‘E saberás hoje e considerarás no teu coração, que o Eterno, Ele é D-us, em cima, nos céus, e embaixo, na terra; não há nada além Dele’. (Deuteronômio, 4: 39).
O estudo sobre D'us e Sua Unicidade constitui a matriz do judaísmo. É a essência da Cabalá, que, por sua vez, é a alma da Torá e o portão de entrada a um entendimento mais profundo da lei e filosofia judaica, sua crença e prática.
Nosso propósito, nesta análise, é fornecer uma introdução e um convite a aprofundar o estudo de um tema sem fim e, por vezes, paradoxal, e as idéias abaixo apresentadas baseiam-se na Cabalá de Rabi Itzhak Luria, o Arizal, e nos ensinamentos do Rabi Shneur Zalman de Liadi, o Baal HaTanya, autor do Tanya.
Adentramos no estudo sobre D'us e sua Unicidade com a consciência de que somos meras criaturas finitas e falíveis tentando discutir o Infinito. O pouco que conhecemos acerca de D'us se deve ao fato de sermos, em parte, a Sua Essência. Falar de D'us é falar de um Ser indefinível e incompreensível, que está além de qualquer medida ou definição. Comparado a D'us, que transcende a sabedoria e o conhecimento, até o mais sábio dos homens nada mais é do que um tolo. E, portanto, qualquer exemplo, metáfora ou analogia que tente entender D'us é, inevitavelmente, imprecisa. Na melhor das hipóteses, pode-se pretender alcançar um pingo da verdade.
Um corolário disso é o fato de D'us ser absolutamente singular. Nada nem ninguém a Ele se podem comparar. Há uma linha muito bem definida que O distingue de toda a Sua criação. Temos que ter isto sempre presente em nossa mente, pois, como veremos adiante, apesar de ser o mundo todo divino, o Criador e a criação não representam uma unidade. Nos livros sagrados, inclusive na Hagadá de Pessach, D'us é, às vezes, chamado de HaMakom - O Lugar. A razão para este nome, como ensina o Midrash, é que D'us é O Lugar do mundo, mas o mundo não é o Seu Lugar. Isto significa que a criação reside dentro do Criador, mas D'us não é definido nem dependente do mundo, em instância alguma. Nem Ele nem o Seu Nome podem ser associados a ser algum, vivo ou inanimado; pois isto equivaleria à idolatria. D'us não pode ser confundido com Seus Atributos - as Sefirot. Ele não é a Natureza, nem tampouco alguma forma de anjo ou ser humano onipotente. Até o mais espiritual dos homens, o maior dos sábios, o mais poderoso milagreiro - mesmo Moshé ou o Mashiach, seja este último quem for - são, nas palavras do Tanya, "ingênuos diante de Sua abençoada Presença". Até mesmo um verdadeiro Tzadik, que tem condições de reverter os decretos divinos, nada mais é do que um instrumento de D'us - um canal através do qual flui a misericórdia e a plenitude Divina.
Judaísmo é monoteísmo puro. É, também, a busca pela Verdade. Para o judeu, a existência e unicidade de D'us não são mera questão de fé - são a base de toda a Realidade. São verdades mais preciosas do que a própria vida.
A contínua criação do mundo
Nós, seres humanos, temos a impressão errônea de que somos criadores. Na verdade, nada criamos; simplesmente moldamos ou transformamos algo em outro algo. Um escultor, por exemplo, não cria sua escultura - ele a modela, com gesso ou outro material. Mesmo um escritor que componha uma história original necessita da matéria física, ou seja, papel e tinta, para gravar seu trabalho. E apenas pelo fato de ter a matéria física, o trabalho do escritor permanece após ser finalizado.
Tudo na criação humana é iniciado a partir de um original. Há uma única exceção, o pensamento. Em nossa mente, temos o poder da imaginação, criando assim coisas ou pessoas ou situações inexistentes anteriormente e sem substância física. As crianças, por exemplo, costumam criar na mente amigos imaginários - chegando, mesmo, a lhes atribuir nomes e com eles "conversar". Contrastando com outras criações do homem, o pensamento, criado a partir do nada, jamais se torna independente de seu criador. Um conto publicado pode sobreviver a seu autor, mas se um escritor apenas criar o conto em sua imaginação, este deixará de existir no instante em que ele mudar de pensamento. E se ele se esquecer do mesmo, jamais voltando a pensar no assunto, tal história jamais terá existido.
Antes da criação do mundo, não havia nada além de D'us. O Criador não modelou o universo a partir de um original, pré-existente, já que não existia absolutamente nada. Como D'us criou tudo a partir do nada, a criação não pode ser comparada à modelagem de uma estátua ou à escrita de uma conto - que são criados a partir de uma matéria física, mas apenas aos pensamentos da mente humana, criados a partir do nada. Em sua essência, é isto o que é o nosso universo: o conjunto dos pensamentos de D'us.
Falando por metáforas, Ele pensou e tudo se criou. D'us continua a pensar sobre sua criação e esta continua a existir. E como a criação é a mudança do nada em algo, há que haver alguma força que garanta que tudo não volte à forma original de inexistência. Em termos científicos, poder-se-ia dizer que a criação é a força incessante que se opõe à entropia. Para que o mundo continue a existir, D'us precisa continuar com o pensamento no mundo - a dizer, Ele precisa estar constantemente recriando-o, sem parar; de outra forma, tudo reverteria ao nada, onde tudo se originou.
O ato da criação, portanto, não foi um evento único, de uma única vez; é um evento contínuo e incessante. Esta é a razão pela qual todas as manhãs, em nossas orações, louvamos D'us por ser Aquele "que, em sua bondade, renova dia após dia, continuamente, a obra da criação". Contudo, como tudo está constantemente sendo criado do nada, o mundo pode, a qualquer momento, reverter ao nada, seu estado inicial. D'us não precisa inundar novamente o mundo para se livrar da humanidade. Basta que Ele pare de pensar no homem. À luz disto, o Talmud ensina que se em um momento qualquer, em algum ponto da Terra, não houver ao menos um judeu estudando a Torá, D'us perderia o interesse na criação e todo o universo súbita e instantaneamente deixaria de existir.
Criação contínua significa que D'us está constantemente pensando em tudo e em todos; nada, portanto, escapando ao Seu escrutínio. A existência de qualquer ser - um micróbio, um ser humano ou uma galáxia - está sob Seu constante domínio. Nada pode existir ou ocorrer sem Sua Presença. Como está escrito na Torá, "pois que Ele é nossa própria vida" (Deut., 30: 20). A criação constante nos ensina que Ele não é apenas Quem dá a vida, mas Ele é a nossa vida. É fundamental ter isso bem claro para se entender a unicidade de D'us. Há quem acredite que D'us criou o mundo e o afastou de Si; é a teoria filosófica intitulada Deísmo. Outros acreditam que D'us apenas intervém no mundo esporadicamente, através da realização de um milagre. Tais noções - a de que existe um mundo e de que há um D'us e ambos interagem ou não interagem - são falsas. O mundo não é uma realidade absoluta; somente D'us o é. Pois, assim como os pensamentos residem na mente de uma pessoa, o mundo reside em D'us. E é por isso que D'us conhece tudo o que transpira no universo - não porque Ele invade nossa mente e nosso domínio individual - mas porque nós residimos dentro d'Ele. Assim sendo, nada do que pensamos ou fazemos Lhe é desconhecido. Afirmar que D'us não percebe ou não se importa se a pessoa diz a bênção antes de comer ou se a pessoa destina uma doação para caridade, é, no mínimo, uma leviandade.
Na Torá que Ele compôs, D'us descreve Seu ato de criação como um produto de Sua fala, dos Dez Pronunciamentos Divinos. Esta metáfora da fala explica a criação na forma da Revelação Divina. Assim como as palavras de uma pessoa são reveladoras, a "fala" Divina implica que o mundo emanou d'Ele e que a criação realmente aconteceu. Mas tal metáfora tem limitações - como o têm todas as demais usadas para descrever D'us e Seus Atos - pois quando uma pessoa fala, as palavras emanam de seu íntimo. Há um orador e um discurso. Este, uma vez pronunciado, deixa o domínio do orador, não podendo ser revertido. Mas, em se tratando de D'us, não há nada fora de Seu domínio. Como D'us é Infinito, assim como tudo o que existe dentro d'Ele, Sua fala, contrariamente à do homem, nunca o abandona. Neste sentido, é mais preciso comparar a criação Divina do mundo aos pensamentos de uma pessoa que nunca são exteriorizados. Resumindo, a Criação tem elementos que são comparáveis à fala e ao pensamento do homem. Como a fala, a Criação é uma forma de revelação e expressão; como o pensamento, nunca abandona o domínio de um ser. Isto significa que os Dez Pronunciamentos Divinos resultaram na criação do universo, mas isso não é, de forma alguma, apartado ou independente de D'us.
A Criação, através do ocultamento
A luz de uma vela tem maior significado à noite; mas se torna menos relevante, apesar de não mudar sua luminosidade, em plena luz do dia. E, se de alguma maneira, a vela fosse colocada dentro do sol, sua luz seria imediatamente anulada pela potente luz do sol. A luz de uma vela dentro do sol somente teria relevância se o sol se tornasse escuro. Apenas ocultando a luz do sol, a luz da vela seria perceptível.
Esta analogia ajuda a ilustrar que a Criação, que é finita e reside dentro do Infinito, na verdade é anulada dentro de D'us. Esta analogia fica aquém da realidade, pois uma vela, por menor que seja, ainda é uma fração infinitesimal do sol. Comparado com o Infinito, qualquer número, por maior que seja, é insignificante. Ademais, por definição, o infinito não pode ser decomposto em partes, e, portanto, não permite a existência de mais nada. Como discutimos acima, não há espaço fora de D'us; e, como o infinito não faz espaço para nada mais, como pode o mundo existir? A Cabalá revela que o mundo foi criado não apenas pela fala Divina, mas pelo Tzimtzum. Comumente traduzido por Divina Constrição, Tzimtzum deve ser entendido como Divino Ocultamento: D'us ocultou Sua Luz Infinita para que o mundo não parecesse estar sendo anulado dentro d'Ele. Nós, portanto, vemos o mundo, mas não vemos D'us.
Referindo-se ao ocultamento de D'us, o Zohar fala de uma "Lâmpada da Escuridão" que oculta a Luz Infinita para fazer crer que a Criação é separada de seu Criador. Como a presença do Infinito e o finito - D'us e o mundo - estão sempre em oposição, sua coexistência é uma contradição. O mundo somente pode existir quando D'us Se esconde. Se a Luz Infinita fosse revelada, instantaneamente Ela consumiria e anularia tudo o que existe.
A existência do universo envolve dois processos concomitantes: a contínua criação Divina, pois, do contrário, o mundo reverteria ao vazio, ao nada; e o ocultamento de D'us, pois, do contrário, o mundo seria totalmente anulado dentro de Sua Luz Infinita. No entanto, o Tzimtzum apenas explica como podemos perceber o mundo, mas não como o mundo pode coexistir com o Infinito. O mundo é um produto da Revelação Divina e do Ocultamento Divino. O fator comum a ambos os mecanismos é o Divino, não deixando espaço para nada mais. Como pode um mundo finito ser criado por D'us, oscilando entre a luz e a escuridão? Revelado ou oculto, é tudo Ele. O Baal HaTanya elucida este paradoxo com a seguinte analogia: alguém que fique fora do sol pode diferenciar entre o próprio sol e os raios de luz que emite. De fato, as pesadas nuvens arruinarão um dia a ar livre apesar do sol nunca deixar de brilhar. Mas, a luz solar dentro do sol é vinculada à sua origem. Dentro do sol, não há distinção entre o sol e a luz solar; há apenas o sol.
De forma similar, como não há nada fora de D'us, o mundo nem pode ser comparado a um raio de sol que, apesar de ser completamente dependente do sol, é reconhecido como uma entidade em si só. Pelo contrário, o universo todo é anulado dentro de D'us assim como o raio de sol o é dentro do sol. Como escreve o Baal HaTanya, este é o significado da verdadeira unicidade de D'us: o fato de que tudo é nada, comparado a Ele, pois tudo é verdadeiramente anulado dentro de Sua Existência.
A unicidade de D'us não significa que não haja outros deuses no mundo. Significa que não há nada além d'Ele. Pois, ainda que nosso mundo realmente exista, assim como a luz existe dentro do sol, esse mundo é completamente anulado dentro de sua Origem: não possui existência independente ou absoluta. O ato de idolatria - quer se adore uma estrela, uma estátua ou um homem qualquer, mesmo um Tzadik - é abandonar tudo pelo nada, pois que apesar de o mundo ser a fala Divina, o mundo não é D'us. Prova disto é que o mundo está constantemente sendo criado do nada e poderia reverter ao vazio do nada - sem efetuar qualquer mudança em D'us.
Segundo a Cabalá, o ponto de partida da idolatria não é a negação de D'us nem a crença em outros deuses, mas é a assunção de qualquer coisa que seja independente d'Ele. O epítome da idolatria foi personificado pelo Faraó do Egito - o vilão arrogante que afirmou ser um deus, auto-criado. Não é de surpreender que D'us tenha escolhido Moshé, cuja essência é a antítese da idolatria, para enfrentar e vencer o Faraó. Pois Moshé, apesar de ser o maior de todos os profetas, foi também o homem mais humilde que já existiu: ele personificou a verdadeira santidade, que significa a auto-anulação diante do Divino. Pode-se conjeturar que a humildade de Moshé não era simplesmente produto do tipo de pessoa que era, mas também do que ele vivenciou. Chegando tão próximo a D'us, como a nenhum outro ser humano foi dado chegar, ele pôde perceber, melhor do que ninguém, que tudo e todos nada são quando comparados ao Criador. Moshé pergunta, pois, retoricamente: "E que somos nós?" (Êxodo, 16:7). A resposta é que comparados a D'us, nada somos.
O paradoxo da Criação - de como um mundo finito pode existir quando, na verdade, nada existe além de D'us - é transmitida pela seguinte história. Um rabino chassid disse, certa vez, a um filósofo, que "pessoas como você pensam em D'us o tempo todo, enquanto os chassidim apenas pensam em si próprios". Percebendo um sorriso no rosto do filósofo, o rabino disse, "não o digo como elogio", explicando a seguir: "Pessoas como você têm certeza de sua própria existência. E, por isso, passam os dias pensando em D'us. 'Será que Ele existe? E que tipo de D'us é Ele?' Por outro lado, nós, os chassidim, sabemos que D'us existe. Portanto, passamos o dia pensando se nós próprios existimos. E em como é possível esta nossa existência".
Corre uma história sobre assunto semelhante acerca de um grande mestre do Chassidismo, Rabi Aharon, de Karlin. Grande líder e erudito, além de poderoso milagreiro, ele foi um dos principais alunos do Maguid de Mezeritch. Certa vez lhe perguntaram o que havia aprendido enquanto estudara em Mezeritch. "Nada", respondeu. "Nada?", repetiram, incrédulos. "Nada", reiterou. "Em Mezeritch, aprendi que nada sou". Estamos falando de um homem verdadeiramente extraordinário - um Tzadik, um sábio, um fazedor de milagres e maravilhas - cuja sabedoria e conhecimentos apenas o tornavam mais humilde pelo fato de o fazerem constatar que o mundo inteiro é, de fato, anulado diante do Criador.
No entanto, essa anulação perante D'us não significa que o mundo não exista. Fosse este o caso, não haveria paradoxo algum na Criação. Diferentemente do misticismo oriental, o judaísmo não afirma que o mundo é uma ilusão. O mundo é uma realidade. Se a vida fosse uma ilusão, não haveria diferença entre o bem e o mal, o certo e o errado, uma mitzvá e um pecado. Se, por exemplo, o alimento que ingerimos fosse uma ilusão dos sentidos, que diferença faria comer matzá ou chametz, em Pessach? Portanto, negar a realidade do universo não soluciona o paradoxo da Criação.
O propósito do ocultamento
Buscando algum sentido para o paradoxo da Criação, tomemos emprestada uma analogia do campo da Física. A olho nu, a matéria parece ser sólida e inerte. Mas um objeto como uma pedra é composto do movimento constante de partículas cuja solidez física é questionável. Os elétrons são pontos concentrados de ondas de energia. Ao mencionar isto, quer-se defender o fato de que mesmo dentro do reino do mundo físico, nem tudo é o que parece. Percebemos apenas os sólidos tangíveis porque nossa percepção é limitada. Contudo, justamente esta falta de percepção é o que nos permite funcionar. Não teríamos condições de viver efetivamente se apenas víssemos partículas atômicas.
Esta analogia nos ajuda a entender que pode haver mais de um nível de percepção. O mesmo é válido para a Realidade, como um todo. Por um lado, tudo no universo é produto da fala Divina. Nada há além de D'us; somente Ele existe e o mundo é anulado dentro d'Ele. Por outro, o mundo não é uma ilusão: matzá é matzá; chametz é chametz e o ser humano é um ser humano. Quem estuda Cabalá e não consegue aceitar este paradoxo ou perde a razão ou perde a fé. Esta é uma das razões porque o estudo do misticismo judaico foi proscrito durante tanto tempo.
A Cabalá aborda o paradoxo da criação através da revelação de que há dois níveis de unicidade: Unicidade Superior, Yichudá Ila'á, que é a perspectiva do Criador, e a Unicidade Inferior, Yichudá Tata'á, que é a perspectiva da criação. A Superior significa que, sob a perspectiva Divina, o mundo é totalmente anulado dentro d'Ele, assim como a luz do sol o é dentro do sol. A Unicidade Inferior significa que nós vemos um mundo que aparenta ser separado de seu Criador, assim como alguém que fica fora do sol percebe os raios de luz totalmente dependentes do astro-rei, mas não anulados dentro dele.
Dois níveis de Unicidade Divina significam que o relacionamento entre D'us e o universo não é idêntico nas duas direções. D'us é totalmente independente do mundo, ao passo que o mundo é totalmente dependente d'Ele. O Criador tudo vê, mas nenhuma de suas criaturas, nem mesmo os anjos, podem vê-Lo diretamente. Isto significa que o ocultamento Divino é a escuridão para nós, não para D'us. A partir de Seu ponto de vista, não há barreira alguma entre Ele e sua criação - Ele nos vê como se estivéssemos dentro d'Ele. Mas, a partir de nosso ponto de vista, parece haver uma linha divisória entre D'us e o mundo.
Podemos comparar esta situação a um espelho de um só lado. De um deles, é um espelho, enquanto que do outro é totalmente transparente. Nós, que olhamos do lado espelhado, conseguimos ver nossa imagem refletida e, por essa razão, aceitamos a nossa existência como um fato tácito e natural. Mas perante D'us, tudo é como o vidro translúcido, que nada encobre nem oculta, não havendo nenhuma barreira a nos separar d'Ele. Isto explica o fato de que D'us ouve todas as preces. Como o Ocultamento Divino não é real - mas meramente uma falta de percepção de nossa parte - não há separação real entre o Criador e toda a criação. D'us percebe tudo, em todos os níveis, seja o desejo não expresso de uma criança ou o canto de um anjo. Ele está sempre infinitamente próximo, ainda que não O possamos ver.
Na corrente dos mundos espirituais, o nosso é aquele que mais oculta a Presença Divina. Na liturgia judaica e nos livros sagrados repete-se, muito apropriadamente, que D'us está nos Céus - não porque Ele não esteja em lugar algum - mas porque nos mundos espirituais D'us é menos oculto. Nós, contudo, vivemos em um mundo que, como diz o Zohar, aparenta ser "um palácio sem governante". E a razão para tal é que se D'us não Se ocultasse, nosso mundo seria obliterado por Sua Luz Infinita. O Tzimtzum, portanto, é um elemento essencial da criação. Mais do que isso, é o que nos outorga o livre arbítrio. Se sentíssemos a Presença de D'us pairando sobre nós e nos envolvendo, nenhum de nós conseguiria fazer nada de errado e o conceito do livre arbítrio perderia todo o seu significado.
Assim é que está escrito que nenhum ser "há de Me ver e continuar vivo". Mesmo os grandes Tzadikim e os mais sábios entre nossos sábios não podem ver o Divino, diretamente. Nem Moshé, a alma mais elevada que já existiu, pôde ser totalmente anulado diante da Essência Divina. Pois aquele que apenas vê a Divindade perde seu livre arbítrio e não mais pode participar deste mundo.
Diz-se que em seus últimos momentos de vida, o Baal HaTanya, que se abrigava em uma cabana, chamou seu neto e lhe pediu: "O que você vê?" O neto, que viria a ser um grande Rebe, respondeu: "Vejo paredes de madeira e um teto". O Baal HaTanya respondeu: "Pois eu, não. Neste momento, só vejo a Divindade". O Maguid de Mezeritch dizia que essa capacidade - de deixar de ver o mundo para apenas enxergar a fala Divina - é investida em um Tzadik três dias antes de seu falecimento. É o sinal de que seus dias neste mundo se esgotaram.
No que tange aos seres humanos, a anulação perante o Divino não deve ser interpretada como forma de repúdio ao mundo ou à própria existência. O nível Inferior da Unicidade é a nossa realidade e esta realidade não permite que se trate o mundo, os demais seres ou a própria vida como uma ilusão inconseqüente. O nível Inferior de Unicidade foi criado por D'us com um propósito - para que tivéssemos como interagir com Ele. É a perspectiva de ser independente - de não conseguir ver que verdadeiramente nada existe além d'Ele - o que nos dá o livre arbítrio de nos agarrarmos a D'us ou de negá-Lo ou de nos rebelarmos contra Ele. Assim sendo, abandonar o mundo a uma mera ilusão é frustrar o magnífico plano da Criação.
O que a anulação diante do Divino requer - e é bem mais do que a maioria das pessoas alcança no curso de sua vida - é o sentimento genuíno de humildade e repúdio a auto-ego. O mais próximo ao "Unio-Mystica" - de total obliteração de si próprio - que há, neste mundo, é o estudo da Torá e o cumprimento de Seus mandamentos - através dos quais a pessoa anula sua própria vontade frente à Vontade Divina. O estudo da Torá, em particular, revela o Divino, pois como ensina o Zohar, é na Torá que D'us oculta Sua Luz Infinita.
O mestre chassid, Rabi Nachman de Bratslav, ensinava que o paradoxo da criação não será plenamente entendido até o fim dos dias. Mas, apesar de certamente ser melhor conhecer esse paradoxo do que manter conceitos errôneos sobre D'us e Sua Unicidade, nosso propósito neste trabalho não foi apresentar um enigma e deixá-lo em suspenso. Uma resposta possível é que o mundo é algo que reside entre a não-existência e a existência - e que está no processo de se tornar uma realidade. Temos razão para crer nisto porque o Talmud ensina que, no futuro, D'us Se revelará abertamente, mas a humanidade não será obliterada. O Baal HaTanya explica que a Torá que estudamos e os mandamentos que cumprimos são uma blindagem para este mundo que estamos construindo, para que, um dia, este mundo possa suportar, sem ser consumido, uma Revelação Divina explícita. E, à pergunta de por que o Ocultamento Divino deve chegar ao fim, a resposta é que tudo o que há de errado, no mundo, somente existe porque D'us Se oculta; as pessoas não vêem D'us e costumam usar o livre arbítrio para fazer o mal.
Portanto, por um lado, o mundo não pode ser aperfeiçoado até que a Luz Infinita seja revelada. Mas, por outro, essa Luz tem que permanecer oculta até que o mundo esteja pronto para suportá-la. Isto explica por que a perfeição do mundo é dependente de nossos atos: pois, cada vez que uma pessoa estuda a Torá ou cumpre a Vontade Divina, esta pessoa está transformando este mundo envolto em escuridão em uma Morada de D's, um lugar onde um dia Ele possa livremente revelar Sua Luz Infinita. O Talmud ensina que quando esse dia vier a Presença Divina será clara para todos nós. E nosso povo, que viveu por Ele e tanto sofreu por se recusar a negar a Sua Unicidade, proclamará: "Este é nosso D'us; esperamos por Ele e Ele nos salvou. Este é o Eterno por Quem ansiamos, exultemos e rejubilemos em Sua salvação" (Isaías, 25:9).
Traduzido por Lilia Wachsmann
Bibliografia:
Rabi Shneur Zalman de Liadi, Sha'ar ha-Yichud veha-Emunah (Tanya),
Rabi Shneur Zalman de Liadi, Likutei Amarim (Tanya)
Talmud Bavli (Ta'anit)
Rabino Adin (Even Israel) Steinsaltz, Understanding the Tanya --Jossey-Bass
Rabino Adin (Even Israel), Steinsaltz The Sustaining Utterance -- Jason Aronson
Rabino J. Immanuel Schochet, Mystical Concepts in Chassidism: An Introduction to Kabbalistic Concepts and Doctrines -- Kehot Publ. Society
Rabino Yosef Wineberg, Lessons in Tanya -- Merkos L'Inyonei Chinuch
Rabino Aryeh Kaplan, Inner Space -Moznaim Pub Corp
Rabino Shmuel Boteach, Wrestling with the Divine -- Jason Aronson
Rabino Adin (Even Israel) Steinsaltz, Opening the Tanya - Jossey-Bass
Rabino Adin (Even Israel) Steinsaltz, Learning from the Tanya - Jossey-Bass
Rabbi Ben Tzion Krasnianski - Lessons in Tanya - www.lessonsintanya.com