Eleito por uma margem de votos bastante apertada, o novo presidente da Venezuela, Nicolas Maduro Moros, emite sinais preocupantes no início de sua gestão. O antissemitismo de setores ligados ao chavismo voltou a aparecer na campanha para o pleito de abril, em ataques ao candidato oposicionista, Henrique Capriles Radonski, e as relações com o Irã continuam a ocupar lugar de destaque na agenda diplomática de Caracas.
A busca do confronto e a retórica incendiária, parte do legado da era Hugo Chávez, fazem pairar sobre o solo venezuelano o fantasma de crises e alimentam a preocupação com o futuro do país vizinho.
A morte do presidente venezuelano Hugo Chávez, em março passado, levou também a um balanço, entre outras avaliações, sobre o que representaram seus 14 anos no poder para a comunidade judaica local e para as relações com Israel. Dos cerca de 20 mil judeus que viviam em solo venezuelano em meados dos anos 1990, restaram menos de 10 mil; o embaixador israelense em Caracas foi expulso em 2009 com a ruptura dos laços diplomáticos e ações antissemitas de setores vinculados ao chavismo deixaram cicatrizes profundas.
Nicolas Maduro, herdeiro político ungido por Chávez, amealhou na eleição de 14 de abril 50,6% dos votos, contra 49,1% de Henrique Capriles. A oposição já vinha em uma curva ascendente, e no pleito anterior, em outubro, a vitória chavista se apoiou em uma vantagem de 11 pontos percentuais. A comoção provocada pela morte do líder venezuelano, após longa enfermidade, e a intensa mobilização da máquina governamental não foram capazes de garantir ao candidato situacionista um triunfo com folga.
Durante a campanha eleitoral, Maduro disparou torpedos típicos da retórica incendiária contra seu rival. Primeiro, quando da morte de Chávez, o sucessor ressuscitou a teoria conspiratória de que Yasser Arafat, morto em 2004, havia sido envenenado e não falecido de causas naturais. “Não estou acusando o Estado de Israel neste momento, mas se sabe que no caso de Arafat lhe foi inoculada uma enfermidade e, de um momento a outro, já sabemos o que lhe ocorreu”, declarou o ex-sindicalista em um discurso transmitido em rede nacional.
Então vice-presidente, Maduro afirmou que a doença de Chávez, diagnosticada como câncer, havia sido um ataque “dos inimigos da pátria”. Também sustentou que chegaria o momento de realizar uma “investigação científica” sobre o destino de seu mentor político, que morreu aos 58 anos de idade.
As relações entre Chávez e Maduro datam de 1993. Naquele ano, o militante esquerdista e dirigente sindical visitou na prisão o líder de uma rebelião militar ocorrida no ano anterior. Começava uma parceria que levou o ex-motorista de ônibus nascido em 1962 e, na juventude jogador de beisebol e baixista do grupo de rock “Enigma”, a participar da primeira vitória eleitoral de Chávez, em 1998, a ser deputado na Assembleia Constituinte dominada pelo chavismo, presidente do Parlamento e, em 2006, a tornar-se ministro das Relações Exteriores. Sua mulher, Cilia Flores, foi advogada responsável pelas ações que resultaram no indulto de Chávez em 1994. Anos depois, ela ocupou ainda cargos de destaque nos poderes Judiciário e Legislativo.
Em 10 de outubro de 2012, Nicolas Maduro deixou a chancelaria para tornar-se vice-presidente executivo. A morte de Chávez deixou espaço para uma polêmica jurídica sobre quem deveria governar o país até novas eleições. O Tribunal Supremo ratificou o caminho traçado pelo criador do chavismo e, assim, abriu espaço para a corrida eleitoral ocorrer com Maduro à frente do poder Executivo.
A disputa por votos elevou ainda mais a temperatura política na Venezuela. O candidato da situação prometia manter o projeto do “socialismo bolivariano”, enquanto o oposicionista Henrique Capriles mantinha o discurso das últimas contendas políticas, sobre levar o país a um novo rumo, depois de quase uma década e meia de chavismo. Em uma polêmica sobre a ação de médicos cubanos em território venezuelano, Maduro declarou, referindo-se a grupos da oposição: “Os herdeiros de Hitler estão liderando uma campanha na Venezuela contra o povo cubano”. Sobre a declaração do rival, Capriles Radonski respondeu: “Ele sabe quem foi Hitler? Se sabe, então o que disse é algo atroz, porque está afirmando que aqueles que não pensam como ele são assassinos”.
Os avós maternos do líder oposicionista, Andrés Radonski e Lili Bochenek, sobreviveram ao Holocausto e trocaram a Europa oriental pela América do Sul após a guerra e se instalaram na cidade venezuelana de Puerto La Cruz. Henrique Capriles Radonski nasceu em Caracas, em 1972, e foi educado em um universo essencialmente cristão. Ele se define como católico praticante, mas setores do chavismo não hesitaram em apontar suas raízes judaicas durante diversas campanhas eleitorais e vários enfrentamentos políticos.
Em 2012, às vésperas da eleição presidencial, uma revista pró-Chavez publicou na capa foto de Henrique Capriles sob uma Estrela de Davi. Em outro momento, a retórica de grupos chavistas exortava os venezuelanos a votar contra “o sionismo internacional”. Três anos antes, um escritório de Capriles havia sido pichado com a inscrição “nazi”.
O “The Jerusalem Post” reproduziu a reação do líder oposicionista ao ataque: “Eles vieram aqui e me chamaram de nazista, sendo que minha avó esteve no gueto de Varsóvia. Meus bisavós morreram em um campo de concentração. Os pais da minha avó foram assassinados pelos nazistas em Treblinka”.
Diversas organizações internacionais reagiram também aos ataques. Dos Estados Unidos, já vieram queixas do Departamento de Estado, do American Jewish Committee e da Liga Antidifamação, entre outras entidades. O Congresso Judaico Mundial (CJM) e o Congresso Judaico Latino-americano (CJLA), a partir de agosto de 2008, implementaram uma estratégia de, em encontros com Hugo Chávez e Nicolas Maduro, levar a eles as reivindicações da comunidade judaica venezuelana. A reunião mais recente ocorreu em 22 de janeiro último quando foram levadas ao então vice-presidente executivo Nicolas Maduro demandas como combate às manifestações antissemitas surgidas em diversos meios de comunicação governamentais ou apoiadores do chavismo. Maduro repetiu que o governo não endossa as manifestações racistas e falou em buscar mecanismos para erradicar as ofensivas preconceituosas.
Certa ocasião, reagindo a textos em sites oficiais ou em redes sociais, Jack Terpins escreveu ao então chanceler Maduro: “Quando as bandeiras do ódio e do antissemitismo são levantadas em locais da liderança cultural, social ou política, as expressões geram repetições que muitas vezes são de difícil controle. Consideramos que seria exemplar e educativo tomar medidas corretivas nas situações mencionadas, a fim de evitar que essas atitudes continuem ocorrendo e se propagando”.
Nos anos turbulentos do chavismo, surgiram pichações antissemitas em muros de Caracas. Em 2004, uma escola judaica foi revistada, com a argumentação de “denúncia de armazenamento de armas”.
A truculência e o absurdo da ação foram justificados pelo governo “como uma decisão dos juízes do caso”. “O Executivo nunca iniciaria nenhum tipo de agressão contra a comunidade judaica”, declarou o vice-presidente José Vicente Rangel. Janeiro de 2009 testemunhou a invasão e profanação da sinagoga Tiferet Israel, de Caracas. O governo reagiu com a prisão de onze suspeitos, acusados de uma ação que teria como motivação principal furtar valores e peças de rituais religiosos. Logo após o ataque, o chanceler Nicolas Maduro e o ministro do Interior e da Justiça, Tareck El Aissami, visitaram a sinagoga, dialogaram com a liderança comunitária e ofereceram policiamento ostensivo ao prédio localizado em uma região central da capital venezuelana.
Nicolas Maduro se transformou em interlocutor para a comunidade judaica venezuelana. Nas reuniões com lideranças locais e de entidades judaicas internacionais, o dirigente chavista costuma lembrar as raízes judaicas do sobrenome Maduro, cujo primeiro registro na Venezuela remonta a 1824, com judeus oriundos da ilha de Curaçao. No início de maio passado, o presidente voltou ao tema, após ser criticado por intensificar laços com o regime fundamentalista do Irã e, portanto, abrir caminhos para discursos eivados de antissemitismo na América Latina.
“Somos um povo humanista, não somos antissemitas”, discursou o novo presidente. “Todas as religiões são bem-vindas aqui, somos um povo de coração aberto”. Ele também enveredou pelo caminho ideológico: “Se alguém no mundo tem a tradição do socialismo, é o povo judeu”. O regime chavista também recorda com insistência que, em dezembro de 2008, os presidentes Hugo Chávez, Luís Inácio Lula da Silva e Cristina Kirchner assinaram uma declaração conjunta contra o antissemitismo, o racismo e qualquer tipo de discriminação.
A revolução bolivariana defendida por Maduro, no entanto, cultiva estreito relacionamento com a teocracia iraniana, responsável por disseminar discursos de ódio, como a negação do Holocausto feita pelo presidente Mahmoud Ahmadinejad. Hugo Chávez não endossava as ideias de negar o extermínio de 6 milhões de judeus na Segunda Guerra Mundial ou a defesa da destruição do Estado de Israel, observou Abraham Levy Benshimol, ex-presidente da comunidade judaica venezuelana, em entrevista à agência de notícias EFE.
O ministro das relações exteriores do Irã, Ali Akbar Salehi, descreveu os laços bilaterais como “profundamente enraizados”, ao deixar uma reunião com David Velásquez, vice-chanceler venezuelano. Akbar Salehi foi mais longe, ao afirmar que, com o presidente Maduro, “um novo capítulo se abre” para reforçar os vínculos entre Caracas e Teerã.
A troca de gentilezas levou o diplomata da Venezuela a destacar a presença do presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, no funeral de Hugo Chávez. Velásquez afirmou: “Somos filhos espirituais de Chávez e vamos continuar os laços estratégicos que ele estabeleceu com o Irã”.
O ministro iraniano gerou reação positiva do visitante ao sugerir a expansão das parcerias nos campos do “comércio, economia e indústria”. O chavismo colocou a Venezuela na condição de principal aliado latino-americano da nação do presidente Mahmoud Ahmadinejad. Embora separados na origem ideológica de um regime socialista, inspirado em dogmas marxistas, e de uma teocracia, apoiada no poder dos aiatolás, os governos encontraram no antiamericanismo campo para uma aliança estratégica. Chávez se transformou em visitante frequente a terras iranianas. A aliança passou até a contar com um voo semanal entre Caracas e Teerã.
Hugo Chávez rompeu relações diplomáticas com Jerusalém em 2009, quando da ação israelense contra o Hamas, que, controlando a Faixa de Gaza, insistia em disparar foguetes contra cidades como Sderot e outros alvos civis. Nicolas Maduro, no início de seu governo, mantém a retórica pesada contra o governo de Israel e reforça a política de alinhamento automático com regimes como o do Irã ou de Bashar Al Assad, na Síria. Em março, em uma demonstração da aliança entre Caracas e Damasco, o governo venezuelano anunciou sua disposição de continuar fornecendo petróleo ao governo sírio.
Apesar das dificuldades e desafios que atingem a Venezuela nos planos diplomático, político e econômico, a comunidade local mantém invejável grau de organização e de dinamismo. Em março, foi inaugurada uma nova sinagoga, a Tiferet Israel Este. Uma boa resposta a quem imagina que a Venezuela vá abrir mão da histórica contribuição judaica ao país.
Vários membros da comunidade participaram do movimento independentista liderado por Simón Bolívar, que certa feita se refugiou na casa de Mordechai Ricardo, um judeu de Curaçao. E, em 1947, o voto venezuelano engrossou a maioria na Organização das Nações Unidas favorável à Partilha da Palestina e à criação do Estado de Israel.
Estive na Venezuela em janeiro, para participar de um evento comunitário. No trajeto do aeroporto ao hotel, enquanto enfrentávamos o corpulento e congestionado tráfego caraquenho, fiquei observando a politizada paisagem da Venezuela. Incontáveis outdoors e pichações exaltavam a revolução bolivariana, o socialismo do século 21 e a figura do presidente Hugo Chávez. Senti um sabor de túnel do tempo, ao me recordar de minhas andanças jornalísticas por terras antes dominadas pela retórica ideológica, como a extinta União Soviética, ou por paragens onde ainda resistem regimes inspirados em cartilhas populares durante a Guerra Fria, como Coreia do Norte ou Cuba.
O Jornalista Jaime Spitzcovsky foi editor internacional e correspondente da Folha de S. Paulo em Moscou e em Pequim.