesticulam, falam com euforia.


Uma das razões que mais me atraía a Israel era visitar o túmulo de Rebi Shimon Bar Yohai. Rebi Shimon faz parte da nossa família, da vida dos judeus sefaradim, provenientes de Marrocos. Crescemos ouvindo seu nome diariamente, a todo instante, entre as mais comuns expressões, em todos os tons de exclamação. Se é um susto, "Rebi Shimon!" Se uma criança corre o risco de cair – "Rebi Shimon!" – e a criança não cai. Nos pesares, nos bons augúrios, em qualquer situação premente, apela-se para ele. Apesar da religião judaica condenar a efígie da figura humana, o suposto retrato de Rebi Shimon sempre ocupa o lugar de honra nos lares, em grandes molduras, nas salas, ou em pequenas, à cabeceira dos enfermos e das parturientes. Como o elixir caseiro, Rebi Shimon é bom para tudo. A única maneira de demonstrarmos nossa gratidão pelas graças que dele recebemos, é prestar-lhe homenagem na sua Hilulá .

Era meu grande desejo participar de uma Hilulá em Israel, onde esta celebração se efetua no próprio lugar em que se encontra o túmulo do Tzadik, como é também chamado por nós, judeus marroquinos. Tive a sorte de realizar esse desejo. O espetáculo que presenciei não somente impressiona, como é único. Embora houvesse recursos para pintar em palavras o colorido, o movimento agitado de peregrinos, o toque religioso, as atividades profanas, faltaria ainda o intraduzível – a emoção que nos domina. Aqui está o nosso Amigo. O nosso eterno Companheiro. Nós o encontramos, enfim, e lhe falamos frente a frente, de alma a alma. É aniversário de sua morte. E, no entanto, é com uma festividade que a data é celebrada. Acontece que esse dia marca também Lag ba-Omer, ou seja, o trigésimo terceiro dia entre Pessach e Shavuot, quando cessou a estranha epidemia que matou milhares de discípulos de Rabi Akiba ben Yossef, o mestre de Rebi Shimon. De qualquer forma, Lag ba-Omer tornou-se feriado, um dia de folga, suspendendo todas as abstenções impostas durante o Omer, o período de luto por aqueles mártires.

Rebi Shimon e apenas mais quatro outros discípulos de Rabi Akiba foram os únicos que escaparam vivos da epidemia, que coincidiu com a época da fracassada revolução liderada por Bar Kochba contra os romanos. Veio a morrer, com idade avançada, justamente num Lag ba-Omer. Da sua vida atribulada, decorrida nos meados do século II na época das perseguições adriânicas, passou 12 anos, em companhia do seu filho Eleazar, oculto numa caverna fugindo a uma sentença de morte. E, por milagre, sobreviveram. Nunca perdeu a fé e nunca se afastou dos livros. Estudar a Torá, no seu ponto de vista, devia ser a obrigação fundamental de um judeu. Conseguiu fundar a Ieshivá de Jerusalém, em Tekoa, e, conforme sonhava, seus restos mortais foram enterrados na Terra Santa.

Rebi Shimon repousa ao lado do seu filho Eleazar, no alto de uma colina em Meron, na Galiléia. Para lá sobem, em Lag ba-Omer, dezenas de milhares de peregrinos. Começam a chegar desde a véspera. Armam tendas onde passam a noite toda, ou ficam mesmo ao relento, cantando e dançando ao redor de fogueiras. Instalam-se em toda a área da colina, de cima a baixo. Muitos vestem roupas típicas do seu país de origem. Organizam feiras onde vendem de tudo, a começar pelo retrato de Rebi Shimon, em todos os tamanhos. Por todo lado há barracas com comestíveis, mesas com pilhas de livros, artefatos de cobre, peças de artesanato. Os camelôs apregoam, aos gritos, suas quinquilharias, e velhos de longas barbas, sentados no chão ao lado de bugigangas, esperam em silêncio que as comprem, por caridade. O vozerio se confunde com o alarido dos alto-falantes e o som estridente de instrumentos musicais. Uma verdadeira festa de regozijo judaico. No seu solo, sem o entrave da discriminação, livres, os filhos de Israel podem vozear à vontade. Discutem, gesticulam, falam com euforia.

Os Chassidim dominam a Hilulá de Rebi Shimon. Em realidade, apossam-se do ambiente. Portões adentro, enchapelados, os homens dançam segurando ombros ou mãos uns dos outros, ou se exibem em passos cadenciados equilibrando à cabeça uma garrafa. Tocam instrumentos de sopro e de corda. Carregam nos ombros os filhos pequenos. No dia de Lag ba-Omer, pela primeira vez, cortam os cabelos dos meninos de três anos de idade. Segura pelo pai, a criança protesta aos berros contra o barbeiro que, com enorme tesoura, corta-lhe os cachos de cabelo, deixando em destaque a mecha dos peiot. Ao mesmo tempo em que os homens celebram o acontecimento na animação dos bailados, as senhoras, carregando cestos, distribuem pãezinhos à assistência feminina.

Enquanto isso, no recinto sagrado onde Rebi Shimon repousa, aglomeram-se os fiéis que lá vão apenas com o fim de o zorear . Tudo é simples e modesto, no local. Não é permitido falar alto, tirar fotografias, acender velas. As velas são atiradas inteiras para dentro do gradil que cerca o túmulo do Tzadik . Das paredes pendem centenas de fitas, ali penduradas lembrando súplicas ou como pagamento de promessas. O rumor nesse local é apenas qual um zumbido. Contígua a essa sala, há um grande espaço cercado de grades, dentro do qual mulheres, sentadas no chão, rezam, lamentam-se ou simplesmente mantêm-se silenciosas em meditação. Não são fanáticas. São criaturas que têm um drama na vida e recorrem a Rebi Shimon Bar-Yochai para que ele interceda junto a D'us. E esperam por um milagre ou pelo menos um consolo.

Para elas, Rebi Shimon deve ser apenas um Tzadik milagroso. Assim como foi sempre para nós. Nunca procuramos saber como escreveu o Zohar, nem tentamos conhecer os caminhos da Cabalá, da qual ele é o grande mestre, nem sequer repetimos suas máximas filosóficas ou investigamos como decorreu sua vida. Para nós, Rebi Shimon era o Tzadik dos milagres, o nosso companheiro de cada instante, o protetor da nossa família.

Nos meus tempos de menina, a Hilulá de Rebi Shimon era a festa mais ansiosamente esperada, a mais brilhante da coletividade de Belém do Pará. Era uma festa de todos, sem seleção. Festa de cada um. Iniciava-se com uma quermesse. As moças preparavam trabalhos artísticos, exibidos como em competição, que eram disputados em lances fabulosos. Não havia uma só pessoa que deixasse de enviar sua contribuição para a Hilulá. Era como um dever sagrado do qual ninguém queria se eximir. E, assim, empilhavam-se dezenas de objetos, os mais valiosos, os mais modestos, conforme as posses e habilidades de cada um, e o resultado de sua venda era distribuído entre os necessitados da comunidade. Era uma Hilulá maravilhosa!