Esta é uma descrição feita por um não judeu sobre uma comunidade judaica, bela e de fortes raízes, na qual a “rainha”, o shabat, reinava com poderio ilimitado. É a comunidade de Salônica, cujos habitantes judeus, dinâmicos e ágeis, propagaram o espírito...

É uma cidade que vive no ritmo do shabat. Nesse dia, o comércio e o porto cessam suas atividades. Não se calculam os lucros e prejuízos em termos econômicos, mas sim em termos de satisfação.

Quão emocionantes e interessantes são estas palavras quando proferidas por visitantes noruegueses não judeus, que se depararam com a cidade, onde vivenciaram a magia do Shabat. Estas impressões podem ser encontradas na obra “A Torre Branca", uma coletânea de textos publicada por Yossef ben Pinchas Uziel. São anotações, lembranças e a história da vida numa cidade judia na diáspora.

Alexander Keilland (1849-1909), famoso escritor norueguês do século XIX, permaneceu alguns dias em Salônica, há trinta anos. A primeira impressão que teve foi forte e marcante: 

“Quando o navio chegou à orla”, relata, “deixaram-me claro que seria impossível descarregar toda a carga que trazia, pois era shabat. E os estivadores e carregadores judeus não trabalhavam no dia dedicado ao descanso! Difícil foi encontrar trabalhadores não judeus. E sua falta de experiência no ofício foi logo notada por todos, causando muitos transtornos no descarregamento”. 

Uma vez que, infelizmente, possuímos apenas trechos dispersos da história da viagem do norueguês Alexander Keilland, vamos basear-nos, em grande parte, no que relata um jornal de Salônica da época, “El Avinir”.

Acompanhado pelo intérprete do cônsul sueco-norueguês, o escritor, que, com dificuldade, encontrou uma embarcação para chegar à terra firme, passou pela “Istira”. Grandes edifícios de dois ou três andares se estendiam pelas ruas desertas. Suas muitas janelas lacradas com persianas de ferro e o silêncio que os rodeava permearam o viajante e os visitantes noruegueses de tristeza ao se deparar com essa cidade, que vivenciava profundamente o shabat. Perguntou se o bairro era abandonado e se surpreendeu quando seu companheiro lhe disse: “Não, meu senhor. Aqui é o centro da produção, o bairro mais agitado e barulhento da cidade. Porém, hoje há um silêncio assustador, pois é shabat”.

Foram a um pátio cercado de lojas, por cujas persianas fechadas escapavam aromas que atestavam tratar-se de um mercado alimentício.

“Qual é a função deste pátio grande e deserto?”

“Grande?” respondeu o intérprete. “Todos os dias ele é pequeno para conter todas as carroças que por ele transitam, em meio ao som de chamados e gritos, pois esta é a passagem de todos os ramos do comércio para o setor de impostos. Porém, hoje, éshabat.“

Quando os judeus descansam

O norueguês e seu companheiro vieram à rua do “Pasha” que serve como rua principal da cidade, levando, de um lado, aos bairros mais altos e, do outro, à plataforma. Estendendo-se por um quilômetro, havia, dos dois lados da rua, uma fileira de casas comerciais nas quais havia placas com letras quadradas, estranhas aos olhos do escritor. Todas estavam fechadas. Muito raramente se via alguma loja aberta, tendo à porta um vendedor bocejando, devido à falta de movimento. Um detalhe destacava mais ainda o vazio: a maior parte da rua estava coberta por um tipo de telhado monumental de metal, apoiado sobre arcos de madeira inclinados para os lados. O som das vozes e dos passos dos pouco turistas dava de encontro com este telhado, causando um eco, como que em uma galeria deserta.

“Será que hoje é um dia de descanso geral na cidade?" perguntou.
“Não, meu senhor”, respondeu o intérprete, sorrindo. “A maior parte dos depósitos são de judeus e, uma vez que eles estão descansando, a cidade toda pára. Não há compradores nem vendedores. Os bancos também funcionam somente por duas horas, pois praticamente não há operações...”
“Salônica é, pois, uma cidade judia?”
“Quase...”

Quando se dirigiam para a direita, o funcionário do Consulado lhe explicou que naquele bairro havia diversos profissionais. O escritor não perguntou por que, então, não se ouvia o som de suas diferentes atividades. Pediu apenas para conhecer as pessoas surpreendentes que povoavam esses bairros no dia-a-dia, dando-lhes o movimento e o ritmo que lhes faltavam hoje. Então o intérprete levou-o ao calçadão. 

No percurso por toda a orla, havia muitas pessoas passeando, à beira-mar, vestidas com roupas festivas. Com serenidade, irradiando de seu semblante tranqüilidade e alegria, lá iam sob os raios de sol que também estava a comemorar conversando em voz alta; às vezes, soltando uma gargalhada... os homens com um típico chapéu vermelho; os jovens, com chapéus ao estilo europeu e as mulheres com a“cafia” vermelho-esverdeada cobrindo seus cabelos. Mas, o que mais despertou a atenção do escritor foi ver os judeus vestidos com suas roupas típicas, como um “entri” (casaco) comprido e largo forrado de pele, que brilhava como seda; ou com um “jobi” (manto) fino e diáfano de linho, com mangas largas, que davam aos movimentos daqueles homens da barba preta, de faces bronzeadas ou claras, uma nobreza oriental especial, transmitindo-lhes uma expressão de força e auto-confiança .

Passeavam em grupos extensos, ocupando grande parte da rua, rolando por entre seus dedos correntes de conchas ou corais e abrindo sementes. Era interessante vê-los, vez por outra, parando e discutindo em voz alta e com ar de importância sobre as falhas de uma certa construção ou sobre as vantagens de uma embarcação que atracara ao lado do calçadão; ou ainda franzindo a testa em uma discussão política, aparentando não ter nenhuma outra preocupação. 

“E quem são estes senhores?” perguntou o visitante. “Estes são os estivadores e carregadores que não quiseram vir hoje descarregar a carga de seu navio. Junto a eles estão diversos outros profissionais”.
“E estes, vestidos ao estilo europeu?”
“São os comerciantes e seus funcionários que hoje estão de folga e sentem-se equivalentes a seus patrões em tudo, chegando mesmo, às vezes, a se vestir melhor do que eles...”

Se eu fosse judeu


Quando Alexander Keilland voltou para seu país, contou com entusiasmo e carinho o que aprendera e vira em Salônica. Merecem atenção especial os trechos que possuímos, que servem de resumo de suas anotações: “...Nunca vi pessoas mais belas do que esses judeus de Salônica, quando saem noshabat para passear nas ruas ou além das muralhas... Nunca vi uma expressão tão refinada... Eles levam uma vida boa sem o alardear e têm um sentimento de auto-respeito muito mais sublime do que o pálido orgulho inglês, que praticamente todos nós temos, especialmente quando viajamos. Dois jovens me causaram especial impressão. Pareceu-me serem irmãos. Eram altos como todos os portugueses. Tinham cabelos e barbas incrivelmente belos, olhos profundos e, sobretudo, um tipo tranqüilo e seguro de si... “

“... Depois desta visita aos descendentes dos antigos hebreus, compreendi finalmente a história de Flávio Josefo, que li durante este inverno e que me parecia ser um relato sem credibilidade alguma. A impressão que os acontecimentos descritos na Bíblia nos dão é a de que os judeus eram um povo pequeno, nômade, jogado de um lugar a outro, lutando desoladamente por um santuário que fora transformado em um monte de cinzas. Mas nos judeus de Salônica, encontramos novamente a força invencível da qual fala o historiador Josefo, um povo de heróis... que fez com que até os romanos fossem exterminados antes de os render...”

A força dos hebreus

Durante a semana, o movimento do trabalho demonstra a influência dos judeus de Salônica em todos os aspectos da vida da cidade. Mas, somente no shabat percebe-se todo o vigor e a profundidade desse povo. Não somente pelo silêncio que contrasta ao substituir a agitação. Na verdade, se você vagar pelo porto deserto e olhar para suas águas opacas, verá fundeadas várias embarcações carregadas de mercadorias, à espera de seus “salvadores” - os trabalhadores. E se você rondar pelos bairros comerciais e se espantar com a longa série de lojas fechadas e a falta de vida nas ruas - apesar das lojas gregas, em vão abertas - talvez consiga sentir, de forma palpável, o poderio numérico e as atividades que dão vitalidade a esses judeus...

Mas se você ainda não entendeu o shabat de Salônica, deve passar pelos bairros judeus onde a serenidade que paira no ar vai envolvê-lo e relaxar sua tensão, fazendo com que seu andar se torne mais lento... Deve esperar ao lado das sinagogas e ver sair uma multidão de pessoas com seus filhos, saudando uns aos outros com um caloroso “Shabat Shalom”. Você precisa espiar nos pátios onde brincam crianças alegres - que somente nesse dia têm folga dos estudos. E neles, escutará pela primeira vez o som do riso das jovens e senhoras que, somente nesse dia, estão liberadas dos trabalhos domésticos.

E, particularmente, você precisa estar à tarde entre as pessoas que passeiam à beira-mar e prestar atenção a seus semblantes... E então, poderá entender o Shabat de Salônica e as impressões que esta cidade fizeram em Keilland.

“Os rostos não me são estranhos. Durante a semana que passei aqui, seus traços se tornaram familiares e conhecidos. Porém, antes, foram observados sob o suor do trabalho físico ou por entre as folhas de um livro de contabilidade. Hoje, vejo-os sob outro prisma. Da testa não pingam gotas de suor, as sobrancelhas não se enrugam devido à tensão dos negócios ou concentração do pensamento. As faces dos que têm um trabalho árduo durante a semana, hoje brilham. Não só por estarem lavados e melhor vestidos, mas por toda a beleza da barba prensada e traços de face bem definidos, iluminados pelo brilho dos grandes olhos que hoje estão repletos de uma tranqüilidade confiante. As costas eretas, os movimentos das mãos ásperas que trabalham com ferro e puxam as cordas do ancoradouro, estão hoje tranqüilas e relaxadas. Não somente devido ao descanso físico, mas a uma serenidade mais profunda que provém da alma, que lhes confere delicadeza e nobreza. Não há sombra de cansaço e preocupação e as vozes tilintam em risadas espontâneas que expressam inocência e bem-querer".
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Shabatópolis 
a cidade do shabat

"O olhar é espontâneo, imbuído de serenidade interna, e expressa total segurança, como se essas pessoas retirassem grandeza e força da consciência de que esta cidade - que sobrevive de seu movimento e que descansa no dia do descanso - não seria nada mais do que uma grande aldeia turca, se eles tivessem permanecido na Espanha... Todos têm a mesma postura de segurança e de serena liberdade. E o estrangeiro que se encontra perdido entre os judeus é recebido com um olhar espontâneo e natural. Que sorte ter nascido numa cidade de judeus, na cidade de Shabat!
Cidade do shabatShabatópolis! Será que este nome não combinaria melhor com a cidade, do que Salônica?

Em todo caso, em uma coisa você pode acreditar, meu querido leitor: se chegar um dia e os judeus de Salônica, por pressão externa ou por imitação tola de seus irmãos europeus, deixarem de cumprir seu dia de descanso, será uma enorme pena!

Para sempre perder-se-á uma visão na qual a beleza e a honra são dadas ao ser humano. Esta cidade perderá toda sua originalidade... a vida nela se revestirá de descaso e desolação: será um canto qualquer do Oriente, sem a serenidade que dá um ar de poesia à vida da aldeia turca. Terá esta, então, todas as desvantagens da tensão e estresse modernos, toda a corrida agitada das cidades européias, mas sem o consolo de uma vida espiri-tual. É a segurança que provém da serenidade o que envolve, por um dia inteiro, toda a cidade, dando-lhe uma aparência sui-generis de uma cidade hebréia. E eles a terão perdido para sempre...


Fonte:
• Revista Nitsotsot, Jerusalém Nº II