Muitas pessoas fazem uma pergunta aparentemente legítima: se a Torá Oral se originou de D'us, por que houve a necessidade de ser a mesma contestada, discutida e esclarecida?
O judaísmo se diferencia de todas as outras religiões pelo fato de não se ter originado de uma única pessoa. Todas as outras começaram a partir de um indivíduo que, através de seus ensinamentos, arregimentava adeptos e convertidos. Apenas o judaísmo foi criado por D’us, ao reunir três milhões de pessoas no sopé do Monte Sinai, ocasião em que, pela primeira e única vez, revelou-Se abertamente. Essa Revelação Divina, que se seguiu ao Êxodo do Egito, forjou um vínculo entre D’us e o povo judeu em todas as gerações. Este vínculo foi estabelecido pela Torá. Portanto, é claro que a Torá é o pilar do judaísmo, e quem sem a mesma não haveria religião judaica.
Apesar de o termo Torá abranger todos os fundamentos, leis e ensinamentos do judaísmo, literalmente refere-se aos 5 livros que nos foram transmitidos por D’us – letra por letra – a Moisés no Monte Sinai. Os cinco livros de Moisés – Bereshit (Gênese), Shemot (Êxodo), Vayikra (Levítico), Bamidbar (Números), Devarim (Deuteronômio) – compõem o que conhecemos como a Torá Escrita, ou Torah she-Bichtav.
D’us também transmitiu a Moisés a Torá Oral, Torah she-Be’alpeh, que consiste das interpretações e explicações dos mandamentos da Torá Escrita. Moisés possuía o mais alto grau de profecia e, por isso, D’us pode ensinar-lhe a Torá Oral de forma abrangente e detalhada. Pois está escrito: "Falava D’us a Moisés face a face, como um homem qualquer fala a seu amigo" (Êxodos 33:11). Ao mencionar especificamente a transmissão da Torá Oral, D’us disse: "Boca a boca falo com ele, claramente e não por enigmas" (Números 12:8).
A transmissão da Torá Oral é claramente revelada na Torá Escrita. Pois está escrito: "São estes os estatutos, juízos e leis (Torá) que deu o Senhor entre si e os filhos de Israel no Monte Sinai, pela mão de Moisés" (Levítico 26:46). É importante notar que a palavra Torá está no plural, pois se refere tanto à Torá Escrita quanto à Oral (Rashi; Sifra). Em outra parte da Torá Escrita, D’us diz a Moisés: "Dar-te-ei tábuas de pedra, e a lei e os mandamentos que escrevi" (Êxodo 24:12). As tábuas de pedra são os Dez Mandamentos, a lei (Torá) significa a Torá Escrita e os mandamentos referem-se à Torá Oral. De fato, a Torá Escrita faz inúmeras alusões à Torá Oral. Por exemplo, está escrito: "Então matarás as tuas vacas e tuas ovelhas...como te ordenei" (Deuteronômio 12:21). Isto implica na transmissão das instruções sobre o abate casher de animais, apesar de que não são dadas explicações. De fato, a maioria de nossos mandamentos nunca são explicados na Torá Escrita. A mitzvá da guarda do Shabat é um dos Dez Mandamentos, mas não há nenhuma instrução sobre o significado de guardar o Shabat. São mencionados, também, outros mandamentos tais como a colocação de mezuzot, de tefilin, o cumprimento das festas judaicas, mas não são discutidos, de fato, na Torá Escrita. Está bem claro que todas as instruções são encontradas na Torá Oral.
Mas, por que razão, D’us não teria transmitido a totalidade da Torá por escrito?
O Rabi Aryeh Kaplan comenta em sua obra Guia do Pensamento Judaico, que a Torá Oral tinha o propósito de ser transmitida do mestre para o discípulo. Desta forma, o aluno não confiaria em sua própria interpretação de um texto escrito, e buscaria esclarecimento para suas dúvidas com seu mestre. Se a totalidade da Torá tivesse inicialmente sido escrita, as pessoas iriam interpretá-la como o desejassem, e isso iria causar importantes desavenças no seio do povo judeu. E já que a Torá Oral não podia ser escrita, dependeria de autoridades centrais para preservá-la e ensiná-la sem dar margem a ambigüidades.
Há uma razão ainda mais forte para a necessidade de uma Torá Oral. Apesar de a Bíblia Hebraica originalmente ter sido dada apenas ao povo judeu, foi adotada por grande parte da humanidade. A Divina Providência utiliza-se da Bíblia Judaica para pouco a pouco levar a humanidade até mais perto da Verdade Suprema. Se a Torá tivesse sido totalmente escrita, outros povos a teriam adotado, e o povo de Israel deixaria de ser único e singular. Em um dos livros de nossa Bíblia, D’us confirma-o através desta frase: "Embora eu lhe escreva a minha Torá em 10 mil preceitos, estes seriam tidos como coisa estranha" (Oséias 8:12). Assim sendo, a Torá Oral não apenas define a Torá Escrita, mas é o fator que realmente distingue o judaísmo de toda a outras religiões.
A Mishná
Antes de falecer, Moisés escreveu os 13 rolos da Torá e ensinou a Torá Oral ao profeta Josué bin Nun. A Torá Oral foi então transmitida por Josué aos anciãos de Israel, a seguir aos profetas e, por fim, ao Sanhedrin. Este, ou sinédrio, era a corte suprema de Israel, e tinha a missão de guardar, interpretar e legislar sobre todos os assuntos acerca das leis da Torá. Durante o período do Segundo Templo, o Sanhedrin codificou a Torá Oral. Essa codificação tornou-se conhecida como a Mishná. Uma razão para esse nome foi o fato de revelar que o propósito da codificação da Lei Oral era o de que seria revista (em hebraico, shaná) continuamente, até que fosse memorizada. Os sábios que originalmente ensinavam a Mishná eram conhecidos como os Tanaim.
A Mishná foi posteriormente colocada por escrito pelo Rabi Yehuda ha-Nasi, a quem comumente nos referimos como Nosso Santo Rabino. Este erudito reuniu todas as leis, tradições, explicações e comentários de toda a Torá e a seguir compilou-os na Mishná que hoje conhecemos. Terminou seu trabalho no ano de 3948 (188 antes da era comum).
Mas por que motivo o Rabi Yehuda ha-Nasi teria rompido com a tradição de não se escrever a Torá Oral ?
Porque, com a destruição do Segundo Templo, a Torá Oral corria o perigo de ser esquecida. Diminuía o número de eruditos estudiosos da Torá e os judeus se dispersavam por todo o mundo. O Rabi Yehuda ha-Nasi, portanto, escreveu a Mishná para que mesmo que os judeus se afastassem de seus mestres, ainda assim poderiam estudar e seguir a Torá Oral e, assim, preservar o judaísmo.
Além da Mishná, foram escritos outros volumes interpretativos da Torá Oral pelos alunos do Rabi Yehuda ha-Nasi. Entre seus discípulos incluíam-se alguns de nossos mais famosos sábios: o Rabi Chiya, Rav, Bar Kapara, Rabi Yochanan e Rabi Hoshia. Rav redigiu a Sifra e o Sifri, que são comentários sobre três dos livros da Torá Escrita: Levítico, Números e Deuteronômio. O Rabi Chiya escreveu a obra Tosefta que elucida alguns dos conceitos da Mishná. O Rabi Hoshia e Bar Kapara escreveram Beraitot para explicar as palavras da Mishná. Trezentos anos após a destruição do Segundo Templo, o Rabi Yochanan redigiu o Talmud de Jerusalém, ou Talmud Yerushalmi. Este Talmud basicamente trata das leis referentes à Terra de Israel. Mas quando as pessoas falam do Talmud, geralmente não se estão referindo ao de Jerusalém, mas sim ao Talmud Babilônico, também chamado de Guemará.
O Talmud Babilônico
Em tempos remotos, os sábios da Torá estudavam a Lei Oral para, a seguir, fazer a análise de seu trabalho através de discussões. Após ter sido compilada a Mishná, tais discussões – que se tornaram conhecidas como a Guemará – serviram para esclarecê-la. A Guemará foi transmitida oralmente e preservada durante cerca de 300 anos após ter sido escrita a Mishná. Quando surgiu claramente o perigo de que a Guemará fosse esquecida, os dois maiores eruditos da época sobre Torá – Ravina e Rav Ashi – redigiram a Guemará por escrito. Com a ajuda de seus discípulos, nas academias de ensino da Babilônia, Ravina e Rav Ashi coletaram e ordenaram todas as discussões que compunham a Guemará. Esta compilação da Guemará – que incluía a Mishná – tornou-se conhecida como o Talmud Babilônico ou, em hebraico, Talmud Bavli. Foi finalmente publicado no ano de 4265 (505 antes da era comum).
O Talmud, que literalmente significa "estudo" ou "aprendizado", é, portanto, composto da Mishná – um livro de Halachá (lei judaica) escrito em hebraico – e da Guemará – o comentário sobre a Mishná, que foi escrito em aramaico/hebraico. O Talmud Babilônico foi aceito pelo povo judeu como a autoridade máxima e suprema em todas as questões sobre a religião e a lei judaica. As leis da Torá só têm vínculo legal se forem baseadas no Talmud.
A autoridade do Talmud
Muitas pessoas fazem uma perguntam aparentemente legítima: se a Torá Oral se originou de D’us, por que houve a necessidade de ser a mesma contestada, discutida e esclarecida?
Há várias respostas para isso, mas talvez a principal seja a de que a Torá Oral tinha por objetivo cobrir a infinidade de casos que haveriam de surgir com o decorrer do tempo. É impossível que qualquer código de lei cubra, explicitamente, qualquer caso ou situação que surja durante os milênios. D’us deu a Moisés as duas tábuas da lei, mas a aplicação dessas leis em qualquer cenário possível teria que ser determinada pelos eruditos e juízes da Torá. Pois está escrito: "Quando algumas coisa te for difícil demais em juízo... virás aos sacerdotes levitas e ao juiz que houver nesses dias, e inquirirás; e te anunciarão a sentença do juízo" (Deuteronômio 17:8-9). Esses juízes da Torá eram os membros do Sanhedrin que preservavam e interpretavam a Torá Oral e que mais tarde a codificaram como a Mishná.
A Torá Escrita também ordena ao povo judeu obedecer o Sanhedrin em tudo o que diz respeito às leis da Torá, pois que está escrito: "Segundo mandado da lei que te ensinarem e de acordo com o juízo que te disserem, farás; da sentença que te anunciarem não te desviarás nem para a direita nem para a esquerda" (Deuteronômio 17:11).
O povo judeu todo aceitou a autoridade do Talmud como sendo a fonte das leis da Torá e, como tal, jamais poderá ser revogado por autoridade alguma. O Talmud inclui os ensinamentos de nossos sábios que receberam a Lei Oral das gerações que os antecederam, remontando-se até Moisés. Está claro que alguém que rejeite o Talmud, está desrespeitando a Torá Oral, pedra fundamental do judaísmo. Sem o Talmud, seria praticamente impossível entender e cumprir os mandamentos da Torá Escrita. A mera aceitação da Bíblia Hebraica faria dos judeus um povo em nada diferente da maioria dos outros povos, que também a aceitaram como sendo a Palavra de D’us.
À luz de tudo isso, não é de surpreender que aqueles que buscaram, desesperadamente, converter todos os judeus, proibiram o estudo talmúdico. Em 1240, 1264 e 1553 antes da era comum, a Igreja Católica promulgou decretos que ordenavam a queima das cópias do Talmud. Durante certos períodos, as autoridades eclesiásticas "corrigiam" o Talmud, apagando passagens que consideravam ofensivas a seu credo. Finalmente, em 1592, a Igreja proibiu o estudo do Talmud em qualquer de suas versões ou edições. Este decreto foi promulgado como reconhecimento de que uma sociedade que não estude nem siga o Talmud não tem chance real de sobreviver. Ao longo da história, os inimigos de nosso povo tentaram obliterar o judaísmo tentando destruir o Talmud. O povo judeu só conseguiu preservá-lo ao preço de inúmeras vidas, mesmo a de alguns de nossos maiores sábios. Por terem preservado o Talmud, estes salvaram o judaísmo.
A eternidade da Torá
Um dos pilares da religião judaica é o fato de a Torá ser eterna e ser a imutável Palavra de D’us. Na Torá Escrita, D’us proclama a eternidade da Torá e de seus mandamentos: "as coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso D’us, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei (Torá) (Deuteronômio 29:28). Vemos, também, que na nossa Bíblia, em meio às palavras finais dirigidas por D’us a um profeta, encontrava-se o seguinte: "Lembrai-vos da lei (Torá) de Moisés, Meu servo, a qual lhe prescrevi em Horeb (Sinai) para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos" (Malaquias 3:22).
Nenhum sábio ou profeta, muito menos um auto-proclamado Messias, pode modificar ou anular nem a Torá Escrita nem a Oral. Aquele que alega ser profeta de D’us pode realizar sinais ou milagres, mas se disser que D’us o enviou para alterar ou revogar a Torá, esta pessoa é um falso profeta. Na Torá Escrita, D’us nos alerta sobre os falsos profetas que iriam realizar milagres e tentar desviar o povo judeu dos mandamentos e das tradições de Sua Torá.
Mas, por que motivo D’us permitiria que tais pessoas chegassem a ter o poder de realizar milagres?
A isto, D’us responde na Torá Escrita. Este será Seu teste para determinar se somos leais a Ele e à Sua Torá, ou se seremos seduzidos pelos milagres daqueles que virão, falando em nome de D’us, para tentar anular os mandamentos. (Deuteronômio 41:2-5). O Talmud (Bava Metzia 59b), em uma de suas mais dramáticas passagens, afirma que nem devemos dar ouvidos às vozes Celestiais, mas simplesmente seguir a Torá de acordo com o que prescreve a Lei Oral. Mesmo se uma voz dos Céus por ventura nos mandasse modificar nossa Torá e seus mandamentos, não a deveríamos obedecer.
D’us prometeu que Seu vínculo com o povo judeu – como é ratificado pela Torá e seus mandamentos – é eterno. Na Era Messiânica, a verdade será revelada e o mundo inteiro irá reconhecer que a Torá é o verdadeiro ensinamento Divino à humanidade.
Pois foi dito que em determinado momento futuro, todas as nações do mundo alegarão serem judias. E então, o Santo, Bendito seja, dirá que a única nação que detém o mistério em suas mãos é o povo judeu. E qual este mistério? A nossa Mishná!
Traduzido por Lilia Wachsmann