País com longeva história judaica marcada por eventos trágicos como genocídio e antissemitismo, a Ucrânia passou a ter, em 2019, presidente e primeiro-ministro judeus, após a eleição de Volodymyr Zelensky, em abril, para o principal cargo político, enquanto Volodymyr Groysman desempenha as funções de premiê desde 2016.
O protagonismo dos dois líderes políticos entusiasma ativistas comunitários, ao apontar integração na sociedade ucraniana, mas contrasta com recente relatório ao destacar aumento em ações antissemitas na nação atualmente palco de uma guerra separatista e de prolongada crise com a vizinha Rússia.
Comediante sem experiência política, Zelensky, ao obter 73% dos votos, derrotou o presidente Petro Poroshenko, que buscava reeleição, e sua avassaladora vitória no segundo turno da disputa representou um protesto contra a tradicional elite partidária, acusada de ineficiência e corrupção. A economia, nos últimos anos, passou a depender de ajudas externas, como do Fundo Monetário Internacional.
A Ucrânia obteve independência em 1991, com a desintegração da União Soviética. A partir de 2014, tornou-se epicentro de uma das principais crises do cenário internacional. Naquele ano, protestos concentrados na praça Maidan, na capital Kiev, derrubaram o presidente Viktor Yanukovich, aliado de Moscou. Chegaram ao poder forças responsáveis por reposicionar o país, geopoliticamente, afastando-o da Rússia, após séculos de envolvimento, e aproximando-o da União Europeia e dos Estados Unidos.
A “perda geopolítica” da Ucrânia corresponde à principal derrota do presidente russo, Vladimir Putin, desde sua chegada ao poder, em 2000. O Kremlin aponta laços históricos, culturais e religiosos para manter a aliança, além de avaliar o território ucraniano como fundamental para sua estratégia de defesa, pois a Ucrânia, localizada entre a Rússia e o restante do continente europeu, significaria uma espécie de “zona tampão” contra eventuais invasões dirigidas a Moscou, na visão de políticos e militares russos.
Depois da chegada a Kiev de um governo pró-EUA e pró-União Europeia, Vladimir Putin respondeu com a anexação da península da Crimeia, território até então sob administração ucraniana, mas com maioria de habitantes de origem russa.
A estratégia da Rússia significou também apoio, ainda que não oficial, a separatistas que, no leste da Ucrânia, junto à fronteira russa, se rebelaram contra a aproximação do país em relação aos EUA e UE. A guerra entre rebeldes e exército ucraniano já matou cerca de 13 mil pessoas. A crise significa essencialmente o choque entre os interesses da Rússia e o nacionalismo ucraniano. O movimento anti-Moscou argumenta defender a democracia e a modernização do país, ao apostar numa aproximação com Europa e EUA.
No entanto, o nacionalismo ucraniano nos últimos anos também representou homenagens a assassinos como Stepan Bandera e Yaroslav Stetsko, colaboradores dos nazistas e responsáveis por massacres de judeus durante a 2ª Guerra Mundial. Estátuas foram inauguradas e ruas batizadas para glorificar os nacionalistas que diziam “lutar pela pátria e combater o judaico-bolchevismo”.
Lviv, uma das cidades principais da Ucrânia e centro importante da vida judaica antes do Holocausto, testemunhou no ano passado uma marcha, sancionada por autoridades municipais, com uniformes de grupos nacionalistas que colaboraram com os nazistas. Em 2015, o Parlamento em Kiev aprovou lei “proibindo insultos a heróis nacionais”, o que incluiu criminosos de guerra.
No ano passado, mais de 50 integrantes do Congresso norte-americano condenaram a legislação ucraniana responsável por glorificar colaboradores nazistas, como Bandera e Stestko. Documento assinado pelos parlamentares afirmou “ser particularmente preocupante que muito da glorificação do nazismo seja apoiada pelo governo”, em referência à administração de Petro Poroshenko, eleito em 2014 na esteira dos protestos da praça Maidan.
Um relatório anual lançado em 2018 pelo governo israelense classificou a ex-república soviética como principal foco de antissemitismo na Europa Oriental. O estudo registrou cerca de 130 ataques em 2017, o dobro do ano anterior e num patamar superior à soma de todos os incidentes registrados no território da desaparecida URSS.
Os registros de ataques racistas, no entanto, não impediram que Volodymyr Groysman fosse eleito pelos deputados, em 2016, primeiro-ministro do país, com 257 votos a favor e 50 contra. Ex-prefeito da cidade de Vinnytsia, Groysman entrou para a História não apenas como o primeiro premiê judeu do país, mas também como o mais jovem: ao assumir o cargo, contabilizava 38 anos de idade.
No ano seguinte à posse, o primeiro-ministro ucraniano desembarcou em Jerusalém e se reuniu com Binyamin Netanyahu. Em janeiro de 2019, os dois países assinaram um tratado de livre comércio, em cerimônia realizada na capital de Israel, com a presença do presidente ucraniano, que visitou o Yad Vashem e se reuniu com seu colega israelense, Reuven Rivlin.
Netanyahu agradeceu a Poroshenko os “contínuos esforços para eliminar o discurso de ódio e combater o antissemitismo na Ucrânia”. O primeiro-ministro israelense, no entanto, precisa calibrar com cuidado as relações com Kiev, também em função de seus laços estreitos com Vladimir Putin.
O governo israelense apostou no aprofundamento das relações com o Kremlin devido à sua crescente influência no Oriente Médio, sobretudo após a intervenção russa na guerra da Síria, em 2015. Netanyahu conta com o diálogo com Putin para tentar limitar presença do Irã em território sírio.
Quando da vitória de Zelensky, Netanyahu telefonou para congratulá-lo. Na posse, no entanto, o governo israelense foi representado pelo embaixador em Kiev, sem enviar um representante de alto escalão. A opção foi interpretada como busca de equilíbrio nas tensões entre a Ucrânia e a Rússia.
Embora tenha derrotado Poroshenko, representante dos setores mais duros da política ucraniana em relação a Moscou, Zelensky ainda não sinalizou com clareza, no início de mandato, como vai lidar com o gigante vizinho. Alternou declarações nacionalistas com promessas de trazer paz ao leste do país, onde exército e separatistas pró-Rússia se enfrentam há vários anos.
Volodymyr Zelensky chegou à presidência surfando a onda de rejeição a políticos tradicionais. Nasceu em 1978 na cidade de Kryvyi Rih, formou-se em Direito, mas nunca exerceu a profissão. Mergulhou no mundo artístico e se transformou em comediante.
Em 2015, estrelou a série “O Servidor do Povo”, na qual interpretou um professor de história que, graças a seus discursos anticorrupção, se torna presidente do país. Anos depois, a ficção praticamente se transformou em realidade.
Em uma de suas primeiras medidas, Zelensky determinou a dissolução do Parlamento e eleições foram agendadas para julho. A intenção do novo presidente é conseguir uma bancada robusta para seu partido, que, atualmente, não conta com representação parlamentar.
Volodymyr Groysman, primeiro-ministro durante a era Poroshenko, renunciou ao cargo após a dissolução do Parlamento, mas concordou em permanecer no posto até as eleições de julho, mantendo a Ucrânia como único país do mundo, excetuando Israel, a ter judeus no cargo de presidente e primeiro-ministro.
Durante a campanha eleitoral, a origem de Zelensky não ocupou espaço no debate político. O próprio candidato, embora não escondesse suas raízes, preferiu focar seus discursos na busca pela paz, no combate à corrupção e na recuperação econômica. “O fato de eu ser judeu é mais ou menos a 20ª questão entre as minhas características”, declarou ele, em meio à corrida presidencial.
“A ausência de retórica antissemita durante a campanha é um milagre, um fato surpreendente que mostra quão longe a Ucrânia já foi”, afirmou Elan Carr, enviado especial do governo norte-americano para monitorar e combater o antissemitismo. Carr esteve, em maio, na capital ucraniana para participar do Jewish Forum, dedicado a debater rumos da vida judaica no país.
E falar em judaísmo na Ucrânia significa retornar ao século 9, data dos primeiros registros de comunidades naquelas terras da Europa Oriental. Momentos de florescimento cultural e religioso se entremearam com tragédias infelizmente muito frequentes, como no século 17, quando milhares de judeus foram assassinados por hordas cossacas comandadas por Bohdan Khmelnytsky.
Em 1939, havia cerca de 1,5 milhão de judeus na Ucrânia. Atualmente, o país, com 45 milhões de habitantes, abriga uma comunidade que, segundo o demógrafo Sergio Della Pergola, contabiliza entre 56 mil e 140 mil integrantes.
E, entre essa população comunitária, destaca-se atualmente o comediante transformado em presidente, Volodymyr Zelensky. “Durante toda a minha vida, tentei fazer de tudo para fazer os ucranianos rirem”, disse ele. “Nos próximos cinco anos, eu farei tudo, ucranianos, para que vocês não chorem”.
Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim